Queres saber como passo o tempo?
Passeio no relvado da frente, fingindo
arrancar ervas daninhas. Mas devias saber
que não é verdade, que quando estou de joelhos a arrancar
tufos de trevo dos canteiros o que busco
é coragem, alguma prova
de que a minha vida mudará (…)
Louise Glück, em A Íris Selvagem
Há textos que nunca estão lidos. Uns porque não os compreendemos bem, outros porque com eles estabelecemos uma espécie ligação para a vida de tal modo que, mesmo se nos separássemos, um ritual secreto garantiria um vínculo inviolável com o que os anima. O ritual, cumprindo os ditames da compulsão para a repetição, pode, no entanto, assumir uma expressão bem simples: a leitura a intervalos regulares.
Tomo como exemplo um texto de Bertolt Brecht nos Escritos sobre o Teatro ― é uma página breve, extraída dos Cadernos, com data de 29 de Outubro de 1920, a propósito de uma curta-metragem de Charles Chaplin [tratava-se de The Face on the Barroom Floor (Charlot Pintor, 1914), que Brecht identifica através de um título em francês como sendo Alcool et Amour, se bem que o filme em França tenha sido distribuído com o título de Charlot fou], e que reza assim:
“De seguida vejo um pequeno ‘sketch’ com Charles Chaplin. Chama-se Alcool et Amour e trata-se da coisa mais perturbadora que alguma vez vi no cinema, e duma simplicidade total. É um pintor, entra num bar, bebe e conta aos presentes, «já que foram tão simpáticos comigo», a história da sua ruína, que é a história de uma rapariga que fugiu com um rico adiposo. Já devorado pela bebida e meio farroupilha, volta a vê-la, e «o ideal está manchado», ela engordou e tem filhos, então ele põe o chapéu de lado e sai às arrecuas, para a escuridão, cambaleia como se tivesse levado uma pancada na cabeça, caminha de lado, santo deus! todo de esguelha, como alguém arrastado pelo vento, retorcido como ninguém anda assim. O homem que conta a sua história fica cada vez mais bêbado, e a sua necessidade de comunicação cada vez mais perto da boca e devoradora, pede «um bocado de giz daquele que serve para revestir os tacos de bilhar», e desenha no chão a cara da sua amada, mas não consegue mais do que esboçar círculos. Arrasta-se por cima do desenho, discute com todos, é projectado para a rua e fica a desenhar no asfalto, sempre mais círculos, é atirado para dentro, e no interior continua a desenhar e empurra todos lá para fora, eles esticam o pescoço para ver lá para dentro, e ele desenha no chão, e o fim é este: de repente, com um grito terrível, quando só queria colar à sua amada um laço artisticamente desenhado, estatela-se sobre o seu retrato ― «bêbado… morto». [1]
O critério que umas décadas mais tarde Susan Sontag retomou como “definição de um livro que vale a pena ler” é, “só quero ler o que quererei reler”.
Há ainda outras boas razões para ler, de novo, os textos (já lidos), nomeadamente, as decorrentes do seu próprio inacabamento. Ou, então, porque necessitam de ser resgatados do “massacre editorial” (e tantas vezes “crítico”) a que foram submetidos. A relação entre a literatura e o cinema constitui um campo fértil para levar a cabo essa experiência de releitura. Escolho como exemplo Il Gattopardo (O Leopardo, 1963), filme realizado por Luchino Visconti a partir do livro homónimo da autoria de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, originalmente publicado em 1958. Perante as acirradas polémicas em que, à época, muitos críticos se encravelharam e uns tantos se viram depois embuchados para dar o dito por não dito, várias efemérides ― 150.º aniversário da unificação da Itália (2011), 50 anos da realização do filme (2013), 60 anos da publicação do livro (2018) ― entretanto celebradas propiciaram a ocasião para em boa hora rever a matéria dada.
O critério que umas décadas mais tarde Susan Sontag retomou como “definição de um livro que vale a pena ler”, a saber, “só quero ler o que quererei reler”, soube Eugenio Montale, na recensão saída um mês após a primeira tiragem do livro a 11 de Novembro de 1958, relevá-lo na sua apreciação muito positiva: “Acabada a leitura lembramo-nos de tudo n’O Leopardo e temos a certeza que mais cedo ou mais tarde vamos querer relê-lo do início ao fim”.
Já sobre a relação entre o romance e o filme, se fosse o caso de antecipar um veredicto, poderia hoje afirmar-se que “cinema e literatura, Lampedusa e Visconti continuam a dançar uma elegante carole, e a perfeição do círculo já não permite deslindar quem primeiro estendeu a mão ao outro” [2], como se conclui, aliás, no livro Operazione Gattopardo resultante da aturada investigação de Alberto Anile e Gabriella Giannice. Coisa que também poderia ser aclarada parafraseando o que Montale dizia da sua própria obra (“Eu escrevi apenas um livro, do qual antes fiz o verso, e agora faço o reverso”), se bem que essa demonstração, quando tudo pareceria já ter sido dito sobre o assunto, foi levada a cabo no livro de Anile e Giannice a partir da recolha e apurado cotejo de documentação e testemunhos que, para além de fornecer um extraordinário conjunto de dados “fora de cena” sobre a preparação, a conformação final do argumento e o final cut da cópia de exibição por parte de Visconti, procede à identificação das diferenças relativamente ao romance de Lampedusa, também ele objecto de uma releitura particularmente arguta, e situa as polémicas ideológicas e culturais da época, em particular no seio da esquerda ligada ao PCI, que permitem compreender como é que um romance de “direita” se transformou num sucesso de “esquerda”.
Fora de portas, contrastando com a recusa inicial de publicação de Il Gattopardo por parte da Mondadori e da Einaudi, houve quem juntasse a sua voz aos que desde logo o apreciaram positivamente. O crítico Edward W. Said, segundo o qual “a sua principal inovação formal está na estrutura narrativa articulada de forma descontínua (…) que, consentindo uma certa liberdade relativamente às exigências do entrecho, permite trabalhar com memórias e acontecimentos futuros, que irradiam dos episódios simples da narrativa” [3]. Ou, então, Burkhart Kroeber, tradutor entre outos de Eco e de Calvino e que é também o autor da nova tradução alemã de O Leopardo, que releva “desde logo, a forma original da narrativa, que aparentemente encontraria a sua referência nos modelos tradicionais do romance histórico do século XIX (razão pela qual na Itália foi inicialmente rejeitada como ‘retrógrada’), mas que na verdade usa todos os recursos modernos do discurso indireto livre, na sua passagem ágil ao monólogo interior, rompendo repetidamente a perspectiva da narrativa, coloca-o ao nível dos clássicos da modernidade”. [4]
A obra de Lampedusa carecerá sempre do acabamento final que só ele lhe poderia ter dado, se bem que aquele mínimo de incompletude em que o autor deixou sua obra lhe conferirá, porventura, uma espécie de fragrância própria do recém-inacabado.
Sendo toda a obra de Tomasi di Lampedusa de publicação póstuma, não esteve na mão do autor a possibilidade de controlar a sua impressão editorial. Os “originais” que serviram de suporte ao trabalho dos editores foram: “uma primeira versão escrita à mão coligida em vários cadernos (1955-1956), uma versão em seis partes batida à máquina por Orlando e corrigida pelo autor (1956), e um exemplar autógrafo em oito partes de 1957, tendo no frontispício: O Leopardo (completo)” [5], que o autor confiara ao filho adoptivo Gioacchino Lanza Tomasi. Sucessivamente, publicadas pela Feltrinelli, saíram três versões de Il Gattopardo: uma primeira publicada em 1958, com edição do escritor Giorgio Bassani; e as duas seguintes, com edição de Lanza Tomasi, publicadas, respectivamente, em 1969, com a indicação de “conforme ao manuscrito de 1957”e considerada standard e, em 2002, com menção de “nova edição revista” e apresentada como definitiva. Com as edições conduzidas por Lanza Tomasi não deixou de acentuar-se que a obra de Lampedusa carecerá sempre do acabamento final que só ele lhe poderia ter dado, se bem que aquele mínimo de incompletude em que o autor deixou sua obra lhe conferirá, porventura, uma espécie de fragrância própria do recém-inacabado.
A obra de Tomasi di Lampedusa que, apara além de O Leopardo, se encontra parcialmente reunida num volume intitulado Os Contos, toda ela publicada depois da morte do escritor, foi escrita, com excepção de alguns ensaios literários, nos seus três últimos anos de vida, entre meados de Julho 1954, data do convénio literário de San Pellegrino Terme em que participou e finais de Julho de 1957, data da sua morte.
Inserido nesse volume, há um texto a despertar atenção particular. Com o título Recordações de infância, sabe-se que foi escrito no verão de 1955, interrompendo, aliás, a escrita de O Leopardo e, como Gioacchino Lanza Tomasi explica na introdução, esses escritos «revelam também o laboratório do escritor na fase da sua obra-prima”.
Ancorado em Stendhal (e aprendida que fora a lição na Vida de Henry Brulard, que lhe serve de modelo), também ele partilha a convicção de que “só a infância pode ser objecto de uma narrativa autobiográfica” e, ao ocupar-se desses blocos de impressões, em que as recordações, os lugares e a infância são os elementos constituintes, tem em vista ser capaz de dar uma impressão global através do espaço em vez de ser por meio da sucessão temporal. O que o escritor quer alcançar é definir a natureza das memórias, em particular das memórias da infância, que para ele são “impressões visuais […] desprovidas de qualquer vínculo cronológico” e que só podem ser reproduzidas graças a uma técnica narrativa bem precisa, ou seja, “agrupar por tópicos”, em suma, narrar através “dos ambientes”, sem “tentar ‘a priori’ acompanhar o desenvolvimento” dos factos, como bem fez notar Laura Nay. [6]
Antes que Goffredo Lombardo ― dono da casa de produção Titanus que cedo comprara à Feltrinelli os direitos para cinema do romance que mal fora publicado se tornou um sucesso de vendas ― entregasse a Luchino Visconti a realização do mesmo, outros estiveram a caminho ou haviam desistido antes de começar, revelando quão complexas foram as etapas e as mudanças de direcção ocorridas durante a escrita do argumento, e não menos aventuroso foi o processo de escolha e contratação dos actores.
É, contudo, o processo conducente à versão do filme “aprovada” por Visconti que merece ainda uma referência. Apesar da denominação retumbante de “filme monumento de 3 horas e 15 minutos” (tendo algumas filmografias indicado mesmo uma duração de 205 minutos), a verdade é que a maioria dos espectadores não teve oportunidade de ver essa versão do filme. Com efeito, a versão denominada “original”, que foi projectada no cinema Barberini de Roma a 27 de Março de 1963, em antestreia mundial, com uma duração de 197 minutos, que corresponde aos dados de registo oficial, terá circulado durante alguns meses apenas em Itália.
Por contraposição, a versão “anglo-americana” da Fox, com cortes que reduziram a duração do filme em cerca de meia hora, tendo igualmente sido abandonado o formato original de 70mm e recorrendo-se a cópias 35mm em Cinemascope, contratipadas, comprometendo de forma drástica a qualidade da cor, foi aquela que foi vista na América e na Inglaterra, sendo que em muitos outros países europeus eram também versões cortadas as que passavam. A situação tornou-se tão inaceitável que Visconti chegou a declarar estar o realizador na situação semelhante a de “alguém que num contrato de trabalho se tivesse esquecido de proibir à outra parte ― através de uma cláusula expressa ― o direito de matá-lo, tivesse de acabar por permitir ser apunhalado”.
Contrariando a vontade do produtor que defendia a versão longa, é Visconti, o realizador, que impõe uma versão mais curta, com uma duração de 185 minutos.
Aconteceu, no entanto, que, culminando um longo trabalho de escrita do argumento e muitas vicissitudes de produção, como já foi dito, em que o exercício de autoridade de Visconti já estivera bem à prova, é relativamente ao final cut do próprio negativo para tiragem das cópias de exibição que ele se manifesta de forma algo “inédita”. Contrariando a vontade do produtor que defendia a versão longa, é Visconti, o realizador, que impõe uma versão mais curta, tendo em vista à sua apresentação no Festival de Cannes, onde o filme foi projectado a 20 de Maio de 1963 e aí ganhou o Grande prémio. Esta versão, com uma duração de 185 minutos, foi a que serviu de base, em 1991, à versão “restaurada” e é considerada a versão “definitiva”.
Relativamente a um romance que tinha uma “estrutura inusitada”, com um protagonista imerso em recordações vitais, cujo autor adoptara para um romance histórico, como se teimava em classifica-lo, “o ponto de vista a partir do interior do mundo narrado”, de tal modo que para representar a decadência vista de dentro, como sublinha Francesco Orlando, “seis das oito partes do romance são dominadas pelo ponto de vista do protagonista”, o maior desafio que se colocava ao filme era fazer com que a “a melancolia do príncipe de Salina no Leopardo sublinhasse as incertezas da sociedade italiana no rescaldo da unificação. É como se Visconti devesse retratar a ‘História’ por meio de histórias secretas, íntimas, particulares, não renunciando às ilustrações corais, mas submetendo-as às vicissitudes interiores das suas personagens”. Não deixa de ser curioso que tenha sido Alberto Moravia, que tomara grande distância em relação ao romance, a recorrer ao critério da justa medida, ao defender que “só Visconti, um comunista e aristocrata, seria capaz de dosear tão sutilmente o grau de ceticismo e nostalgia poética do príncipe perante as questões sociais e políticas da época”.
Não era a primeira vez que Visconti, no teatro, recorria à “dilatação hiperbólica dos tempos do baile” como metáfora política e social e, no cinema, outros bailes metafóricos, hipnóticos e alucinatórios houve e haverá, mas, no baile que ocupa uma terça parte da duração de O Leopardo, o príncipe de Salina, sabendo que, como ensina Antifonte, “não se pode voltar a jogar a vida como um dado que tornamos a lançar”, e, mais do que “o baile interminável se tornar a metáfora de uma classe em ruína”, olhando-se ao espelho, vê que nele já não se reflecte a imagem de Tancredi, como acontecera no início, e precisa apenas de um último fôlego para a mais dura prova, a saber, que “não há nada mais difícil do que não nos iludirmos a nós próprios”. [7]
Há uma estrutura circular que parece impor-se: o filme inicia-se com uma alvorada e termina numa outra; começa com a recitação do rosário e acaba com uma prece.
Tomasi di Lampedusa descobrira que “como sempre as [suas] recordações são de um modo muito singular recordações de ‘luz’ ” e que essas recordações de luz são, aliás, as únicas que são susceptíveis de recuperação, se bem que a consistência da sua trama, vinculada aos lugares e às casas, está na memória tantas vezes por um fio. E, em última instância, talvez, nada mais haja a perpetuar para além das recordações vitais da infância, assim para elas encontre fiéis depositários.
Por certo, algumas coisas são incrivelmente firmes: “o que é firme não o é porque seria em si mesmo óbvio ou evidente, mas, sim, porque é fixado pelo que está ao seu redor”; mas o nosso mundo pode ruir num ápice. [8]
Se confinado um espectador tem assim muito por onde prosseguir: “não há nada mais difícil do que fazer justiça aos factos”.
A menos que, para celebrar a primavera, se debruce sobre este outro texto:
“Gosto de encostar a testa ao vidro desta janela um pouco antes do alvorecer, entre as quatro e as cinco da madrugada. Nova Iorque está deserta. É a única hora em que parece que a cidade se concede um breve repouso, as ruas estão silenciosas, as luzes dos grandes arranha-céus apagadas, uma ligeira neblina começa a formar-se nos pequenos lagos do parque: é um dos espectáculos mais belos do mundo. (…) Esta manhã, no entanto, vi uma cena insólita que me fascinou. Na pista de gelo, lá em baixo, no centro do parque. Venham ver da janela. Valha-nos Deus, estes americanos que fazem tantas coisas como deve ser, têm janelas de guilhotina incómodas como tudo. Desconhecem a alegria de uma janela de grandes dimensões… E ora nem mais, lá em baixo, no centro do parque, estava um homem a patinar, sozinho, às quatro da madrugada. Via-o deslizar, passando de um arabesco a outro, muito pequenino, imaginava-o feliz e indiferente, mas perguntava-me: quem será afinal este homem que se diverte a patinar a esta hora? Estão a ver? Quando voltei para a cama, por volta das cinco, ainda lá continuava. Quem podia ser?” [9]
[Anna Magnani acabara de participar na rodagem The Rose Tattoo (A Rosa Tatuada, 1955), com Burt Lancaster, está no Sherry Netherland Hotel de Nova Iorque antes de voltar a Itália, e é dela esta recordação].
[1] Bertolt Brecht, «Extraits des Carnets [1920-1926]», em Écrits sur le théâtre, vol. 1 (Paris: L’Arche, 1972), 63–64.
[2] Alberto Anile e M.Gabriella Giannice, Operazione Gattopardo: Come Visconti trasformò un romanzo di «destra» in un successo di «sinistra», Universale economica. Saggi (Milano: Feltrinelli Editore, 2014), 318.
[3] Apud Arnaldo Di Benedetto, «Da bestseller a classico della modernità: Il Gattopardo», em Giuseppe Tomasi di Lampedusa: A sessant’anni dalla pubblicazione del Gattopardo, ed. Arnaldo Di Benedetto, Quaderni 33 (Torino: Accademia delle Scienze di Torino, 2020), 9–10.
[4] Apud Chiara Sandrin, «La ricezione tedesca di un classico della modernità», em Giuseppe Tomasi Di Lampedusa: Asessant’anni dalla pubblicazione del Gattopardo, ed. Arnaldo Di Benedetto, Quaderni 33 (Torino: Accademia delle Scienzedi Torino, 2020), 22.
[5] Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo (Lisboa: D. Quixote, 2014), Prefácio de G. Lanza Tomasi.
[6] Benedetto, «Da bestseller a classico della modernità: Il Gattopardo», 38.
[7] Ludwig Wittgenstein, Cultura e valor, Biblioteca de filosofia contemporânea 22 (Lisboa: Edições 70, 2019), 73.
[8] Ludwig Wittgenstein, Da Certeza, Biblioteca de filosofia contemporânea 13 (Lisboa: Edições 70, 2012), (144), 163, (613), 339.
[9] Anna Magnani, C. Vaccarella, e L. Vaccarella, Anna Magnani: la mia corrispondenza americana, vol. 1 (Edizioni interculturali, 2005), 30.