Applause (1929)
Kitty Darling está grávida quando perde o marido. Poucos anos depois, envia a filha criança para um convento em Wisconsin, onde ela será alvo de uma educação que não poderia ter no meio em que a mãe trabalha, o teatro burlesco de Nova Iorque. Desde os primeiros minutos, estamos em pleno território do melodrama maternal.
O filme lida com a dupla possibilidade de Kitty desiludir a filha e de a contaminar com a imundície do showbiz. No entanto, a dimensão imunda do burlesco não parece possuir aqui um carácter maioritariamente moral, mas sim estético. Quando é forçada a regressar a Nova Iorque muitos anos depois, a filha April, já adulta, não parece rejeitar este universo devido à indecência ou à obscenidade que lhe são inerentes, mas sim porque a fealdade e a baixeza do espectáculo a repugnam. Deste modo, o filme desenvolve uma noção de melodrama que assenta menos em esquemas morais maniqueístas, e mais numa ideia particular de sensibilidade e de estilo. Este novo entendimento representa um corte com o grosso do cinema melodramático dos anos 10 e 20, e aproxima o filme de Rouben Mamoulian das concepções modernas do género que viriam a ser praticadas essencialmente a partir da falência do paradigma clássico, por cineastas como Douglas Sirk, Pedro Almodóvar ou Wong Kar-Wai.
Não obstante, a estrutura narrativa de Applause ainda é perfeitamente clássica, contando inclusivamente com um “vilão”. Devido às maquinações do amante da mãe, April acaba por tornar-se bailarina de burlesco, evidenciando o fantasma deste filme, que é o mesmo de, por exemplo, o caso paradigmático de melodrama maternal, Stella Dallas (O Pecado das Mães, 1937, de King Vidor): a possibilidade de o destino da filha coincidir com o da mãe. No horizonte destes filmes há, assim, uma insuspeita estrutura de duplos, que problematiza a inevitabilidade da repetição e o cumprimento do destino. Parece matéria da tragédia, mas não é [Blood and Sand (Sangue e Arena, 1941) aproximar-se-á mais dessa esfera], porque o melodrama oferece, ao que parece, a possibilidade da redenção.
Não obstante April tornar-se bailarina de burlesco na parte final do filme, ela acaba por não cumprir o destino da mãe, acabando por se reencontrar com o noivo do qual tinha abdicado para cuidar daquela, cumprindo assim a sua própria, bem-sucedida e redentora, trama amorosa. Nas sequências finais, a dimensão fantasmática do filme é sublinhada pelo uso expressivo de retratos.
O amante de Kitty, que é também seu manager, abandona-a, demitindo-se. A carreira dela, diz-lhe, terminou. “You’re a joke. You’re just a fat old woman. Look at yourself in the mirror. Look at that neck, look at them wrinkles. I guess I got everything out of you I want. I got plans and they don’t include any old blondes.” Estando agora demasiado velha, diz-lhe ele, a única alternativa possível de ganhar a vida será obrigar filha a substituí-la nos palcos. Esta conversa é testemunhada por um retrato no qual se vê Kitty no auge da sua beleza física, que contrasta com a aparência envelhecida de agora. Depois da saída do amante, ela encara o retrato. A filha entra e anuncia-lhe que decidiu não casar, contrariamente ao que estava planeado, porque deste modo poderá permanecer junto da mãe. Esta compreende que a filha ouviu a conversa tida momentos antes, que a fez aperceber-se finalmente de que terá de se sacrificar, sucumbindo ao burlesco, para sustentar a mãe. A filha sai com a intenção de romper o noivado, e Kitty permanece no quarto, a contemplar os retratos dispostos na sala: os seus, os do amante que corrompeu a sua vida e a da filha, e por fim o de April. Pouco depois, envenena-se.
Na última cena, depois de April ter substituído a mãe no espectáculo – ninguém sabe ainda que esta se suicidou –, o noivo reúne-se inesperadamente a ela no backstage, não tendo, afinal, partido no paquete mais próximo, como havia decidido durante o episódio da separação. “Take me away from this terrible place”, diz-lhe ela. Quando ele lhe pergunta porque terminou o noivado pouco antes, ela responde: “it’s mother. I can’t go away and leave her now. She’s sick, she needs a home.” Ele diz-lhe: “then let her come with us. That will be swell. Let’s go in and talk to her. I bet I can make her see it our way.” No último minuto de filme, esta conversa desenrola-se ironicamente num momento em que a mãe está morta – e em que, portanto, April está paradoxalmente livre –, e acontece ainda junto ao cartaz de um número de Kitty, no qual a sua imagem não só testemunha o diálogo da filha (eles dizem: “we’ll always be together, won’t we? All three of us!”), como, num régard caméra hipnótico, dialoga silenciosamente com o espectador. O seu sorriso cúmplice é o de quem assiste ao happy ending, com o orgulho de saber ser sua a responsabilidade por ele. E, assim, este torna-se o happy ending de April, mas também – e em especial – o de Kitty. Ao sacrificar-se altruisticamente, e garantindo assim que a filha terá a vida que sempre sonhou para ela, Kitty afirma-se como a heroína do seu melodrama. Um travelling para a frente apaga o casal de campo, isolando a imagem da mãe antes do fade to black final. Os aplausos do título são para Kitty.
The Song of Songs (1933)
The Song of Songs trabalha os trânsitos entre duas figuras: uma mulher interpretada por Marlene Dietrich (Lily), e a estátua que um escultor (Richard) esculpe tendo-a como modelo.
Na verdade, o filme trabalha, no seu desenvolvimento, uma radical confusão entre estas duas figuras. Quando, num momento de crise de inspiração, o escultor olha para Lily no seu primeiro encontro, fica perplexo. Diz-lhe: “there was something about you as you stood there that… that was almost an idea.” Quando olha para Lily pela primeira vez, ele não vê a mulher que está à sua frente, mas outra coisa, quase uma ideia. Trata-se de uma ideia de arte, evidentemente. Ele detecta nela a força dos arquétipos, uma estátua em devir.
Quando Lily chega ao atelier para posar pela primeira vez, ele já realizou um esboço em que ela está nua (“oh, I haven’t any clothes on” [ela refere-se à figura no desenho como se fosse ela mesma, apontando já para a sobreposição entre a mulher e a imagem que o filme desenvolverá]). Surpreendida com a fidelidade – não propriamente mimética, mas anímica, digamos assim – do desenho, exclama: “how did you know I was like that?” E quando ele lhe pede para explicar o que ela quer dizer com isso: “oh, it’s wonderful! It’s the way I want to be. It’s me as I dream of me.”
Percebemos, neste momento, que não estamos apenas perante a situação mais usual em que o pintor antevê a arte no modelo. Aqui, o modelo descobre-se na obra, passando a reconhecer em si um carácter representativo e, em última instância, radicalmente icónico. O uso de Marlene Dietrich agudiza o jogo, uma vez que ela se encontrava então em pleno ciclo de sete filmes realizados por Josef von Sternberg (entre Der Blaue Engel [O Anjo Azul, 1930], e The Devil is a Woman [O Diabo é uma Mulher, 1935]), o qual, certamente mais do que qualquer outro conjunto de filmes na história do cinema fez por outro actor, contribuiu para consolidar a imagem desta actriz como uma figura paradigmática de cinema, isto é, como um ícone. De certa forma, o tema do filme torna-se também, não propriamente o ser actriz – uma vez que ser actriz é outra coisa, que (felizmente) não diz respeito a Dietrich –, mas sim o ser criatura de cinema, de arte, de sonhos (“it’s me as I dream of me”).
O filme progride, e as duas figuras evoluem de formas distintas. Depois de iniciar uma relação com o artista, Lily – que era órfã, pobre e não tinha educação – é obrigada a casar com um aristocrata que não ama, mas que lhe possibilita aprender línguas, aprender a montar a cavalo, tocar piano, em suma, tornar-se a senhora que nunca supusera poder ser. Mais tarde, porém, ela foge do marido, tornando-se cantora de cabaret e regressando à base da escala social. Enquanto Lily sofre estas metamorfoses, a estátua, por seu turno, mantém-se cristalizada.
A sequência final encena o reencontro de Lily – então uma fallen woman – com a sua efígie. Quando ela a vê, vê-se a si mesma, não como é hoje, nem sequer como era no momento em que o mármore foi esculpido, mas sim – lembremos o que ela disse no início do filme – como ela se vira nos seus sonhos. A estátua atesta o falhanço da sua vida, uma vida que é efectivamente uma espécie de morte. Quando Richard diz que nunca parou de a amar durante todos os anos que duraram a separação, ela responde: “then you love somebody who’s dead. I’m dead, do you hear? Dead. I am dead. What right has she to live?”
Ela está como morta porque a estátua (“she”) vive. E o que vivifica a estátua são os sonhos cristalizados de Lily. Ela tem de destruir a escultura para aniquilar os domínios do sonho e da idealização que a estátua instaurou na ordem do (seu) mundo, e nos quais ela ficara também encarcerada. A estátua é destruída violentamente, e o fim do filme promete um novo início. “We’ll begin again here.”
Blood and Sand (1941)
O primeiro plano de Blood and Sand começa com a câmara sobre um poster. Um travelling revela que o poster não está afixado numa parede, mas sim no tecto de um quarto, directamente por cima da cama onde uma criança, deitada, olha para ele. Na parede há a cabeça de um touro, cuja sombra se vê na parede adjacente, sobre uma cruz. Um grande plano sobre a cara do rapaz alterna com um grande plano do poster, num campo/contracampo que prossegue com um novo plano sobre a cara do rapaz, desta vez a olhar para a cabeça do touro, e um plano aproximado da cabeça do touro. A expressão no rosto do jovem muda de acordo com o elemento que encara: cumplicidade ao olhar o poster, e desconfiança ao olhar o touro. Um novo plano sobre o rosto dele mostra-nos que ele observa um estoque ao seu lado. Segura-o, levanta-se e faz um sinal respeitoso para o poster, investindo depois contra o touro na parede. Neste momento, ouve-se a voz da mãe a chamar por ele.
Com uma economia notória, o filme não só exibe os elementos que se revelarão fulcrais no seu desenvolvimento, como apresenta – através de recursos formais como o travelling, o campo/contracampo e o fora de campo – as tensões e as dinâmicas que terão lugar. O registo de significação é o do símbolo. Afixado no tecto, directamente em frente do rapaz, o poster funciona como uma espécie de espelho mágico onde ele se vislumbra. Trata-se de um poster de promoção do seu pai, Gallardo, que fora um toureiro célebre antes de morrer colhido por um touro. Mas a partilha do nome, bem visível no cartaz (o filho também é Gallardo), sugere, desde logo, que naquele poster podemos ver o jovem, que será toureiro como o pai. E será toureiro, por um lado, para ser tão célebre como fora o seu pai agora caído no esquecimento, mas também, por outro lado – e percebemos isto através das expressões distintas com as quais encara o poster e a cabeça do touro na parede –, como forma de vingar a sua morte. Pode pressentir-se desde logo, em Gallardo, a vocação para uma vida que funciona unicamente ao nível do simbólico: viver para vingar a morte do pai traduzir-se-á em tornar-se toureiro, matando o Touro (e não “touros” – porque estes nunca passarão de uma ideia) repetidamente, ao longo de anos, numa performance – a tourada – que é, em si, um ritual simbólico que ocorre, de certa maneira, fora da esfera do mundo.
Correspondendo à sua vocação mítica, Gallardo dissocia-se do mundo e acaba por levar uma vida zombie (“I am dead”, dizia Dietrich). Do lado da vida permanece sempre a mãe, cuja voz interrompe o ritual fantasioso que ele pratica nesta cena de abertura. Ela é – como serão, mais tarde, as duas mulheres que se intrometerão na sua vida, uma oferecendo-lhe a carne e a outra oferecendo-lhe os valores da religião – o ruído melodramático que a vida das pessoas comuns instaura na sua existência trágica.
O núcleo de Blood and Sand concentra-se nesta sequência inicial, e o filme não fará mais do que confirmar a promessa que se insinua nos primeiros minutos. Materializando a sugestão de identificação inicial entre pai e filho, este último tornar-se-á efectivamente toureiro e será tão célebre como fora o seu pai. Mais tarde, o filme mostrar-nos-á retratos e posters de Gallardo que, ao nível mais simples do entendimento, comprovarão o seu estatuto de estrela, mas que deixarão antever, àqueles que foram sensíveis às pistas lançadas no início, que o processo a que se está a assistir aqui é o da transformação de Gallardo numa espécie de imagem, numa progressiva perda de humanidade, como se o seu destino fosse tornar-se um herói trágico. Em The Song of Songs, ameaçara-se a criação de um cenário em que a mulher seria definitivamente substituída pela imagem (pela ideia, como dissera o escultor); contudo, a estátua fora destruída e a mulher libertada. Tal como em Applause, o melodrama triunfou. Em Blood and Sand, a ameaça do filme anterior concretiza-se inteiramente: Gallardo ultrapassa a fronteira ténue entre ser o vingador e o substituto do seu pai e o ser o seu próprio pai (uma ameaça que, como vimos, existia também em Applause). Tal como a mãe temia que pudesse acontecer, ele torna-se efectivamente o seu pai e morre colhido por um touro no final, cristalizando-se definitivamente em imagem, ou, segundo o escultor do outro filme, em ideia. Pai e filho são configurações do mesmo arquétipo.
Há, no entanto, uma particularidade interessante no esquema que Mamoulian desenvolve em Blood and Sand. Contrariamente ao que acontece no filme de 1933, o mundo de imagens que este filme propõe é um mundo sem aura. Tornar-se imagem, no final, não significa necessariamente atingir a imortalidade. Tal como o seu pai fora esquecido depois de morto, e substituído por um novo toureiro, que o próprio Gallardo substituiria mais tarde, também Gallardo é substituído no final por um novo toureiro, seu amigo de infância. Não deixando progenitura, Gallardo não pode sobreviver na memória de um filho (como o pai sobrevivera na sua), mas sobrevive na memória da sua viúva: “To me, he’ll never be dead”, são as palavras ditas por esta no final do filme, que termina assim com uma inesperada identificação cruzada entre Gallardo e a sua esposa, enquanto depositários da memória de outrem.
Tal como Heitor, Gallardo procurou imortalizar-se na esfera pública através da arte da guerra e, para tal, precisou de descurar a esfera privada. Porém, na esfera pública – e aqui difere de Heitor –, ele será rapidamente esquecido, sendo na esfera privada que sobreviverá. E, contudo (e ironicamente, uma vez que a família repetidas vezes lhe implorou que deixasse a tauromaquia), ele será apenas lembrado na esfera privada com o estatuto de herói trágico que só pôde alcançar na esfera pública. Tal como ele próprio não lembrava o pai enquanto pai, mas sim enquanto mito – um herói que se mitificou numa morte sacrificial –, também Gallardo será lembrado por essa mesma via.