A certo ponto do filme, uma jovem rapariga está a mostrar um edifício a um rapaz, a explicar-lhe as razões pelas quais acha o tal local importante, enumerando factos históricos sobre a sua arquitectura. Porém, o rapaz interrompe esta apresentação em modo de guia turística, perguntando-lhe directamente porque é que ela gosta realmente do edifício, além de um ponto de vista objectivo, além do que ele chama de uma análise intelectual. Ele quer saber o que é que a comove, porque é que ela escolheu aquele sítio entre tantos outros. Ela pensa durante alguns segundos. Depois, não ouvimos a resposta, mas vemos e percebemos que é algo importante, íntimo porventura. É o segundo momento definidor do filme, porque aproxima estes dois estranhos. Esta subjectividade da análise, que no fundo é a base da nossa relação com qualquer obra de arte, como com o cinema, que vai além da apreciação da duração dos planos ou do ritmo da montagem, é algo profundamente humano, e algo que o filme procura evidenciar através da relação entre estas duas personagens.
Normalmente, dizer que um filme é belo parece ser algo simpático quando não há muito mais para elogiar. Aqui, o filme é belo não só pela qualidade da encenação e da serenidade da fotografia, pela forma como os enquadramentos contam a história, mas também pela relação entre as duas personagens principais, num momento peculiar para cada um.
O primeiro momento significativo do filme surge pouco antes, durante uma pequena conversa de apresentação. A tal rapariga está à porta do local de trabalho durante uma pausa, e oferece ao tal rapaz um cigarro. Estes começam a andar, a percorrer uma pequena cerca que os divide, e a câmara, num filme quase inteiramente de planos fixos, move-se ao lado dos dois, como naquele único plano em Tôkyô monogatari (Viagem a Tóquio, 1953) em que a câmara se move, quando acompanha o velho casal a percorrer um muro junto ao mar. Esta não deverá ser uma simples coincidência. Apesar de Columbus (2017) ser a primeira longa-metragem de Kogonada, o sul-coreano era já um nome conhecido pela sua série de fabulosos vídeo-ensaios sobre alguns dos mestres do cinema, como Kubrick, Bresson ou Tarkovsky. Um dos seus temas preferidos era precisamente o cinema de Yasujirô Ozu, cineasta a quem dedicou um desses ensaios, Ozu // Passageways (2012) [disponível aqui], sobre a forma como Ozu utilizava os corredores como elemento importante para organizar o espaço e as personagens nos seus filmes.
Columbus é um filme feito a regra e esquadro, de composições cuidadosamente estudadas, de ritmos calculados e que usa de forma perspicaz os chamados pillow shots, os planos de interligação entre cenas através de imagens de diferentes cenários. Colocando a arquitectura e a importância e apreciação de certas obras no centro de várias conversas, é um filme dedicado à forma como o espaço e a geografia agem sobre as pessoas e as influenciam , e vice-versa. É um filme em que aquele cliché de dizer que cada plano podia ser um quadro para colocar na parede aplica-se na perfeição. Mas isso é no plano objectivo, a tal análise intelectual apenas de factos. Normalmente, dizer que um filme é belo parece ser algo simpático quando não há muito mais para elogiar. Aqui, o filme é belo não só pela qualidade da encenação e da serenidade da fotografia, pela forma como os enquadramentos contam a história, mas também pela relação entre as duas personagens principais, num momento peculiar para cada um.
Ela é Casey, numa interpretação memorável de Haley Lu Richardson, uma rapariga perto dos vinte anos que trabalha numa biblioteca de uma pequena cidade no meio da América igual a tantas outras, não fosse a quantidade de edifícios significativos de traço modernista e que lhe despertam o interesse. Terminado o secundário, deixou-se ficar por casa enquanto decide se quer prosseguir os estudos e a janela de tempo para o fazer começa a fechar-se, dividindo o tempo entre o trabalho e a companhia da mãe, com quem vive, num estado semi-indefinido de suspensão. Ele é Jin, um impecável John Cho, um rapaz perto dos trinta, que está de regresso à América para acompanhar o pai, um famoso arquitecto sul-coreano que adoeceu numa visita a Columbus, e que jaz agora inconsciente num hospital local. Enquanto espera por novidades em relação à saúde do pai, com quem já não falava há mais de um ano, navega pela cidade meio perdido, à espera de definir o seu próprio futuro. Ele começa por confessar a Casey que nunca ligou muito à arquitectura, em parte pela sua relação fria com o pai, e esta propõe-lhe mostrar os seus locais favoritos na cidade.
Jin parece amargurado pela natureza da sua relação com o pai, das expectativas criadas à sua volta em seguir os mesmos passos, e pela interrupção forçada de um distanciamento que tinha escolhido. Vê-lo a ocupar o quarto deixado vago pelo seu pai, rodeado das suas roupas e possessões, numa estalagem antiga que sublinha o confronto entre o velho e o novo, da mesma forma que os edifícios modernistas o cercam na cidade, reforça essa inquietação. É neste ponto que chegamos ao terceiro momento definidor do filme, quando Casey leva Jin a ver o seu edifício preferido, um corredor suspenso no meio do nada, local onde regressa frequentemente como uma segunda casa, como um refúgio. Naquela que é a sequência fulcral do filme, Kogonada abandona a encenação elaborada para reduzir tudo ao essencial e cedendo o espaço aos actores, dividindo a acção em dois momentos: primeiro, um longo plano ininterrupto de vários minutos dentro do carro, e depois, com os dois ao lado do carro a olharem para o tal edifício, num jogo com a profundidade de campo.
Casey recorda os problemas da mãe durante uma relação anterior com um ex-namorado violento e os problemas de abuso de substâncias que se seguiram. Esta confessa que a razão pela qual se deixou em ficar em Columbus foi por temer que, caso fosse embora, a mãe fraquejasse. Esta é afinal uma história de uma filha que recusa sair de casa para tomar conta da mãe, um clássico nos filmes de Ozu. Porém, Casey revela também que durante os tempos difíceis dessa altura, da depressão que sofreu ao lidar com esses problemas, o fascínio por aquele edifício tornado um templo pessoal salvou-a, levou-a a interessar-se pela arquitectura. Que encontrou aí a porta para ver o mundo de uma forma diferente, uma nova perspectiva e espaço para respirar e viver. Esse interesse pela vida parece despertar algo em Jin, que procura o seu próprio espaço para respirar. Esse é afinal também o papel do cinema, os filmes como edifícios transformados em monumentos, como janelas para vermos algo de forma diferente, novas possibilidades, mas também como uma segunda casa, como um refúgio ao qual regressamos.