Num momento em que readaptação e planeamento são, mais do que nunca, dois motores essenciais de um quotidiano de Covid-19, revela-se igualmente necessário balizar, e com maior definição, qual o foco a adoptar para uma cobertura do IndieLisboa em 2020.

Embora tal decisão não seja, é certo, novidade da minha parte neste espaço, talvez as presentes circunstâncias tenham-me cativado a atenção para os filmes documentais que, explanados pelas várias secções do festival, versaram sobre a memória humana — seja ela de cariz particular, ou na representação de um determinado contexto social, historiográfico e geográfico.

No âmbito do “filme histórico”, os documentários do género found footage foram um notável prato forte do IndieLisboa 2020.
Logo no seu primeiro dia, o festival acolheu o “regresso” de Sergei Loznitsa ao nosso país com State Funeral (2019), obra inteiramente composta por imagens de arquivo – devidamente preservadas no Russian State Documentary Film and Photo Archive e Lithuanian Film Centre – que detalha todo o aparato oficial em torno das cerimónias fúnebres, em 1953, de Josef Stalin. O ineditismo de muitas das situações aqui observadas pela primeira vez (os rostos assombrados e pesarosos de milhares de anónimos cidadãos, as infindáveis manifestações de luto por trabalhadores de fábricas em toda a União Soviética, os discursos daqueles que viriam a ser os sucessores de Stalin ou, mais tarde, expurgados do Partido Comunista, etc.), aliado a rituais de propaganda mais “familiares”, ampliam o retrato de uma teatralidade quase absurda que só os totalitarismos são capazes de gerar. E tal mensagem não é só histórica; reveste-se, aliás, de premente visualização face aos ambientes políticos dos dias que correm.
Com formalismo semelhante, Il n’y aura plus de nuit (2020), de Eléonore Weber, parte dos arquivos de guerras recentes (nomeadamente, as gravações recolhidas por helicópteros franceses e norte-americanos no Iraque, Síria e Afeganistão) para montar um exercício de estilo sobre a “moralidade” dos conflitos armados modernos, onde a realidade assemelha-se a um jogo de vídeo e a nitidez nocturna de perseguição ao inimigo (ou “a noite americana das imagens de guerra”) dá lugar a uma “cultura da dúvida”: quanto mais se observa, mais interrogações existem sobre o que se vê. Foi uma das experiências cinematográficas mais entusiasmantes de todo o festival.
Para os espíritos mais cinéfilos, a secção Director’s Cut proporcionou uma viagem ao cinema popular iraniano, anterior à revolução de 1979, que o tempo e circunstâncias políticas não souberam conservar. Filmfarsi (2019), de Ehsan Khoshbakht, é um filme-ensaio em torno das imagens desses títulos – na sua grande maioria perdidos, logo o que aqui vemos foi extraído do arquivo em VHS do realizador deste documentário, num processo curiosamente designado “VHSscope” –, expondo as principais temáticas de uma indústria virtualmente desaparecida, mas capaz de albergar talentos como Samuel Khachikian ou Masoud Kimiai, e servir de embrião à carreira de Abbas Kiarostami.
Ainda em ambiente found footage, de realçar dois títulos adicionais: Arnold Schwarzenegger – The Art of Bodybuilding (2020), de Babeth M. VanLoo, recupera uma entrevista do “futuro” “Exterminador Implacável”, à margem de um concurso de culturismo, onde se fala do ideal de beleza renascentista à exaltação do corpo humano no cinema de Leni Riefenstahl; e El Año del Descubrimiento (2020), de Luis López Carrasco, que relembra, pela óptica do “velhinho” formato de Video8, as crises político-económicas que abalaram a Espanha em 1992.

No campo do documentário experimental, o IndieLisboa 2020 não descurou as potencialidades desse sub-género, oferecendo um conjunto de títulos que fascina pelo seu trabalho analógico (ambos rodados em assombroso 16mm) em plena “era digital” e, ao mesmo tempo, permite um olhar contínuo do nosso presente e futuro.
Last and First Men (2017), a obra “elegíaca” de Jóhann Jóhannsson, funde experimentalismo com ficção-científica em prol de uma experiência absolutamente sensorial, e com expressiva narração por Tilda Swinton (uma “voz do futuro”, que nos avisa sobre os destinos reservados à humanidade no espaço de alguns milhões de ano), para discutir temas como ecologia, superpopulação, expressão artística e os limites da tecnologia. Baseado num livro de Olaf Stapledon, as próprias palavras do escritor britânico, em todo o seu pessimismo, talvez sirvam de resumo das motivações que, aqui, guiaram Jóhannsson: “Great are the stars, and humankind is of no account to them”.
Do Brasil, Ana Vaz propôs o olhar sobre a memória visual colectiva dos Waimiri-Atroari, povo indígena brasileiro que foi alvo de singular campanha de agressão pela ditadura militar daquele país. Apiyemiyekî? (2020) – literalmente, “porquê?” – é título que nos remete, de imediato, para a situação das comunidades indígenas no Brasil contemporâneo e, metaforicamente, de como a política de natureza repressiva continua a ganhar tracção naquele país.

Da produção portuguesa, destaque obrigatório para Ana e Maurizio (2020), de Catarina Mourão. Dedicado aos percursos pessoal e artístico de Ana Marchand, o filme é um genuíno tratado sobre a eterna busca pelas nossas origens de sangue, operando um exercício de “ausência e presença”, perscrutando fotografias em estilo “Ken Burns effect”, entre a artista e um tio seu, que viveu e correu mundo até ao dealbar do Século XX. Belíssimo trabalho de memórias, pleno de contenção documental, em conformidade com o que Catarina Mourão nos tem habituado desde À Flor da Pele (2006).
Por fim, impossível não salientar a curta-metragem A Rainha (2020), de Lúcia Pires; um mockumentary inspirado numa antiga e suposta lenda do oeste de Portugal que, depressa, resvala para a reflexão acerca do que é mito e realidade e, sobretudo, quando esses dois conceitos se fundem.
Estes olhares sobre o passado, assim como a tendência assumida de dedicar-lhes maior observação, talvez surjam imbuídos da nostalgia que, nos últimos meses, temos acumulado pelos tempos em que “distanciamento” ou “confinamento” eram apenas mais duas palavras no dicionário.
Contudo, o IndieLisboa deste “infame” 2020, na sua “selecção oficial”, provou que a observação do passado é, sempre e também, um acto de comunicar com o nosso presente – e da montagem de imagens de arquivo ao documentarismo mais standard, subsistirá a constante emergência de aprendermos com a História.