Kiyoshi Nishimura pertence a um conjunto de cineastas cujo (re)conhecimento, por uma razão ou outra, nunca conseguiu sair do seu país de origem. No cinema japonês, casos como este andam por aí aos montes para azia do cinéfilo que restringe a dieta de visionamentos a três ou quatro nomes e tem depois a pretensão de ter percorrido toda a roda alimentar. Imagine-se o escândalo que era se alguém nunca tivesse ouvido falar de um Martin Scorsese, de um Brian De Palma ou de um Peter Bogdanovich. O que seria do entendimento, retrospectivo e prospectivo, daquilo que poderíamos chamar de cinema americano sem a presença desses vultos da Nova Hollywood? (Eles não foram citados ao acaso, pois os paralelos geracionais com o cineasta desta resenha serão evidentes). Com efeito, não costuma haver vontade quase nenhuma por parte de quase ninguém em investigar esses hiatos para depois reabilitar as margens da História, preenchendo lacunas capazes de subverter juízos. Infelizmente para este pregador no deserto que a vós se dirige entre ecrãs, repetidamente este esforço arqueológico cai em saco roto. Para o arqueólogo-cinéfilo cá do burgo, a memória consiste em desenterrar os mesmos mortos, criando cemitérios com certas campas violadas, e outras, muitas, ao abandono, no esquecimento. Mas vejam, vejam os caixões que faltam abrir e os esqueletos que ficaram por amar.
Desde a sua primeira obra, Shinu ni wa mada hayai (Too Young to Die, 1969), que Kiyoshi Nishimura espantou a crítica japonesa pelo laconismo nos diálogos e pela preponderância da crueza da imagem naquilo que era, apesar de tudo, um filme de acção com um resgate de reféns pelo meio. O seu segundo filme, Hakuchû no shugeki (Attack to the Sun!, 1970), entrou no Top 200 de melhores filmes japoneses de sempre pela conceituada revista Kinema Junpo em 2009 e é considerado, por lá, filme de culto. No entanto, o esquecimento actual de Nishimura, mesmo no Japão, é evidente: apenas quatro das suas onze longas-metragens estão disponíveis em DVD (sem legendas, claro) e sortudos são os que apanham ou gravam as outras raridades em sessões esporádicas na televisão. Duas ordens de razões podem clarificar esta silenciosa negligência. A primeira, como vimos anteriormente, é estrutural. É o mesmo fenómeno de desconhecimento (e vontade de não o contrariar) que explica a ausência nos manuais e nas cabeças de excelentes cineastas (da mesma geração) como Tôru Murakawa, Yukihiro Sawada ou Toshiya Fujita. A segunda razão, porém, é mais peculiar, já que neste caso e ao contrário de outros em que a putrefacção sucede no transporte entre nações e culturas, a água aqui veio envenenada da fonte. Com efeito, Nishimura representa um caso clássico de cancel culture before it was cool, antes mesmo desses autos-de-fé de hoje chamados “redes sociais”.
Em 1987, um escândalo mediático tornou o cineasta em indesculpável monstro quando este foi preso pela polícia por filmar mulheres anónimas numa casa de banho sem consentimento. A partir desse ano, jamais filmaria para o grande ecrã e nem mesmo os pseudónimos que adoptou para esconder o nome ajudaram na aquisição de mais trabalhos no pequeno ecrã, esse exílio dos realizadores sem sorte. Acabou afogado nas águas do mar em 1993 para gáudio de uma sociedade com sérias dificuldades em separar arte de artista e que desconhece por completo a absolvição e o perdão moral. Perversão de carácter e tentativas indevidas de martírio à parte, voltemos o olhar para os fantasmas de néon que Nishimura filmou em Hairpin Circus (1972) e tentemos prestar-lhes a devida homenagem, a única passível de ser feita.
A câmara impressionista e embaciada de Nishimura afunda-se na noite para convocar todas as disposições a ela associadas: a solidão, o desgosto, a incompreensão, mas também uma certa euforia e qualidade épica na ruína. A noite é a pátria dos que a perderam ou querem perder.
Só existem duas hipóteses para um protagonista nos anos 70: ou ele segue activamente e desde o princípio o trilho auto-destrutivo do anti-heroicismo ou é ele mesmo um antigo herói, agora quebrado pelo trauma e que se redescobre na vertigem da violência. Os traumas podem ser vários: sociais – a Guerra do Vietname no cinema americano, o falhanço das manifestações contra o ANPO no cinema japonês -, ou individuais, dizendo respeito à vida privada de cada um, como é, aliás, o caso de Shimao em Hairpin Circus, ex-piloto profissional que assistiu à morte de um colega numa corrida de carros. No entanto, as eras da contra-cultura (como ainda eram os primeiros anos da década de 70) ensinaram-nos que o domínio privado sempre se destila no público e que o último acaba por desempenhar o papel de palco de descontentamento do primeiro. Os dois domínios encerram uma dialéctica pura onde se torna complicado remontar a uma origem, um nexo causal preciso que nos deixe estabelecer um quadro psicológico perfeito. O silêncio de Shimao deixa-nos, portanto, envoltos no mistério.
Agora instrutor de condução, casado e com um filho, o ex-campeão apenas deseja não ser assaltado pelos pesadelos do acidente: a mesma imagem fantasmática do carro destroçado com o piloto disparado para fora, ensanguentado com a mesma cor do veículo que lhe ceifou a vida. A despeito dos pedidos de uma vida monótona apartada da velocidade, essa droga como declara um personagem a dada altura, eis que os flashbacks rastejam por entre a tranquilidade do presente (o uso desse dispositivo dramático só deveria ser permitido quando ilustrando uma memória subjectiva e traumática) e roubam o sono e o sonho a Shimao.
A câmara impressionista e embaciada de Nishimura afunda-se na noite para convocar todas as disposições a ela associadas: a solidão, o desgosto, a incompreensão, mas também uma certa euforia e qualidade épica na ruína. A noite é a pátria dos que a perderam ou querem perder. É o caso do grupo de jovens – liderado por Miki, uma antiga aluna de Shimao – que se diverte a fazer corridas ilegais pela cidade adormecida, acabando somente quando os carros dos adversários perdem o controlo e chocam contra os muros. É esse lado secreto, irreflectido, flirtando com a morte que aparentemente mais contradiz a espectralidade muda de Shimao, um homem que espera morrer na normalidade. Se a tensão entre as duas perspectivas se torna evidente e até se vai intensificando no decorrer da viagem, bem sabemos como, enrolados no manto noturno, frequentemente deixamos as diferenças radicais de parte e acedemos, por instantes, ao caos das outras vidas inacessíveis. A noite é também um princípio de sabedoria duplamente fascinante e aterrador, um horizonte que funde temporariamente o eu e o tu. Portanto, é nela que as almas perdidas encontram o “tesão da vida”, atrás de um volante, olhos postos na escuridão pontuada com as luzes sobreviventes, atingindo uma igualdade na sensação de perigo, nesse vértice em que não podemos deixar de ser exclusivamente enquanto corpos.
Parece-me evidente que Nishimura reencontra aí, nessa jouissance específica, o gosto obsessivo pelo jazz, em particular por aquele que estende a improvisação dos instrumentos ao máximo e se esforça em capturar o êxtase do momento imanente. Nos seus filmes anteriores, o jazz podia ser mood da rebeldia – com o trompetista Terumasa Hino em Hakuchû no shugeki -, ou atmosfera musical de assassinos profissionais – com a Big Band “pau para toda a obra” de Toshiyuki Miyama em Jaga wa hashitta (The Creature Called Man, 1970). Em Hairpin Circus, são as experiências eléctricas de Miles Davis pós-Bitches Brew que vêm à memória nas hipnóticas e livres composições do sexteto do pianista Masabumi Kikuchi. Frequentemente, o som estridente do saxofone soprano de Kôsuke Mine contagia e é contagiado pelo som dos motores que aquecem os ares frios da noite e os pneus que derrapam, hesitantes, no asfalto tornado palco de guerra. Na intensidade de um improviso, na subida repentina de uma escala, encontramos a mesma despersonalização de um viciado em adrenalina. Exactamente a mesma pesquisa e a mesma busca: a busca pelo absoluto.
É por isso que não podemos falar aqui de acompanhamento musical, como quem fala de um prato de batatas que acompanha um muito mais suculento bife, nem tão pouco de ilustração de imagens por via do som. As notas invasivas, melancólicas, histéricas, infectantes de Kikuchi e companhia têm de ser encaradas como um modo diferente de transmitir a mesma mensagem, uma criação em simultâneo, feita à margem, sobrepondo-se e deixando-se sobrepor pelas imagens em movimento (melhor, pelas imagens em velocidade).
Poucos são os filmes que dedicam os seus 25 minutos finais a uma perseguição sem diálogos, nesse momento em que Shimao volta a ser um herói, jogando o mesmo jogo daqueles que repudia e quer castigar. Um herói retorcido, corrompido portanto, mas o único que paradoxalmente ele consegue ser. Nessas sequências em que presa e caçador trocam de lugares, a câmara de Nishimura luta constantemente contra a sua própria natureza estática. Ela própria revela o desejo de ser mais um automóvel entre os restantes, talvez capotar como eles e conseguir, assim, o plano perfeito – é caso para dizer que pouco importa se houve ferimentos ou perdas humanas. Na imensidão dessa noite lânguida e urbana, nas estradas públicas onde se resolvem as malaises privadas, arrebatados pelo som da inquietação, mas em surdina já que as palavras perderam todo o sentido, os olhos descobrem o encanto da proximidade progressiva da morte. É esse o kick da velocidade, cheirar o cadáver em que nos podemos tornar. Mas o cinema pode congelar esse momento e contar-nos estórias sobre a beleza dessa morbidade toda. O cinema pode desacelerar a própria aceleração, não nos tirando a essência mesma da aceleração. É aí que reside o fascínio poético daquela coreografia lenta dos carros de Miki e Shimao num chão gelado, contrariando a intensidade que só encontra descanso na overdose, porém capturando tudo o que ela acarreta. Antes de Hairpin Circus, nunca pensei que um carro pudesse dançar.