A angústia do espectador perante uma programação recheada de propostas desafiantes de cinema. O Doclisboa oferece uma virtualidade de caminhos que podemos percorrer, de secção para secção, de filme para filme. A minha tendência investigativa tem-me levado nos últimos anos a apostar sobretudo nas retrospectivas. Graças a isso, tenho descoberto tesouros preciosos enterrados bem fundo na história do cinema documental. Mas este ano a minha estratégia mudou. Porquê? Porque a programação desta edição assim o pediu, nomeadamente por causa da extraordinária colheita em matéria de cinema português. E, posso agora confirmar, não é mesmo só a quantidade que impressiona: a qualidade dos filmes que aqui trago, maioritariamente portugueses, é reveladora de um cinema que entra agora numa fase de notável amadurecimento. A amostra que convoco nestas linhas, dez filmes ao todo (no total das duas partes desta cobertura, com cinco títulos cada), denota uma sensibilidade no tratamento dos seus temas que só pode ser merecedora de aplauso. Mas vamos por partes.

Antecâmara (2018) de Jorge Cramez
Tudo são “actos de cinema” para Jorge Cramez naquele que é o seu filme-ensaio feito a partir de “imagens perdidas” das rodagens de Em Segunda Mão (2012) e Cisne (2011). Sem especial contextualização ou qualquer comentário, Cramez mostra o ritual da preparação de um plano, situações em que o cinema se constrói, o espaço off do espaço off. Pontuando algumas cenas com um ou outro apontamento humorístico, propiciado sobretudo pela pista sonora, que anima o que se vê enfatizando a presença de certos objectos no cenário, ou dos pequenos gestos de actores e da equipa de produção, Antecâmara (2018) é um filme assombrado por fantasmas. Desde logo, pela presença de Pedro Hestnes num filme de Catarina Ruivo cujo título podia ser o deste, de Jorge Cramez. Imagens apropriadas, a preparação de uma rodagem feita filme, filme sobre múltiplos stand ins protagonizados pelas suas realizadoras: Catarina Ruivo por um lado, que várias vezes surge em campo para interagir com os seus actores, e Teresa Villaverde por outro, que irrompe no quadro para harmonizar um caos que ali se forma. Estas aparições das realizadoras, em face dos gestos “perdidos” dos seus actores, e o vulto de um fantasma do cinema português, rosto-símbolo de toda uma geração, fazem de Antecâmara um documento a guardar. Fica, contudo, a sensação final de que mais podia ser “animado” nesta experiência de (re)apropriação antefílmica. Não digo que devesse seguir as pisadas, bem radicais, de um Cuadecuc, vampir (1971), mas falta uma dimensão de filme – uma direcção que segure a experiência elusiva de fazer um filme em segunda mão… – ao gesto que aqui se promove de revivificação do não visto/assombramento do visto.
Por falar em assombramentos, é interessante ver como o documentário de Laurent Achard sobre Jean-Claude Brisseau, mostrado com o filme de Cramez precisamente (boa jogada da programação), acaba por se debruçar mais sobre os fantasmas da vida do que sobre a vida ela mesma. E que fantasmas são esses? Desde já, os da sua cinefilia e do seu mundo de recordações paracinematográficas. Por exemplo, Brisseau conta a certa altura como, na infância, teve o seu primeiro contacto com o paranormal, ao predizer uma explosão que pintaria com tons de tragédia a sua infância. Brisseau – 251, Marcadet Street (2018) é um filme que traz no título a ideia de uma morada, lugar onde o cinema da vida e a vida do e no cinema de Brisseau ganha espessura. O documentário começa em “modo de preparação”. Conversas “cândidas”, descontraídas, com o realizador vão preenchendo o tempo morto em que se prepara a câmara, luzes, “actores”, em que se encenam os passos a dar no instante em que, “luzes, câmara, acção”, o mestre maudit do cinema francês contemporâneo irá responder a todas as questões. O documentário evita o modelo da “entrevista de vida” – é uma das marcas da série de que ele faz parte, Cinéma de notre temps, concebida pelo falecido André S. Labarthe e Janine Bazin. Algures entre o modelo candid e a entrevista cinéfila, Brisseau – 251, Marcadet Street acaba por se revelar menos uma oportunidade de conhecer Brisseau do que um motivo para reouvirmos as suas ideias, muitas já nossas conhecidas, nomeadamente a propósito dos mestres da sua cinefilia, como Ingmar Bergman e Alfred Hitchcock.

Objetos Entre Nós (2018) de Júlio Alves
Na curta portuguesa Objetos Entre Nós (2018) cristaliza-se o esforço de um retrato. Mas aqui valem tanto as ideias como os objectos. Aliás, apetece dizer que o filme de Júlio Alves busca no pensamento do retratado, o professor e ensaísta José Bragança de Miranda, uma concretude, uma palpabilidade, que se reverifica na sua história de vida, que aqui apenas entrevimos, contada em objectos (uma faca, uma caneta, uma carteira, uma fotografia…). O dispositivo, mais simples e directo que o do filme de Laurent Achard sobre Brisseau, permite-nos aceder a um espaço do íntimo, mais concretamente, o do pensamento de Bragança de Miranda, que parte e expande a nossa noção de objecto como qualquer coisa que existe para lá de si mesma, incorporando uma memória ou engendrando um conjunto de acções. Sobre uma fotografia, do filósofo ainda pequeno ao lado da sua irmã, Bragança de Miranda conta uma história com o seu quê de paracinematográfica: o momento em que furou – como Édipo – os seus olhos na fotografia, sendo que anos depois ficaria – ele, o referente – cego de uma das vistas.
Por várias vezes, o professor universitário fala de uma força “enigmática”, dificilmente definível, que nos liga aos objectos, algo que o cinema eleva a uma nova potência em certos filmes. Bragança de Miranda cita dois realizadores, acima de todos os outros: Alfred Hitchcock e Roberto Rossellini. Em particular, cita o episódio de L’amore (O Amor, 1948), adaptado de A Voz Humana de Jean Cocteau, em que uma narrativa de desamor se desenrola ao telefone e nessa arena de convulsa emotividade que é o rosto eterno de Anna Magnani. Sem esse objecto, a história não faria sentido, repara o filósofo. Algo semelhante podia ter sido dito por Brisseau, que, não caindo na interessante categoria de “cineasta dos objectos”, é alguém que procura nos seus filmes o mesmo tipo de afecção (religiosa afecção) dos corpos, da palavra contra o corpo, do corpo contra a palavra. Se o filme de Laurent Achard é um digestivo amenamente interessante para conhecermos o seu sujet, o filme de Júlio Alves é uma condensação charmosa de uma constelação de ideias que, ao fim do dia, faz o homem.

Terra Franca (2018) de Leonor Teles
Outro retrato, outro tipo de movimento, de gesto ou amor, enforma A Volta do Mundo Quando Tinhas 30 anos (2018), o mais recente filme da cineasta de ascendência japonesa Aya Koretzky. Se um filme anterior da realizadora como Yama No Anata (Yama No Anata – Para Além das Montanhas, 2011) falava sobre uma certa lonjura que define a cineasta, problematizando a relação desta com as suas origens, aqui esta “pede boleia” à memória do seu pai acerca daquele que terá sido um dos anos que mais decisivamente moldaram a sua visão do mundo: uma viagem pelo mundo que fez aos 30 anos sem qualquer outro fito que não a descoberta de outras paisagens e outros modos de vida. A lonjura ganha aqui outros contornos, na medida em que o filme olha a memória pelo retrovisor de um álbum de fotografias e de um diário escrito pelo pai da realizadora. É um mergulho no passado, mas também nele se lança um olhar sobre o que é hoje a vida deste homem japonês a viver em Portugal e sobre a relação que mantém, sem se resolver, com a ideia de pátria. Em certa medida, a tal viagem, muito concreta, que este fez pelo mundo ressalta no presente não com a força da realidade, mas, pelo contrário, com a força de uma metáfora. Uma metáfora que, muito compreensiva, nos permite entrever a relação que este homem mantém com as suas origens e com a sua família, a começar por esta filha que agora filma a sua história. Tudo o que volta e anda à volta neste filme de Koretzky – quase apetece dizer, “dos Koretzky”, pai e filha – constitui um pequeno grande acontecimento neste festival. Um banho de terno (ternura portuguesa?) e de solene (solenidade nipónica?) amor à vida.
Mais um retrato de um homem e mais um acto de amor (e ternura) pelas mãos de uma auspiciosa jovem realizadora. Falo de Terra Franca (2018), de Leonor Teles. Desde logo, o título é de uma enorme felicidade, porque o que mais comove aqui é a franqueza desta que é a primeira longa-metragam da realizadora do multipremiado Balada de um Batráquio (2016). Neste retrato de um pescador, que se vê impossibilitado de exercer a sua profissão, encontramos a generosa frescura de um olhar. Este homem é pescador, mas também é marido e pai. O filme de Leonor Teles olha para esta pessoa – pessoa inteira – como um todo, captura a respiração e o tempo da sua vida. Um amigo meu, perante o meu entusiasmo por este filme, que me deixou com um sorriso no rosto após a sessão, dizia-me: “é bom, mas não é nada d’outro mundo”. Também ele não podia ser mais feliz na escolha das palavras: Terra Franca é um filme inteiramente “deste mundo”, um elogio à vida a partir do retrato de um homem bom. Não cai – como cai algum cinema de João Canijo/Anabela Moreira, por exemplo – na tentação de exaltar a bonomia, e eventual profundidade, destas pessoas vistas como “gente simples”, porque o filme de Leonor Teles não procura qualquer tipo de demagogia. Muito atentamente, a câmara olha, de igual para igual, para este homem com o intuito de o mostrar tal como ele é, dispensando discursos de algibeira ou fascínios bacocos “de cima para baixo”. Entre silêncios, olhares, comentários, perambulações reais ou sonhadas no estuário do Tejo, acedemos à vida do protagonista que, além da presença de estrela de cinema, tem o carisma das pessoas francas e boas. A bondade dele é a bondade, e generosidade, do filme. Saímos daqui reconciliados com a vida. Filme deste mundo? Sim, de um mundo que também queremos nosso.
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[…] de tudo de obras que estabeleceram diálogos interessantes comigo e entre si. Como já fiz notar na primeira parte desta cobertura, desta vez privilegiei a produção portuguesa, dado esta marcar presença em força nesta edição […]
[…] mas também sobre muito mais, sobre todos nós. Lia antes de ver o filme o que o Luís Mendonça escreveu sobre Terra Franca aquando da sua exibição no Doclisboa, que era “um filme inteiramente […]
[…] Play Doc, Zurich, La Rochelle, Dei Popoli e Mar del Plata, tendo tido estreia nacional no Doclisboa e passado também pelo Porto/Post/Doc. Ricardo Vieira Lisboa e Luís Mendonça (por ordem de […]