3 705 736 326. Num tempo em que toda a gente anda doida a contar calorias, horas de sono, passos e ritmos cardíacos, posso muito bem começar por revelar aqui, num contributo exclusivo para os adeptos do “quantifield self”, que o YouTube me informou que fui a pessoa 3 biliões e tal a ver o vídeo mais popular de toda a história do dito canal. Embora existissem coisas muito giras a dizer acerca dos primeiros segundos de Despacito de Luis Fonsi e Daddy Yankee – nomeadamente, a misteriosa razão que leva o videoclipe a começar com um menino a ir buscar um pato a uma capoeira, ou aquele travelling lateral que vai da nossa senhora à moça gostosa que insufla a inspiração do nosso “cantautor” – não vou cair na tentação da semiótica. A razão de começar por este compêndio de rabos, danças e favelas embranquecidas pelo filtro do exótico-mas-bom é precisamente para tentar escavar a razão pelo qual Fonsi é o senhor 3 biliões (e a contar, que só eu ainda lá, provavelmente, mais umas quantas vezes antes desta crónica acabar), enquanto que todos as musiquetas que até hoje já abordavam os mesmos interessantes temas (os mesmos apêndices corporais e as mesmas cenas pseudo-eróticas em discotecas dos arredores) não têm senão o remédio de comer o pó de Fonsi. Porque será?
É o algoritmo… estúpido! (Digo eu para mim, não para vós, que vocês estão fartos de saber destas coisas). Ao que parece os algorítmos andam aí e vão-nos comer. Ou melhor, vão sugerir-nos o que comer. Ou o que ver: vai um Despacito? O problema dos algoritmos é que neste estado da evolução tecnológica eles analisam e comparam as grandes massas de dados digitais (os famosos “big data”) e propõem soluções quase exclusivamente com base em critérios quantitativos de eficácia e com referência às amostras de informação colhidas anteriormente. Ou seja, como diz esta senhora aqui ao lado, “eles repetem as nossas práticas” e “automatizam o status quo“. Isto é, a experiência passada é aquilo que os algoritmos irão analisar para prever e sugerir/perpetuar hipóteses de futuro. Assim, por exemplo, as mulheres e os negros, infelizmente, vão continuar a ser vistos como minorias com menor importância e eu vou ter de continuar a levar com o Luis Fonsi. Se ele foi visto por 3 biliões, vai ser sugerido mais vezes do que aquele vídeo muito engraçado em que o Foucault prepara um tabuleiro de copos de água para oferecer a uns entrevistadores holandeses em sua casa. Parece evidente, não?
E nem de propósito, foucauldianos. É que tem sido ele o “alvo” de actualizações constantes para integrar os receios que esta questão nos aporta. A governamentalidade torna-se “governamentalidade algorítmica”, a biopolítica já é “bio-higienismo algorítmico” e o pan-óptico devem “panoticismo digital”, onde as relações de vigilância se fazem através da informação que a nossa pegada digital deixa por aí. Os algoritmos estão aí, qual papão verídico, actuando sobretudo em duas grandes áreas. Primeiro, eles permitem formar esse sistema de vigilância mais apertado sobre os comportamentos dos utilizadores dos sistemas informáticos. Segundo, os algoritmos aperfeiçoam a máxima eficiência na capacidade de sugerir o que eu vou querer comprar, ouvir, pensar. É um marketing que devém “neuromarketing”, uma “economia da atenção” que já não a procura captar, antes a solicita, directamente, e a delegação, a um sistema automático, das nossas escolhas e – tão ingénuo que era o zapping da televisão (!) – das nossas percepções.
Mas descansem, de certeza que nem tudo é mau. Não vale a pena ficar a pensar em ir buscar uma caixa de fósforos e umas latas de atum e abrigar numa cave até que passe a tormenta. É um pouco como o dilema do ovo e da galinha (quem não se lembrar o que é um ovo e uma galinha, sugiro, algoritmicamente, que procurem na lista de emoticons do facebook). A tecnologia vai dar cabo da malta ou vamos finalmente atingir a “racionalidade absoluta, universal e … algoritmica”? Os media são extensões do homem ou escrevem uma versão qualquer balofa, amorfa e “burra” do homem? Talvez o “ou” não faça sentido, pois que é entre a luz iluminista e a treva medieval que se faz o cinema. Ele é a articulação da luz e da sombra e essa articulação é o precioso instrumento da montagem e da composição.
E despacito, despacito chego aonde me interessa. Se o desafio hoje é introduzir critérios éticos (e de correção das anomalias) na análise dos “big data” que os algoritmos levam a cabo (e que muitas vezes levam a escolhas automatizadas aberrantes), o mesmo se pode dizer do problema da gestão da informação. O acesso à informação deveio sobre-estimulação e agora parece que só há duas opções: o empreendedorismo 24/7 ou a gruta zen. Se o acesso à informação deixou de ser um problema, ele foi substituído pela questão do que fazer com essa informação. O espectador emancipou mas… o que fazer dessa emancipação? Tweetar, postar? Mas qual o conteúdo para esse gesto? Ele anda aí, mas é um “most wanted prize”. Os mixes e os remixes da vida tiveram uma certa graça enquanto se acreditou nos pós-modernismos mas agora há que perceber que o tempo em que um cão cantava “We Are de Champions” passou. Ou seja, deixou de ser bizarra curiosidade e é apenas mais cimento para a obra.
O filósofo Bernard Stiegler utiliza um palavrão para descrever o processo de inscrição de uma inovação tecnológica na sociedade e sua transformação em algo que marca uma época. “Double redoublement épokhal” (não me peçam para traduzir). Cada vez que surge uma inovação tecnológica – neste caso, revolucionária como o digital – surgem temporalmente dois períodos distintos de “desdobramento” do presente. O primeiro corresponde à suspensão dos protocolos que até então regiam as normas sociais, técnicas e psíquicas, produzindo um rasgo, um choque tecnológico, o qual se traduz numa certa desorientação. Num segundo momento, essa nova tecnologia começa progressivamente a ser integrada no tecido social, normatizada, estabelecendo-se à volta da sua utilização todo um conjunto de regras e de terapêuticas de uso (sim… a palavra terapêutica é muito discutível). No fundo, passa-se de uma necessidade imediata de adaptação a um processo de adopção mais reflexivo e normalizador. É o que parece hoje acontecer com a internet e aquilo que outrora nos deixava todos excitadinhos: todos os filmes do mundo à borla, yeah!, todas as músicas disponíveis, yeah! redes sociais, yeah!
E é aqui que entra esta crónica, com este nome um pouco enigmático-parvo, “raccords do algorítmo”. Quando “tudo” (ou a ilusão da totalidade) está acessível, tudo é (em teoria) passível de ser ligado, “montado” com tudo. A filosofia abastado-urbana do “less is more” corresponde a cuidarmos das nossas ligações qualitativas, em detrimento das quantitativas. O que vou procurar fazer nesta crónica é compor o poder de sugestão dos algoritmos (de espaços como o YouTube, Vimeo e outros), com ligações de natureza pessoal, coisinhas sentimentais, lamechas, irritantes, diria, numa palavra – irracionais. Pois que se trata da construção de um “algoritmo pessoal” (um não-algorítmico, uma vez que não funciona com critérios definidos à partida) recorrendo sempre a imagens – fixas ou em movimento – necessária e imediatamente disponíveis online, um mapa das minhas afecções e do meu corroído cérebro, oscilando entre a paciência do monge e a demência do lunático. Ready?
Quando David Lynch cozinha quinoa, o que acontece? À partida eu diria, muito simplesmente, magia. Lynch entra no seu próprio “programa de culinária” e como é da praxe nestes formatos vai dizendo tudo o que está a fazer: encher a panela com água, pôr sal, medir a quantidade de quinoa, etc. Mas o preto e branco, com estes últimos a queimar, e a fina melodia progressiva trazem o transtorno lynchiano para um momento de idílio doméstico. E as palavras codificadas do género transformam-se. Frases como “it’s such a good pan” ou, quando vem cá fora à espera que o repaste cozinhe, “Just sitting, taking a smoke, thinking of all those little quinoas bubbling away.”, ganham um contorno bem bizarro, um sinistro-apetitoso. Nem vale a pena falar da história que conta, numa noite jugoslava nos anos 60, sobre traças do tamanho de sapos e uma bizarra paragem de comboio. David Lynch é um cozinheiro meticuloso e tudo se prepara com a exactidão de uma bomba: “now I’m gonna look at the clock. The clock says 7:34. At 43 I’m gonna put these broccoli in”.
A suspeita de que algo possa correr mal – não falo do esturricar de vegetais e sementes, mas sim de mortes e do medo de que alguma natureza morta ganhe subitamente vida -, sobe de tom quando Lynch abre uma gaveta da cozinha e diz: “Now, I’m gonna open the drawer and get a little knife”. Quase nem a vemos, a “little knife”, mas os brilhos da cena fizeram-me lembrar outros brilhos, os da faca experimental e psicanalítica, a faca que é também uma chave, e que muito resplandece nas mãos de Maya Deren, naquela loucura que é Meshes of the Afternoon (Tramas do Entardecer, 1943).
Não tenho espaço para mais e por isso deixo-vos apenas com mais uma dica. Vejam este tesouro incrível: Joseph von Sternberg ilumina um plano mas fala bastante do seu método de direcção de actores. Sobre a exaustão e como os deixa à mercê, a ordem dada aos olhares. Agora vejam o que diz o Jacques Derrida sobre a utilitária “american attitude” e a sua ligação ao cinema. Allez-y! Action! Ao contrário do que pedem os americanos aos professores sobre um qualquer assunto – “could you please, elaborate?” – eu termino aqui por agora. Todos estes raccords, mais mentais do que com valor cinéfilo-artístico, estão longe de fazerem grande sentido. Contudo, têm uma característica que muito prezo: são meus e é deles que, nos próximos meses, vai tratar esta croniqueta.