Whit Stillman, percursor de um certo cinema norte-americano, com ares europeus, muito dado à palavra (palavroso por vezes), centrado em personagens comummente vistas como privilegiadas (da alta burguesia, o mais próximo da aristocracia que os Estados Unidos têm), foi um dos Heróis Independentes do último IndieLisboa. O argumentista e realizador esteve na capital portuguesa para apresentar as suas quatro longas-metragens – Metropolitan (1990), Barcelona (1994), Last Days of Disco (As Noites Loucas do Disco, 1998) e Damsels in Distress (2011) -, tendo dado ainda uma masterclass, na qual mostrou o episódio piloto da série The Cosmopolitans, produzida pela Amazon. As fotografias do realizador são da autoria de Mariana Castro.
É obviamente influenciado por escritores, Jane Austen e J. D. Salinger à cabeça. Todos os seus argumentos foram depois transformados em livro…
Não. Há qualquer coisa que aparece na internet em relação ao Metropolitan, que nunca chegou a acontecer. Eu quis fazê-la, e havia um contrato, mas foi cancelado. Na altura, estava a tentar escrever o argumento para o Barcelona.
Mas a pergunta era: sente-se mais escritor ou realizador?
Sinto sempre que sou o que não estou a fazer. Quando estou a trabalhar numa das coisas, penso “isto não”. Quis ser escritor e depois senti que não estava preparado. Pensei que talvez pudesse fazer filmes. E para ter o filme precisava do argumento. Portanto, decidi escrever um argumento para poder fazer um filme. Sentia que não sabia fazê-lo e pedi a um amigo que estivesse comigo enquanto eu tentava escrever. Esteve comigo durante uma hora até que eu disse “Obrigado, está na hora de ires embora”. E sentei-me a escrever o Metropolitan. Uns tempos depois, começou a melhorar. Também tinha escrito outras coisas, mas nunca tinha resultado muito bem. Depois o filme correu bem e tive a oportunidade de escrever outro e outro argumento. Mas o que eu queria era escrever romances. Quando estava a escrever um argumento pensava “há tanta informação neste mundo, tanta coisa a acontecer” e depois num filme tem de se passar todo esse material por um filtro pequeníssimo. É preciso cortar muito. Tive vontade de expandir esse mundo, por isso escrevi o romance do Last Days of Disco [Last Days of Disco, With Cocktails with Petrossian Afterwards, publicado no ano 2000].
E durante o hiato de treze anos, entre o Last Days of Disco e Damsels in Distress…
Foi um período horrível.
Nunca tentou escrever um romance?
Escrevi um romance entre 1998 e 2002. Para mim, o hiato foi de 2002 a 2010, quando fiz o Damsels. Tive imensos trabalhos de escrita, muitos dos quais ainda poderei realizar. Uma das coisas em que estive a trabalhar foi esta adaptação de Jane Austen que acabei de filmar, Love and Friendship [baseado no romance epistolar Lady Susan]. Muitas das coisas que escrevi ainda sairão cá para fora. Não foi um desperdício… Não me senti propriamente deprimido durante esse hiato, estava a escrever e a escrita estava a sair. Agora não estava a conseguir era passar essa escrita para filme.
Perguntava isto, pois em principio é mais fácil publicar um livro do que fazer um filme.
Está tudo a ficar muito estranho e muito difícil.
É cinéfilo?
Não.
De todo?
Mais ou menos. Não tento manter-me a par do que está a acontecer no cinema. Não faço grandes esforços para estudar cinema. O entusiasmo leva-nos por direcções diferentes. O meu grande entusiasmo é pelo cinema pré-1945. Mas sou convidado para projecções, para festivais, vejo muitos filmes de que gosto. Costumo gostar de pequenos filmes independentes. Ou que falem de relações amorosas e tenham e humor.
E cinema europeu? Éric Rohmer?
As referências a Éric Rohmer ajudaram-nos muito quando os primeiros filmes estavam a ser lançados. Deu-nos uma porta de entrada. Eu sinto-me muito mais influenciado pelos filmes autobiográficos de [François] Truffaut e a maneira como os meus amigos realizadores de Madrid foram influenciados por ele.
É estranho dizer isso pois a ideia dos grupos e dos pares está muito presente no cinema de Rohmer e no seu cinema.
Tenho de começar a ver mais filmes dele. Quando estava na universidade, fui ver uma sessão dupla, com o Domicile conjugal (Domicílio Conjugal, 1970) do Truffaut, que adorei, e o Le genou de Claire (o Joelho de Claire, 1970), que achei a coisa mais entediante até o joelho dela aparecer. Que joelho! Vi outros filmes dele, mas não sei…
Tanto no Metropolitan como no Last Days of Disco, contrapõe a ideia de par à de grupo. Porquê esta ênfase na necessidade de grupos?
Os grupos são o contexto ideal para se encontrar o melhor par. Começa-se pelo grupo e assim é possível fazer a escolha mais inteligente. E enquanto as relações amorosas podem não durar, o grupo mantém-se.
No entanto, parece que não se mantêm nos seus filmes.
Talvez se mantenham. Talvez pareça que se vão afastar… Por exemplo, o grupo do Metropolitan. Perdi o contacto com eles não sei quantos anos, fui para Espanha… Depois, quando fiz o filme, achei que era boa ideia falar com eles acerca daquelas experiências e tornámo-nos bons amigos outra vez.
Metropolitan (1990) de Whit Stillman
É engraçado também o apego às personagens, elas reaparecem em filmes posteriores.
Nos primeiros três filmes, as personagens reaparecem. Desde que seja possível, gosto de trabalhar com os mesmos actores. No outro dia, encontrei a Sally Fowler do Metropolitan [a actriz Dylan Hundley] e ela está interessada em voltar à representação, entretanto teve um filho. Ela seria óptima no Cosmopolitans. A Carolyn Farina [interpretava Audrey Roget em Metropolitan] tem um pequeno papel no Damsels in Distress, é uma empregada de café. Uma das razões por que nunca teve verdadeiro sucesso foi o facto de ficar presa a um tipo de papéis que não lhe era natural. Quis mostrar que ela poderia oferecer mais do que aquilo.
Tenho ideia que nos primeiros filme usava mais não-actores, ao contrário dos últimos, com actores mais conhecidos.
Não, são todos actores. Só a pessoa que fazia a personagem mais velha no bar no Metropolitan é que não era actor, era um conhecido meu. E não ficou assim tão bem. Quer dizer, não ficou assim tão mau, mas isso é o milagre da montagem.
Disse que gostava de filmes anteriores a 1945…
Na verdade, anteriores a 1942.
Americanos?
Eu gosto de alguns filmes europeus desse período também. Ainda agora estava a falar de um filme de René Clair, Sous les toits de Paris (Sob os Telhados de Paris, 1930). Quer dizer, eu gosto do Truffaut como cineasta mas não gosto do Truffaut enquanto crítico. Era mau, nas suas regras e preferências. Uma vez escreveu algo do genéro “quem não gostar destes dois westerns, blá, blá, blá”. E eu definitivamente não gosto desses dois westerns. E eu adoro westerns.
Costuma ler crítica de cinema?
Sim.
Li numa entrevista que, como Tom em Metropolitan, preferia ler crítica literária a romances. Também é assim com a crítica de cinema?
Sim. Mas gosto particularmente de ler biografias de gente do cinema. Biografias de realizadores e de argumentistas, sobretudo. Sinto que os escritores de biografias são melhores, porque têm uma maneira de olhar para a alma. Nas biografias de Preston Sturges… de qualquer argumentista-realizador, dá para ver como pensam.
O Preston Sturges é uma influência?
Não diria uma influência, é alguém que adoro. Mas descobri-o depois de já ter determinado que tipo de coisas escreveria.
É engraçado que diga que tem um entusiasmo especial pelo cinema dos anos 30 e 40, pois por vezes parece estar filmar sob o Código Hays.
Eu gosto muitos desses filmes. Eu gosto do Código Hays. As pessoas às vezes escrevem com grande entusiasmo que um filme é pré-Código, e é interessante ver esses filmes, mas vi diversos do fim dos anos 20 que considero bastante chocantes. Muito cínicos e deprimentes.
No Last Days of Disco, as personagens fecham a porta, deixando o espectador de fora, antes de uma cena sexual. Algo muito lubitschiano.
Eu tinha uma cena de sexo escrita aí. Ia ser uma cena de sexo muito estética. Mas embaraçava-me. Embaraçava-me filmá-la e vê-la. Há alguma nudez no Last Days of Disco. Nunca voltaria a fazê-lo. O Damsels in Distress ia ser classificado como para maiores de 17 anos por causa da história do catarismo, por isso trabalhei com as pessoas que classificam os filmes de modo a fazer algumas mudanças e fiquei muito contente com a nossa experiência com eles. Mudámos apenas pequenas coisas, mas que ajudaram muito o filme. Antes estava demasiado directo e agora alguém pode levar o seu filho de seis anos a vê-lo sem quaisquer problemas. E de algum modo tornou-o mais ligeiro e divertido. Talvez tenha tido sorte nesta experiência.
No Damsels in Distress o sexo anal é abordado mas nunca mencionado.
E às vezes apanho coisas na internet de pessoas que não percebem o que ALA quer dizer.
No seu cinema, existe uma dicotomia entre promiscuidade (e personagens sexualmente muito activas) e inocência. E parece ter uma preferência pelas personagens mais inocentes.
Também gosto das outras. São engraçadas. Mas o meu coração está com as puritanas [prigs]. Não digo puritanas pejorativamente.
Chris Eigeman está sempre do outro lado…
E o Taylor Nichols está no lado “dos bons”.
Exacto.
E na realidade estão provavelmente trocados.
A sério?
Sim.
Sendo que os seus filmes são autobiográficos, é mais Chris Eigeman ou Taylor Nichols?
O mais estranho quando se cria uma personagem é o risco de nos tornarmos nela. Eu tornei-me no Des [interpretado por Chris Eigeman] depois do Disco. Tive o meu período Des. Mas deixei-me disso. E voltei a ser o Taylor Nichols.
Barcelona (1994) de Whit Stillman
O seu cinema é conservador e as suas personagens são conservadoras…
Eu gosto da palavra square [quadrado]. Um quadrado modificado. Agora gosto de dizer que são Palladio, como na arquitectura Palladio, penso que têm alguns exemplos em Portugal. Não são squares, são Palladio, é mais interessante.
Charlie em Metropolitan diz-se muito desapontado por ter descoberto que Le charme discret de la bourgéoisie (O Charme Discreto da Burguesia, 1972) era mais uma sátira à burguesia e não correspondia ao título. Quando começou a fazer cinema tinha intenção de fazer esse filme que Charlie esperava?
Sim, é isso.
Embora as suas personagens sejam privilegiadas são mais vencidos da vida do que vencedores.
Não gosto da palavra privilegiado. Não é exacta. Conheço pessoas daquele meio com os seus problemas. Um pouco o que as personagens dizem no Metropolitan. Conheço algumas pessoas, muito talentosas, com muito para dar, que falharam, ou por terem demasiado dinheiro ou por não se quererem humilhar, como é necessário quando se quer fazer algo. Depois, há aquelas pessoas que mesmo não tendo dinheiro se deixam prender por uma ideia de classe, de nobreza.
A maioria dos seus filmes é de época. Está muito ligado ao seu passado e às suas memórias ou ao passado em geral?
Como escritor, é contra-producente tentar conceber algo que está a acontecer no momento, enquanto as memórias são já material organizado. O Cosmopolitans é passado na actualidade, mas é baseado em experiências que tive em Paris por volta do ano 2000. Na verdade, é a década de 2000 em Paris. Os telemóveis usados pelas personagens são para mandar mensagens, não são iPhones, não são smartphones. Ainda gosto desses telemóveis antigos.
Foi um expatriado em Barcelona e Madrid e depois em Paris e teve de lidar com o anti-americanismo. Como é que vê a História dos Estados Unidos e a sua política externa?
Lido através das minhas personagens e das suas reacções. Tinha gostado do filme An Officer and a Gentleman (Oficial e Cavalheiro, 1982) e fiquei surpreendido com a diferença de mentalidade em Espanha, embora esta seja inteiramente compreensível. Quando estava a trabalhar com realizadores espanhóis para vender os seus filmes em 1982, 1983, disse que gostava do filme – a ideia para o Barcelona foi um oficial e um cavalheiro serem duas pessoas, o Ted Boynton, o homem de negócios, é o cavalheiro, e o primo Fred é o oficial. E eles disseram que era terrível e eu perguntei porquê. Disseram-me que era facha [fascista], porque tem uma personagem do Exército simpática. Para nós, norte-americanos, não é um assunto controverso, quem quer ser camionista, é camionista, quem quiser ser piloto, seja. Também tinha um primo que era piloto e ele dizia uma coisa interessante, no fim dos anos 70, princípio dos anos 80: “Quando visitamos um país e as pessoas se vestem de uma maneira completamente diferente à nossa, as velhotas com os seus vestidos pretos, são bastante simpáticos em relação à América. Se se vestem exactamente como nós, odeiam a América.” Mas já não sinto essa tensão, desde a Guerra do Iraque.
Menciona por duas vezes o bombardeamento do USS Maine, o monumento no Last Days of Disco e o jornalista espanhol no Barcelona.
É um tema interessante. É uma das maiores ligações entre Espanha e os Estados Unidos [provocou a guerra entre as duas nações no fim do século XIX] e a estátua em Nova Iorque é muito bonita. Estava num hotel mesmo ao pé, quando estava a acabar de escrever o argumento para o Last Days of Disco. É estranhíssima e belíssima. Em Portugal, há umas quantas parecidas, mas nos Estados Unidos há muito poucas desse género.
Mesmo sendo um cineasta da palavra, há um ritmo nos seus filmes. Especialmente o Barcelona, é um filme ritmado. O que se traduz nas bandas sonoras, com canções sempre dançáveis.
Eu gosto de música ritmada. Às vezes, as nossas limitações ajudam-nos. Não tenho qualquer aptidão musical, a não ser para o ritmo. Os compositores falam comigo sobre a música e eu ouço muita música, mas não consigo perceber exactamente o que querem dizer. No entanto, consigo entender e amar o ritmo. No Last Days of Disco, pedi ao Mark Suozzo, compositor com quem trabalhei muitas vezes, um tipo de música que não fosse disco, que fosse fiel ao período e fosse mesmo boa. E ele disse-me para ouvir ska jamaicano. Se eu gostava de música barroca, que é muito rítmica, também ia gostar de música jamaicana. Do pouco que tinha ouvido, pensei que poderia mesmo interessar-me por aquela música, mas que não queria. Contudo, acabei por ouvir muito ska para estar “dentro” da banda sonora. Comprei imensos discos e adorei. Li todas as liner notes. Como não tenho um gosto muito sofisticado, a música que uso nos filmes tende a ser muito popular. No Barcelona, tinha os Los Cinco Latinos, um grupo argentino, a fazer uma versão de uma canção dos Platters (La Hora del Crepúsculo em vez de Twilight Time). É uma canção excelente. O meu gosto é tão simples que também é mais universal. Pessoas mais sofisticadas usam jazz nas bandas sonoras, música muito interessante, música excelente, mas não joga tão bem com o público. Em relação à banda sonora do Cosmopolitans, nunca mais vamos poder gastar tanto dinheiro…
Foi mais cara do que a do Last Days?
Os tempos mudaram. Esta coisa de se ouvir música pop nos filmes vai acabar. Antes, as editoras licenciavam as canções, pois pensavam que iam vender mais CDs. Agora, como já não conseguem vendê-los, o único dinheiro que recebem é de venderem a música para os filmes. Portanto, os preços mudaram imenso. No Last Days of Disco, conseguimos um preço incrível por aquelas canções todas. A única canção que não conseguimos pelo preço que negociámos foi o Upside Down da Diana Ross, apenas conseguimos o I’m Coming Out. Tivemos o Upside Down na banda sonora temporário do Barcelona, tivemos o Upside Down da banda sonora provisória do Last Days. Eu já estava farto de ouvir a canção, depois de cinco anos. Acho o I’m Coming Out melhor, de qualquer maneira.
Pensei que tivesse muito mais cara, com Chic…
Como comprámos quatro canções de Chic e as pusemos no álbum do filme, não foi assim tão mau. No Cosmpolitans ficou muito caro, começamos com What Comes of the Borkenhearted [de Joan Osborne] e acabamos com To Be Loved [de Jackie Wilson]. O To Be Loved foi um balúrdio.
Nos seus últimos filmes, há uma viragem para o musical.
Sim, o Damsels in Distress é um musical.
E criou uma dança, o sambola, nesse filme, que também aparece no Cosmopolitans. Quis mesmo inventar uma nova dança que pusesse toda a gente a mexer-se?
Sim. Iria resolver todos os problemas de política externa.
A religião está sempre nos seus filmes, embora nunca seja central. Tem o Taylor Nichols a ler a Bíblia e a dançar Glenn Miller no Barcelona e o Josh, no Last Days of Disco, recita um mantra como o Zooey no Franny and Zooey de Salinger. Quão importante é a religião para si?
É muito fácil olhar para o mundo e não ver qualquer validade na religião. Eu gosto de ser uma pessoa religiosa. No cinema, não sei quanto tempo é que a imagem está no ecrã, mas penso que é menos de metade da duração do filme. Eu vejo a fé um pouco assim: será que vou ver o filme ou vou ver o nada? Na verdade, é nada a maior parte do tempo, mas eu prefiro ver o filme. É, como o Charlie diz no Metropolitan, um salto de fé. Isso esteve presente nos filmes até agora. Nos próximos três projectos, estará ainda mais, mais explicitamente. Por exemplo, no romance da Jane Austen não está lá de todo, mas no filme estará bastante. Será em forma de comédia, portanto não sei muito bem como as pessoas vão recebê-lo. O meu filme jamaicano [um projecto com bastantes anos] terá anjos e demónios, será expressamente religioso. E o Cosmopolitans também.
Cosmopolitans terá pelo menos uma temporada?
Espero que sim. Tenho de escrever sete argumentos e estive completamente assoberbado com o trabalho no Love and Friendship, que estamos agora a montar. Mas eles sabiam que eu tinha o filme e quiseram fazer a série na mesma.