Quando um dia perguntaram ao Sergei Parajanov o que achava da sua obra pré-1965 [isto é, antes de Tini zabutykh predkiv (Sombras dos Antepassados Esquecidos, 1965), o filme que lhe abriu as portas dos miseráveis países capitalistas do Ocidente], a resposta dada foi esta: “puro lixo”. Assim classificava o barbudo toda a sua filmografia inserida no realismo soviético, uma mistura de desbragada propaganda, universo kitsch, melodrama musical de fervor nacionalista e onde os operários andavam felizes da vida e a religião era considerada obra de satanás. Bons velhos tempos, esses, em que uma nação inteira era o verdadeiro Sol na Terra, como mais tarde nos diria o Dr. Álvaro Cunhal. Sergei vivia nas boas graças dos sábios censores e, por isso, ainda menos se compreende como no tal ano de 1965 decidiu enveredar pela carreira de cineasta. Se calhar o Sol não lhe chegava.
Também proveniente da Geórgia, terra de bons vinhedos, Otar Iosseliani iniciaria o seu ofício pela mesma época de Parajanov, embora fosse dez anos mais novo. Antes disso, fora instruído em Moscovo pelos mestres de outrora (Dovzhenko, Kozintsev, Kulechov, etc), que muito avisadamente foram colocados na prateleira (aka a dar aulas) pelo regime, visto que a admiração e a diligência com que serviram a causa décadas antes parecia estar a dar lugar a diversos tipos de questionamento e possíveis dissidências. Lamentavelmente, mestres Stalin e Khrushchev não perceberam que ao enviarem tais artistas para a academia, estariam a promover indirectamente a formação de homens inconformados e incorrigíveis, sendo o jovem Otar um deles. Também para este o Sol não parecia suficiente.
O Iosseliani começou a todo o gás, com uma primeira curta-metragem que lhe prontamente granjeou o rótulo de “censurado”. Nada mais certo, pois Aprili (1961) é, segundo as palavras maliciosas e capitalistas do próprio, “um conto de fadas, e os contos de fadas são muito perigosos para os regimes totalitários”. Como se não lhe bastasse a fantasia etérea e eterna, ainda foi ao cúmulo de a apimentar com uma contundente crítica social, económica e arquitectónica, mostrando assim todo o seu desrespeito pela mão que lhe dava porrad…de comer. Um “conto de fadas” amoroso a quebrar o granito do realismo é uma coisa, agora adocicar isso com incisivas machadadas às políticas de diversa índole do glorioso regime é outra. Censurado, evidentemente. Só onze anos depois, já com mestre Brejnev aos comandos da Estação Solar, é que Aprili veria a luz do dia em terreno soviético.
Para tornar tudo isto ainda mais feio, há que dizer que Aprili parece dever muito ao universo de um artista ocidental e que tinha pouco cuidado com as suas economias, espatifando-as a todas em produções cinematográficas, de seu nome Jacques Tati. Escrevemos “parece” porque há pouca certeza de que Otar conhecesse a obra do francês gastador, visto que no Planeta-Sol só tinham cabimento filmes em que uma pessoa, depois de os ver, dissesse com toda a justeza: “isto sim, isto é que é realista!”, e até se escreve isto com a emoção a escorrer pelos dedos. Voltando a Aprili: desde a ausência de diálogos até a uma linguagem completamente inventada, passando pela passagem de testemunho de uma vida rural para uma citadina, e ainda situações onde o absurdo só pode ser cómico, não temos dúvidas de que alguém andou, provavelmente, a fazer contrabando de filmes de Jacques para o Planeta Vermelho, com Iosseliani a vê-los às escondidas nalgum cineclube dissidente e imperialista. Se alguém souber que estamos a mentir, que nos corriga.
Outro artista que nos traz à memória, embora seja forçar já muito a barra, será o imperialista George Orwell, que no seu “1984” colocava a intimidade de um casal esmagada e subjugada pelo poder estatal. Em Aprili não há ratazanas em caixas, nem espiões disfarçados de velhinhos donos de hotéis, mas há a mesma luta de um casal em preservar a sua relação sem que que terceiros a interrompam quase por decreto. E quando essa relação é consolidada, é através da institucionalização da “casa, móveis, e a seguir, com jeito, vêm já os filhos”, o que deveria satisfazer qualquer um, mas não o georgiano, que vai sabotando aos poucos todo esse bom trabalho que o regime do Satélite Solar providenciava aos seus acólitos. Mal agradecido.
E depois um rapaz, uma rapariga, uma árvore e umas ovelhas: o primitivismo e a simplicidade, tanto de modo de vida como de mise-en-scène, que se tornou em algo que reconhecemos nos filmes iosselianos, pelo menos os que já vimos, e ainda nos faltam alguns. Narrativas onde parece evidente um grande prazer em mostrar as grandes matérias da vida, como beber um copo de vinho, comer um pão, ou dar um beijo. Com o picaresco sempre ao seu lado; cinema modesto na mais admirável das suas propriedades; afinal, Otar disse que “a ideia de fazer ‘Grande Cinema’ repugna-me”, a rimar com o “o que me alimenta é uma perna de borrego, não é o cinema” de Monteiro. Ou umas fanecas fritas.
https://www.youtube.com/watch?v=Ta5bbUMU_8g