No Cinema City Campo Pequeno, o cinema encontra-nos antes mesmo de entrarmos nas salas. Os átrios, as bilheteiras e os corredores estão decorados com cenas de blockbusters americanos, o City Bar evoca um diner, com os assentos de automóvel e um balcão ladeado por duas estatuetas de Oscar monumentais, e por todo o lado há esculturas de figuras da Disney e muitas outras personagens evocativas daquele cinema de fantasia habitado por monstros, piratas e guerreiros. As salas, por sua vez, têm nomes (Kids, Scary Room e Love) e as correspondentes decorações temáticas nas paredes e cadeiras. Detalhe importante, na Scary Room há colunas nas costas das cadeiras para garantir que os sustos nos sobem pela espinha acima.
Esta tentativa de imersão total no mundo do cinema através da decoração intensiva dos espaços é a pedra de toque do grupo israelita que explora a marca Cinema City em Portugal através da New Lineo Cinemas. A empresa opera no país desde 1997, período em que começou a exploração de cinemas em Famalicão, Paços de Ferreira e Viseu. Introduziu a marca “Cinema City” entre nós em 2004, no CC Beloura (inaugurado em 2004), a que se seguiram as salas do Campo Pequeno (Março de 2007), Leiria (Abril de 2007), Alvalade (2009) e Setúbal (no centro comercial Alegro, desde Dezembro de 2014).
A Cinema City é uma criação dos irmãos Moshe e Leon Edery, distribuidores, exibidores e produtores desde os anos 1970 e fundadores da United King Films, responsável por dezenas de filmes israelitas como Beaufort (2007) de Joseph Cedar, ou Lebanon (Líbano, 2009) de Samuel Maoz. Em Israel, existem três cinemas Cinema City integrados em grandes centros de lazer em Glilot, Rishon-Lezion e Jerusalém.
Das vinte e cinco pessoas que trabalham no CC Campo Pequeno (entre arrumadores, serviço de bilheteiras e bar), apenas três têm acesso às cabines e, dessas, apenas uma começou a carreira no tempo da película. Jorge Pires, 45 anos, é um dos quatro gerentes deste cinema. Cabo-verdiano nascido em Benguela, guarda boas memórias de muitos filmes do Trinitá vistos no Cine-Teatro Monumental daquela cidade, um dos três cinemas onde, em 1952, se inaugurou a projecção em CinemaScope em Angola. Jorge começou por fazer carreira no futebol, como guarda-redes. Jogou nos juniores do Clube Nacional de Benguela e dali seguiu para o Sporting Clube de Espinho (no tempo do treinador Manuel José) e depois para o Sacavenense, da 3ª divisão, em 1990/91. Obrigado a parar por causa de uma lesão, estudou hotelaria e, em 1992, ouve falar de uma oportunidade de emprego na Lusomundo. Entra nesse ano para o Mundial, como arrumador, mas a polivalência que continua a ser norma em muitos multiplexes levou-o à cabine onde aprendeu a projectar 35mm. Ainda fez exame para obter a carteira profissional no sindicato, mas já para a categoria de gerente.
Durante a visita às cabines do Campo Pequeno vamos encontrar, num velho cacifo, uma fotografia de Jorge, fardado com camisa branca e gravata preta, junto a um dos projectores Philips do Mundial. Fala-nos das cabines daquele cinema onde não haviam, de início, automatismos para mudar a objectiva ou as janelas, nem para o arranque da sessão, luzes, som. “Nada”. Ainda se lembra, por isso, da novidade que foram os sistemas de grande capacidade DGB da Cinemeccanica, onde se carregavam filmes inteiros em bobines verticais e, depois disso, dos pratos horizontais. Mas a grande memória dos seus tempos no Mundial é o recorde de permanência em cartaz do filme Il Postino (O Carteiro de Pablo Neruda, 1994) de Michael Radford. Estreou em Outubro de 2005 e ficou mais de dois anos em exibição.
Além do Mundial, Jorge trabalhou ainda como gerente nas Amoreiras e nos Alfas, recordando desse período os cargos muito especializados e hierarquizados (dos gerentes aos arrumadores, passando pelos chefes de turno) e o peso das rotinas e dos procedimentos burocráticos (das comunicações internas às folhas de ponto). Está no Campo Pequeno desde a abertura, em 2007, e aqui trabalhou sempre como gerente. Inicialmente, sete pessoas asseguravam a projecção em película, já com vários automatismos típicos da última geração de multiplexes de 35mm. A transição para a projecção digital fez-se no Natal de 2009, com Avatar (Avatar, 2009) de James Cameron.
A projecção digital pode ser uma tecnologia recente e ter avançado muito em poucos anos, mas já tem a sua própria história.
É altura de visitar as cabines deste cinema, de certeza o único do mundo construído sob uma praça de touros. A entrada faz-se pelo lounge VIP, no primeiro andar, onde se serve um cocktail exclusivo e se acede às zonas reservadas das salas 1 e 2, em que as cadeiras são substituídas por poltronas reclináveis de pele e os suportes de copos por pequenas mesas de madeira. A terceira porta dá acesso à primeira cabine, comum às salas 1 a 4. Corredor em S, tecto baixo e a zona de segurança delimitada por uma banda vermelha pintada no chão, tal como numa fábrica. É nesta primeira cabine que está o último projector de película, um Christie P356PS, já desmontado. Os projectores digitais também são deste fabricante americano, de modelos lançados por volta de 2012 (CP2200, CP2220, CP2230), mas também de dois dos últimos modelos da primeira geração (CP2000) da Christie: um CP2000X de 2005 e um CP2000ZX de 2007. A projecção digital pode ser uma tecnologia recente e ter avançado muito em poucos anos, mas já tem a sua própria história.
No final desta cabine, nova porta para um corredor de ligação com vários equipamentos de climatização. Mas mesmo aqui, como já acontecia na primeira cabine, há cartazes de cinema em quase todas as paredes livres, colocados pelas equipas de projeccionistas que inauguraram as salas, memória do tempo em que estes corredores, agora silenciosos, estavam cheios de gente.
Ao entrar na segunda cabine temos uma enorme surpresa. Em vez de um novo corredor, espera-nos um espaço muito amplo, de planta rectangular, do tamanho de um campo de ténis, talvez um pouco maior até. “Podiam organizar-se aqui jogos de futebol”, comenta Jorge, rindo, mas cheio de razão. Junto de nós, o projector de uma das salas Kids (6). Através da vigia, vemos lá em baixo um bando de crianças a brincar à apanhada em frente ao écran, tempo de intervalo. E mal se consegue ver o outro projector ao fundo da cabine (sala 7), os seus contornos vagamente sugeridos, de um lado, pelo pequeno monitor do servidor e, do outro, pela luz que é reflectida pela vigia. A meio deste espaço abre-se, à esquerda, um pequeno recanto onde estão os dois últimos projectores, das salas 8 e 5 (Love e Kids). Como o espaço é muito pequeno e os projectores, apontados em direcções opostas, estão muito perto um do outro, as imagens reflectidas nas vigias de uma sala contaminam o que se projecta para dentro da outra. Para resolver esse problema, um telão publicitário foi colocado entre as duas lanternas, recebendo assim as imagens reflectidas da vigia. Quando é preciso fazer um ajuste num dos projectores quase parece que uma das imagens se transformou numa pessoa de carne e osso. Uma das melhores vídeo-instalações que já vi.
Quando pensei que já tinham terminado todas as surpresas deste CC Campo Pequeno, Jorge Pires pergunta se sabemos das “outras coisas” que ele faz aqui. Sabemos, porque a conversa começou por ai, ainda no City Bar, que os gerentes são responsáveis pelos recursos humanos, fazem a caixa, ouvem as queixas dos espectadores (a minha história preferida é sobre a senhora que não conseguiu ver um drama programado numa sala Kids porque os desenhos infantis na parede a incomodavam), ou garantir, no fecho do cinema, que nenhum espectador adormecido é esquecido dentro das salas. Mas há mais. Jorge recicla standees e outros materiais respigados aqui e ali para fazer réplicas de tamanho (quase) natural de objectos icónicos de vários blockbusters recentes: o avião de The Adventures of Tintin: The Secret of the Unicorn (As Aventuras de Tintin, 2011), a locomotiva de Hugo (A Invenção de Hugo, 2011), o navio de Pirates of the Caribbean (Piratas das Caraíbas, 2011), o saloon de Django Unchained (Django Libertado, 2012), e até os carros de Batman [The Dark Knight Rises (O Cavaleiro das Trevas Renasce, 2012) e de Fast & Furious 6 (Velocidade Furiosa 6, 2013)], que me lembro de ter tomado pelo original quando o vi junto às bilheteiras. Os projectos passam-nos diante dos olhos em fotografias no telemóvel de Jorge. Estão guardados num armazém que usa como oficina, na cave, não muito longe das salas onde o cinema recebe festas de aniversário de crianças. Qual será o próximo projecto? Já está a ser preparado, mas preferimos não revelar nada. Digamos apenas que as crianças que vierem ao Campo Pequeno no próximo Natal ficarão muito felizes.
Fotografias de Mariana Castro
Agradecimentos: Andreia Pinto, Jorge Pires, Jorge Dias, Zé Lopes, Solange Polido, Elma, Daniela Lima, Bruno Ferreira