A partir do final dos anos 1990, o trabalho do artista português João Penalva começou a acalentar idiomas distantes (russo, japonês, esperanto) e atmosferas de exotismo, sempre na relação entre o texto/narrativa e a composição fixa e longa de um olhar demorado sobre a paisagem (urbana ou rural) e o que nela age lentamente (os transeuntes, o nevoeiro). Penso num trabalho em particular, Kitsune (O Espírito da Rosa) (2001), vídeo de quase uma hora de duração onde uma paisagem seca e devassada por um nevoeiro cinzento revela, ao poucos, algumas árvores que crescem agredidas pelas rajadas que as fustigam, contra o negro da rocha vulcânica onde se enraizaram. Sobre esse “plano sequência à James Benning” ouve-se uma conversa entre dois anciãos japoneses que permanecem sempre fora de campo. Como a imagem e o título antecipam, o diálogo trata de ruralidade e espiritualidade (em particular o cruzamento entre as duas dimensões): os fantasmas do campo. Como explicam os velhos, em determinado momento, “no campo tem-se medo de fantasmas e espíritos de raposas e demónios. Tudo coisas que são sobretudo da imaginação. E na cidade tem-se medo é das pessoas, da maldade das outras pessoas. (…) São o vizinho de baixo, ou de cima, ou do prédio do lado… (…) É a própria realidade que nos mete medo.” No entanto, aquela paisagem nada tem de nipónica. O filme foi rodado na ilha da Madeira. Como escreveu João Fernandes, “A linguagem contribui para o processo de transferência e metamorfose, através da estranha qualidade de uma língua distante. (…) O presente de uma imagem transforma-se em evocação doutros lugares e doutras memórias.”
Sirvo-me desta peça, porque recentemente revi dela um fragmento que encontrou espelho em Surdina (2019) de Rodrigo Areias – uma vez que o filme combina essa duas dimensões de medo, os fantasmas do campo e os terrores da vizinhança citadina. Na conversa dos dois homens em Kitsune, de que nunca conhecemos a face, ouve-se a seguinte história, mais lendária que memorialista: “Havia uma velhota que vivia no prédio ao nosso lado. (…) Costumávamos falar com ela da varanda. (…) Vivia sozinha há muitos anos. O marido tinha morrido. (…) Um dia, deitaram abaixo o prédio ao lado do dela e começaram a construir um novo. Isto levou, sei lá… Uns dois anos… E a velhota começou a estar cada vez mais deprimida com o barulho da construção… (…) Pouco a pouco deixou de falar. Um dia cheguei a casa e a minha mulher disse-me que ela se tinha atirado da varanda e que tinha morrido. (…) Então, uns meses depois, começaram a dizer que o filho ou a filha de fulano e sicrano tinha visto a velhota pela rua abaixo com o saco de compras. E outra criança dizia o mesmo, e juravam todas que era mesmo verdade, até que não havia miúdo lá na rua que não a tivesse visto… Bom… Ou que não dissesse que a tinha visto.”
Neste pedaço de folclore nipónico, cheio de espectros, animais e animismos, reencontro a sinopse do filme de Areias, escrito por Valter Hugo Mãe. Surdina pode resumir-se do seguinte modo: um reformado vimaranense passa os seus dias evitando os amigos casamenteiros e as cuscas vizinhas, entre a solidão de uma enorme casa vazia, um boteco frequentado pelos alcoólicos da terra e o cemitério onde cuida, aprimoradamente, da campa da sua falecida mulher. Até que as pessoas começam a comentar que viram a dita senhora pelas ruas, com outro homem.
A relação japonesa de Valter Hugo Mãe é conhecida, e recente. O ano passado, em 2019, publicou Homens imprudentemente poéticos, romance passado no Japão antigo, depois de, com Miguel Gonçalves Mendes (que assina o prefácio dessa edição) ter viajado ao país do sol nascente (como se costuma dizer) no âmbito desse projecto eternamente adiado, de seu nome O Sentido da Vida. Daí que reencontrá-la, mais uma vez, neste novo filme de Rodrigo Areias não seja de todo surpreendente. O que espanta, isso sim, é o modo como essa relação espoleta uma narrativa fantasmático-orientalista que se enreda, sem pontas soltas, com o contexto português minhoto, numa história de simplicidade rural, quase sem arco narrativo, descrevendo com candura a rotina de um aposentado aborrecido.
A beleza do filme encontra-se na sua inocência despretensiosamente artesanal.
A dimensão literária de alguns diálogos (“as melhores coisas da vida são o sono, o presento e a missa”), a combinação de actores da trupe à parte com as “personagens da terra”, a paleta de cores contrastantes de Jorge Quintela, a música dedilhada de Tó Trips e as descrições pormenorizadas dos costumes do norte (o vinho na malga, a plêiade de palavrões e insultos, os hábitos alimentares, etc.) impregnam o filme de uma comédia doce e melancólica sobre o envelhecimento (numa região progressivamente mais desertificada). Rodrigo Areias, que já se tornou o cineasta oficial da cidade berço (como se costuma dizer, também), fez de Surdina um conto tão triste quanto solar sobre a inevitabilidade do tempo (e da morte), que se acrescenta à série de investidas que o realizador vem fazendo sobre diferentes géneros cinematográficos. Considerando apenas as longas-metragens, houve primeiro o road movie que é Tebas (2007), depois o western alentejano que é Estrada de Palha (2012), o found footage de 1960 (2013), o neo-retro-noir de Ornamento e Crime (2015), o documentário etnográfico semi-ficcional que é Hálito Azul (2018), para agora se chegar à comédia romântica (geriátrica) que é Surdina.
A beleza do filme encontra-se na sua inocência despretensiosamente artesanal (que a curta duração e a económica montagem de Tomás Baltazar aprimoram). Essa desafectação é reforçada pelo modo como os contornos potencialmente mórbidos da narrativa se dissolvem numa cena, que, sendo talvez a mais falhada do filme, é também aquela que revela a dimensão ectoplásmica da figura ausente da esposa. Digo falhada, porque demasiado terra-a-terra, demasiado concreta para a bruma que se havia poisado nesse passado que o velho consigo carregava. Mas, pela deformação do espaço da casa, veiculada pelas grandes angulares de Quintela, pela iluminação acidentada e pela interpretação dissonante de actriz, instala-se uma estranheza que perturba o naturalismo dominante. Fica a dúvida desse regresso, como aparição metafórica de um luto que se espanta para deixar entrar o sol. [Bastava isso, para cobrir o filme de insinuantes espectros, sendo depois um sublinhado desnecessário a criatura voraz que se esconde na casota ao fundo do jardim.]
Independentemente de tudo isto, lembrarei Surdina como o filme do fim do meu confinamento e do regresso tímido à sala de cinema (de máscara no rosto e com a “distância social” como mais uma arma de defesa para o meu parco arsenal da sociabilidade de foyer). Apesar de ter passado dois meses a ver dúzias de filmes, a vontade de me sentar nas poltronas de um cinema latejava-me no corpo. Tinha já saudades de sentir o cheiro da alcatifa velha, de dar novas formas ao ritual da compra do bilhete, de me escapulir discretamente durante os créditos e de cumprimentar de longe (ou fazer conversa de circunstância) com algumas (más)caras conhecidas. Até os risos em alturas estranhas, o desconforto das cadeiras e os restolhares no escuro me faltavam. É, no fundo, uma questão de escala: a tela que nos engole, mas também a gente que enche uma sala (e nos enche também, na sua diversidade). Ver um filme a dois ou a três é diferente de ver um filme a trinta ou a quarenta (que é, também, muito diferente de ver um filme a quatrocentos ou quinhentos). São os olhares (as presenças) que fazem do cinema uma arte performativa. São eles que fazem o cinema.