António Um Dois Três (2017) começa com um plano filmado através de uma janela de um vagão de comboio que se move nos carris da linha de Sintra, em direcção ao Cais do Sodré. A câmara desliza suavemente para baixo, revelando-nos uma rapariga que dorme com a cabeça encostada a essa tela de um mundo que passa correndo, lá fora. Logo aqui, neste início que faz lembrar um pouco Xavier (1991-2002) de Manuel Mozos, instalam-se duas recorrências que Leonardo Mouramateus não mais abandonará: a janela e a dormência.
São temas que surgirão, ora desavindos, ora juntos, ao longo de todo o filme. Aliás, a combinação dos dois acontece numa mão dolente que se levanta dos lençóis suados do sexo e agarra o puxador de um caixilho antigo e o arrasta, para trás, acompanhada pelo movimento da câmara, numa panorâmica que segue o baloiçar da janela. É dos momentos mais belos (e singelos também) do filme, por aí se traduzir a natureza de todo um projecto: filmar a intimidade como um descontraído abrir de uma janela. Só que nem tudo é tão directo, e como as janelas que se podem sempre fechar e abrir, uma e outra vez, até emperrarem, também a câmara se lança numa coreografia de vai-e-vem que desconcerta a simplicidade dos gestos. E consoante as correntes de ar, a brisa entra e o bafo sai, ou a mosquitagem invade o fresco e os suspiros abalam pelos telhados (ao som do vento que canta nas garrafas de cerveja). Talvez seja melhor então procurar nova fórmula, uma imagem mais justa para os intentos deste filme: mais do que filmar como se abre uma janela, a câmara de Mourameteus é, ela mesma, uma janela que se abre (e se fecha), e no vagar dos gonzos projecta reflexos de luz sobre o interior e o exterior, encandeando os que procuram ver através da sua moldura.
Se parti do primeiro plano do filme (e nesse da mão suada que lhe segue, passados poucos minutos), podia muito bem ter partido doutros, já que António Um Dois Três continuamente descreve o seu processo de espiral retorcida, de formas mais ou menos directas. A começar pelo jogo de mímica que introduz o António do título (Mauro Soares) a Débora, a sonolenta rapariga do comboio (Deborah Viegas), para pouco depois ser numa sala de arrumos de um teatro que o protagonista vai receber guarida para o jogo de representações que está prestes a iniciar-se; seguem-se as repetições dos ensaios que anunciam as repetições da estrutura narrativa (“um dia pedes uma coisa, outro dia pedes outra, depois mudas tudo e voltas tudo a trás” / “Este é o meu método de trabalho!”); as repetições dos diálogos como desafio e jogo de actor; as rimas multiplicam-se nas acções e nos enquadramentos; tudo regressa segundo outras roupagens (e outros suportes de imagem – entre o VHS e a filmagem de telemóvel) e revela-se a chave mestra deste lúdico quebra-cabeças teatral como um “mash up” de textos e de recortes de vida, baralhados de acordo com um caleidoscópico mosaico de sentimentos múltiplos (qual labirinto de contrários e reflexos). Súmula perfeita de tudo isto, antes de atravessarmos a janela que dá para o limoeiro e para um pé descalço nas verduras das pedras, ouvimos: “é como reencontrar um velho amigo, que mantém a mesma forma de andar, mas está irreconhecível… Quando um rio é lento e contamos com um bom cavalo ou bicicleta, sim, é possível banharmo-nos duas vezes, ou até três, se estivermos muito encardidas.”
Repetir, neste filme, é procurar uma extensão da permanência com as coisas, mesmo na inevitabilidade da mudança.
De facto a pergunta que me coloco, neste ponto, é: o que pode a repetição no cinema? E aqui não estou a considerar necessariamente apenas as repetições ao nível narrativo, ou dentro da linearidade (mais ou menos simbólica) da ficção, antes uma repetição que seja disruptiva dessa mesma linearidade. Diria que a própria natureza do cinema é repetitiva. Primeiro é o próprio método das rodagens que trabalha segundo a repetição dos takes (à imagem do teatro). Depois, é da natureza do cinema a sua reprodutibilidade técnica, e como tal tanto a materialidade do cinema é repetível como a experiência cinematográfica se funda na possibilidade da reprodução. E ainda a própria noção de direitos de autor, associada ao cinema, está intimamente ligada com a repetição (no cinema mudo os direitos eram sobre os argumentos, que eram refeitos ciclicamente, e mesmo hoje, com a prática disseminada do remake, reboot e spinoff tudo trabalha sobre as roldanas da repetição e da variação.
Mas a repetição também é contrária à própria natureza do cinema. Formalmente ela só surge com o moderno cinema das vagas novas e das vanguardas segundas. De facto, a repetição contraria um dos axiomas do cinema como experiência em sala: a direcção unívoca e contínua da película (ou do DCP…). Repetir é próprio de uma outra experiência do cinema, feita em casa, por um espectador de comando em riste (ou de mão no rato). Laura Maulvey descreve esta relação com a imagem cinematográfica como a de um “espectador possessivo”, paredes meias com o fetichismo da apropriação. Mas a repetição em António Um Dois Três nada tem de possessivo, pelo contrário, e roubando a provocação a Graig Uhlin, ela é, acima de tudo, uma repetição “dispossessiva”. Repetir, neste filme, é procurar uma extensão da permanência com as coisas, mesmo na inevitabilidade da mudança. É uma atitude que traduz uma vontade de impedir que a univoquidade dos dias (e do filme, e do teatro) os leve para longe dos nós. Mais, repeti-los é poder partilhá-los. Daí as estratégias de repetição e variação, que se apresentam como formas literais de permanecer com as pessoas, por mais diferentes que se tenham tornado, e com os sentimos que por elas se nutre, por mais maltratados que fiquem(os).
Manoel de Oliveira, na longa entrevista que deu origem ao livro Conversations avec Manoel de Oliveira de Antoine Baecque e Jacques Parsi, afirma, sobre Mon Cas (O Meu Caso, 1986) – um filme em perfeita sintonia com António Um Dois Três – que este “é precisamente uma visão prismática da palavra e da imagem, da vida e da representação da vida (…). Na vida nós somos espectadores e actores. O espectáculo passa pela palavra porque é a vida.” O filme do realizador portuense parte da peça O Meu Caso de José Régio e de extractos de Pour En Finir Encore et Autres Foirades de Samuel Beckett e outros d’O Livro de Job do Antigo Testamento, assim como o filme do realizador cearense constrói o tal “mash up” com fragmentos de textos e peças de Augusto Monterroso, Fiódor Dostoiévski, Nicanor Parra e Roberto Bolaño. São filmes onde tudo se mistura num “divertissement” teatral, onde o mesmo vai sendo desenvolvido de 3 (+1) modos diversos e onde pessoas e personagens se baralham ao ritmo da encenação do real e da realidade do teatro. E se também aqui o texto tem momentos recitativamente oliveirianos, está bem longe do peso do “método do distanciamento emocional” e da simples meta-referêncialidade. Mouramateus dança no gume da faca que [descasca a laranja como Borgat em In a Lonely Place (Matar ou Não Matar, 1950)] e reparte o cinema entre a aridez do formalismo e a goma da ternura, pendendo (felizmente) para a segunda. Coisa rara.