Là où la raison se revele impuissante, où la logique s’évanouit, où la morale n’a rien à voir, là où règnent l’obscur, l’inconscient, l’inavoué et l’inavouable, comment analyser? Mieux vaut montrer.
Bory sobre Cavani
(…) où l’on reconnaît le désir de la bourgeoisie: culpabiliser l’Histoire. La culpabiliser, à défaut de l’arrêter.
Pascal Bonitzer, “Histoire de sparadrap”, Cahiers du cinéma, 250
Conhecemos a réplica de Volonté, intelectual perverso ma non troppo em Faccia a faccia (Cara a Cara, 1967), àquele que ‘precisa’ torturar e matar: “Há razões maiores para eu fazer o que devo fazer. Talvez você não entenda; são razões de Estado’. O ‘non troppo’ se deve a uma intuição bíblica: lembram-se de que Lúcifer, no Génesis onde tudo começou e haverá de arrematar-se, é o anjo da luz? Volonté traz para a tribo outsider um método e mediações tardias, e a converte num clã de bastards iluministas: sim, um reino da luz. Aquele seu olhar de águia sequiosa de presa é um gume predatório afiado pelos elementos, porém não mais miméticos; são o teorema, um parágrafo de Tomás de Aquino, uma fachada de Le Corbusier os seus viperinos dardos de destruição. Ele apodera monstruosamente aquilo que, no terrorismo autóctone do personagem de Thomas Millian, ainda é clássico campo e contracampo de duelo, assalto improvisado, “infra-estrutura” da reação; não vêem que, na sequência em que, morta a mulher, joga-nos à face o dinheiro, o scope agora se estabilizou em tribuna inconsútil, de onde o ruseiro senador romano, robustecido pela vitória na guerra púnica, adquire o direito e dá-se os meios retóricos de propor o estado de sítio? Exibição anabólica da ultra-potência do logos, e não mais correspondência dialogal no humano embate do contracampo, mesmo que a bala e facada. Ele arregimenta as margens para o centro, e funda um sistema: é o homem da superestrutura. Sollima nos leva a inferir (sim, Faccia é também filme de génio ensaístico) que a violência e a Summa não se excluem, que o sistema é antes o telos secreto de toda desarrazoada força, como Sade sistematicamente nos ensinou, e que nada deterá a aliança entre o duque de Blanchis e o pietista Immanuel Kant. Mas há métodos para o Método, como exercícios para adestrar o espírito: Sollima no-los dá a ver, como Loyola outrora a recitar; sim, pois neste découpage densamente colorido, onde o Dovjenko das cerimónias festivas “ao sol e vento outonal”, os embates duelísticos “ponto de vista do senhorio” onde se sacrificam inocentes (a criança) e tribunas fordianas ora pro nobis de incitação popular se cortejam indiferentemente, o que se deve antes ver são escalas, indexes, vectores do inexorável avanço da força, agora elevada à enésima potência metastática pela mediação. Faccia a faccia coteja dois itinerários da Força, dois destinos da vontade de potência e duas políticas resultantes deste embate que a modernidade tão bem trabalhou, até quase ser por ele liquidada: sim, da Realpolitik.
Sollima começa o filme nesta cena que alguns poderiam tomar pelo palazzo de um doge em Veneza ou a mansarda de um ogre que é também o senhor do burgo, mas que é antes de tudo o proscénio onde Volonté experimenta os dons oratórios, de persuasão aliciante e silêncio intimidante que acabarão por fixá-lo como o único pater familias que seus alunos jamais terão: sim, esta é uma sala de aula mas também um bunker para arregimentar as ruses necessárias ao mundo lá fora; o Professor está se despedindo, e podemos pensar que, neste espaço iniciático (para os meninos) que um compungido volonté percorre com passo taciturno, Sollima sintetizou a ataraxia claustral de séculos de intimismo pictórico e teatral. Certo classicismo do entalhe rugoso na pedra da catedral, da ogiva gótica, do vitral hagiográfico (que encerra a mesma, quando Volonté se contempla no vidro da janela) são usados em seu esmero cerimonial para reconstituir uma cena paterna detournée; será o “mundo”, porém, a prova de fogo definitiva deste pater familias fascinante, pois não foram nos campos abertos do “plano sequência e locação” que o classicismo da cena huis clos se provou verdadeiramente como arte do embuste fascinatório? Avanti!
A cena seguinte é, não mais cerimonial-hagiográfica, mas citadina e “casual’; porém, será? Volonté está esperando a diligência local, lenço à cabeça e iminência da exaustão; ele discorre como um dandy exilado, mas é Milian, aprisionado e teso de raiva na carroça, quem vai trazer a mediação decisiva para a cena do deserto: expedito, saca do revólver e sequestra Volonté para o carro. A partir daí, “devemos ler” que Sollima mobiliza um certo inconsciente deontológico da tradição spaghetti, filhos em Leone anedóticos e devedores de clins d’oeil facilmente paródicos; mas aqui finos ironistas sages: é contrapondo nos extremos do scope as duas figuras, agora inegavelmente arquetípicas, ou segundo a oposição plongée e contre-plongée, que Solima, servindo-se do plano como révelateur da força, vai nos dizer que são antes de tudo figuras opostas e complementares e, como veremos, portanto intercambiáveis.
A figuração é também uma arte do interdito, como do nomos, do ethos, do onto; ela presentifica o invisível na avariada carne da imanência; em cinema, não raras vezes é uma empreinte metafísica. O guerreiro do gládio e o maître do logos são agora este que estende a mão aprisionada para ensinar ao outro a atirar, como também aquele que espreita o inimigo à frente do campo ou à esquerda atenciosa para ensinar ao guerreiro que mesmo no no man’s land do western, credor de ruses miméticas, as ruses mediadas são necessárias; sim, a contenção metódica, o industrioso gosto pelo método e a implacável submissão à regra que fizeram do burguês um monstro na utilização eficiente da força. São Tomás fala no final da Summa teológica da relevância do habitus, que actualiza a potência do ser; é humanizando-se que o homem se torna homem. É o que acontece aqui: Volonté, no mais das vezes à espreita do scope, vista averiguadora, observa, afere, e finalmente suspende o julgamento do conceito, tornando-se ele agora um de seus alunos; “(…) vejamos no admirável spaghetti de Sollima, onde um tal mecanismo- eu vejo, logo tomo consciência– é pervertido e ridicularizado ao ser repetido ao longo do filme” (Daney). A lição nesta primeira parte quem dá é principalmente Millian, mas o movimento propriamente fascinante do filme consiste em reproduzir aquele sinuosamente reptiliano identificado por Nietzsche na constituição do espírito ocidental: assim como foram os cristãos, seres de catacumba que a vida esqueceu quem, esgueirando-se pelas margens dos anfiteatros romanos, acabaram por corroer a gloriosa força bárbara, este rés-do-plano onde se entrincheira um Volonté aprendiz será a plataforma de sombra e de recuo necessária à sua revanche tenebrosa.
Estas provas de aprendizagem primordial, aferidas visualmente no in extremis “traseiro versus frontal” do scope ou telescopiadas segundo a contre-plongée valorativa, vão finalmente estacar em um plano frontalmente dividido por ambos; é quando Volonté atira num homem, e adquire o direito de compartilhar um site com o mestre. Mas agora que Volonté abandona a margem, sucede-se ao primário um aprendizado secundário, que mobiliza a mise en scène segundo um prisma diferencial de aufheben, onde, acampamento no deserto, saloons, escritórios de negociatas são reivindicados como decores genéticos de Realpolitik: é adestrando-se como acólito, mediador político e “depósito” monetário, ocasional amante de beldades selvagens, que Volonté vai adquirir o jeu e o fair play necessários à obra em negro da ratio; um professor é a princípio aquele de que os homens da razão prática devem se servir (médium, instrumento de) para a consecução de seus fins de poder; e a perversão característica do filme vai consistir em que o “médium2 vai acabar por instrumentalizar os fins, como corroer o sistema tout court. Nada é, evidentemente, straight descritivo-organogramático como informo aqui porque, embora seja a rigor um filme de tese, Faccia a faccia é, como Beyond a reasonable doubt (A Verdade e o Medo, 1956), Faustrecht der Freiheit (O Direito do Mais Forte à Liberdade, 1975) e Les bonnes femmes (As Bolas Mulheres, 1960) também um estudo entomológico suculento sobre o humano submetido a situações extremas de temperatura e pressão, e portanto mais poroso a “revelar-se”; vária agora é a cena, como cheio de peripécias o découpage e plástico o scope para figurar este decisivo aprendizado. É a práxis quem engendra o monstro, porque o prova no mundo, adestrando-o às intempéries do devir e da alteridade; o cinema, arte originariamente “de mundo”, comparece aqui como arena (de boxe, de perseguição amorosa e fuga criminosa) onde um homem “entre homens” se experimenta capaz de reinar; é por isto que falo da coalescência afectiva ou mesmo libidinal do scope no filme: ele está disposto a recuar impetuoso, como precipitar-se improvisado ou, hierático “vista de”, apostar no cerimonial representatio para estar à altura deste bólibo de adaptação Realpolitik que Volonté deve se tornar, porque este é o destino da força que este representa; Millian, um ginasta natural que a selva engendrou, não precisa de tantos exercícios “miméticos” de adaptação ao meio; é por isso que agora no mais das vezes ele contempla, com um certo cepticismo divertido, o “trabalho’”do companheiro para elidir o trabalho da mediação e, agora finalmente presente, tornar-se um cavaleiro ou guerreiro, enquadrável em tantas gestas épicas do cinema de género.
Volonté deve aprender a viver; daí o investimento libidinal em cortejar a moça que a princípio lhe é indiferente, como lutar com o brutamontes; o habitus aqui, nesta arte de presenças e de forças, deve ser também da ordem da pujança sensual,e não apenas do método realista; é este aliás o génio “de tese” de Faccia a faccia; na grande parte de sua metragem, ele centra tudo nos processos de adestramento e experimento físicos do cinema de acção, necessariamente indispensáveis, no reino de pedra e poeira do western, para uma Realpolitik eficiente; é a acção presente, cinética, sensual a mediação suprema para a consecução do sistema; se Sollima aqui se serve tanto da temperança clássica do plano geral (retrabalhado embora “pulsionalmente” por reenquadramentos e intrusão háptica do zoom, como nesta genial sequência vista da cadeia ao final) quanto da tensão embólica dos médios é porque o projeto totalitário aqui visado necessita também deste adestramento grandeur nature diferencial, como omnívoro e maleável; afinal, não devemos retomar aquela intuição católica com que iniciei este texto, e saber que Lúcifer é o anjo da luz?
Nos primeiros parágrafos do 18 Brumário de Luís Bonaparte, lemos: “Os homens fazem sua própria história.(…) Mas eles não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas em condições diretamente dadas e herdadas do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa muito gravemente sobre o cérebro dos vivos. E mesmo quando eles parecem ocupados a transformar a si mesmos e às coisas, a criar algo de totalmente novo, é precisamente nestas épocas de crise revolucionária que eles evocam medrosamente os espíritos do passado, que lhes tomam emprestado seus nomes, seus mots d’ordre, seus costumes, para aparecer sobre a nova cena da história sob este travesti respeitável e esta linguagem emprestada. É assim que Lutero tomou a máscara do apóstolo Paulo, que a Revolução de 1789 a 1814 se vestiu sucessivamente da toga da República romana, depois da do Império romano e que a Revolução de 1848 não soube fazer nada de melhor senão parodiar às vezes 1789, às vezes a tradição revolucionária de 1783 a 1795”.
Neste parágrafo admirável, as intuições a reter para mim cristalizam-se em noções como romanceiro, repetição, cena; sim, a História é este grande teatro imanente que, à semelhança do cósmico, vibra segundo o leitmotif do mesmo, refratado embora pela alteridade épocal; Hitler não tentou repetir César como neo-classicista (croquis de Speer o provam ad libitum) tardio? A impossibilidade desta repetição perversa redundou no kitsch das paradas nazistas, confirmando o diagnóstico marxista da “tragédia como farsa”. A História também descreve este romanesco genealógico, onde a tópica família dos heróis “de ocasião” (Napoleão, Lenin) se prolonga e reverbera miticamente nos arquétipos ühr de César, Ciro ou Nabucodonosor, família de origem. E é a repetição que inextricavelmente relaciona ambas as instâncias de leitura do passado, e decide da boa ou má “sorte” desta hermenêutica viva: Hitler repetindo César, ou Lutero São Paulo; estas figuras da avant garde histórica solicitam a retaguarda da origem como seus modelos inspiradores, pater famílias norteadores, modelos cognitivos e políticos para reler o mundo e decidir de seu destino, que às gerações futuras caberá, por sua vez, reapropriar-se hermeneuticamente.
Faccia a faccia também se trabalha nesta repetição genealógica; o exemplo que dei no começo deste texto do “novo César” me parece bom para começar. O que devemos ler na protuberância insolente da mão de Volonté segurando o maço de notas é que a morte da mulher (durante a desastrada fuga) agora é um pré-texto para um discurso exaltado na tribuna romana, como para a contradita da oposição ruseira que, malgré elle, não pode deixar de admirar um tanto embevecida o senador que tomara a palavra; Sollima começa tudo onde se deve: na profundidade de campo onde, escoltado pelo povo (como um político à espreita do golpe, ele sabe da necessidade de estar “situado”, em contacto com suas bases como arregimentando tropas), o homem é a princípio este pace cerimonial e palavra oracular do apóstolo dos gentios, que acumula carisma para desperdiçá-lo brevemente em acção militar; ele caminha, e a câmara o flagra volteando o pescoço, para ver o efeito causado, mas também para ensaiar-se melhor a partir da cena oclusa do metteur en scène; a bolsa de dinheiro é um tropo, que ele manipula ora com facilidade acintosa, ora empunha em troféu e, finalmente, para liquidar a réplica dos que se lhe opõem, segura as notas em um close “ponto de vista do charlatão no Elisir d’amore de Donizetti”: sim,a plateia; sim, um tribuno.
Mas é na cena seguinte, onde “sacrifica” um opositor, que Volonté vai nos dar uma repetição decisiva para afirmar seu poder total, pois não apenas devedora da ruse política, e sim da escatologia bíblica. É uma lição para a comunidade reconciliada a forceps pela morte do opositor, mas também uma figuração hagiográfica do necessário sacrifício que se pode solicitar do povo em momentos de crise; o homem é amarrado em cruz contra a madeira – e preciso dizer de que supliciado se efectiva a repetição aqui?-, e Volonté encarna agora Poncio Pilatos, governador de Judeia, político ruseiro por excelência, credor absoluto da Realpolitik do “E o que é a Verdade?” Mas a questão ontem metafísica e valorativa do procurador humano, decorridos tantos séculos (trabalho dialético da diferença histórica) decai ou revela enfim seu substrato político irredutível, que a palavra inspirada bíblica edulcorara; Volonté fala em razões de Estado, e de Bismarck a Hitler e agora Merkel sabemos do que ele nos fala. A coalescência plástica a que me referi se figura nesta distância variada do eixo da câmara, que ora nos dá o homem como centro da arena comunitária (planos esparsos dos espectadores, recitando a lição), ora estóico sob a tortura (sim, como o duque de Blanchis, Volonté nos oferece uma lição excelsamente espiritualizada, convertendo o corpo do supliciado numa Summa de humores-mediações); ora finalmente prestes a se converter pois, à mercê deste Pilatos agora untuoso e de palavra beatífica que talvez já antecipe – repetição agora prospectiva – Torquemada ao confessar um infiel, o infeliz aprende pelo esprit da palavra sussurrada de Volonté aquilo que a lettre de seu corpo machucado já sabia de cor.
O que o espírito do texto nos fala é da absoluta necessidade do que se consuma aqui, apesar de toda a piedade e mesmo empatia “fraterna” que um Volonté Sumsun Corda nos sugere ter para com o homem; sim, “são razões de Estado; você sabe”. Agora, podemos rever o décor e reler o primeiro discurso da cena inaugural do filme, na sala de aula; não foi justamente a superestrutura da educação e cultura a mira privilegiada de regimes como o nazismo e o estalinismo, interessados em cooptar metafisicamente ab ovo o povo? Sim, podemos pensar, como Jesus filho de Sirach, que o verme já habitava o fruto, e saber que a Realpolitik superestrutural regrediu um tanto à infra-estrutura da práxis e, encarnada em uma cena agonística, persegue ainda o mesmo projeto totalitário de domínio; e por que “regrediu”? porque o western é um género encarnado por excelência, terra à terra como corpo a corpo, lugar de origem como de fim. O que Sollima genialmente nos dá é uma genealogia do Mal metafísico e político; paulatina, sinuosa mas certeiramente, ele nos reconduz dos cimos da superestrutura ideológica para as bases ardilosas, como as ententes somáticas, deste apocalipse que a ratio totalitária tentou tantas vezes impor à comunidade humana; sim, des raisons d’état.
Ao final, Faccia a faccia se retoma na cena de origem, como de toda origem: o deserto. Sollima mobiliza gestas festivas da origem, do Griffith de The battle (1911) e The massacre (1912) ao Walsh de The Big trail (A Pista dos Gigantes, 1930): uma caravana, a extensão infinita sob o céu e o sol e uma vida inteira por recomeçar. Mas não para Volonté, excessivamente calcinado pela Realpolitik; “Pode haver salvação, mas não para nós “(Kafka). A decisiva mediação é este tiro fatal dado por Milian no companheiro de “armas”; um tiro de misericórdia para acabar piedosamente uma vida luciferina devotada ao logos ou, pensemos antes, a última e bem recitada lição de um aprendiz estudioso? O verso e o reverso da lição Sollima nos deu: Milan também aprendeu que deixar Volonté vivo era condenar toda a comunidade. Como aquele judeu truculentamente realista que nos deu tantas obras-primas românticas, ele sabe que, chegados a extremos tais de deserto e de hubris, é preciso matar o cão branco.
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