Sexta-feira foi o dia de exibição do último segmento da competição nacional. Fuligem (2014) de David Doutel e Vasco Sá é um filme de animação, composto por uma série de quadros elaborados, alguns dos quais recordam Edvard Munch. De ritmo pausado e pensativo, mostra-nos uma viagem de comboio através da qual desfilam várias memórias de infância, num pequeno mas envolvente conto. Com os seus movimentos de câmara, as composições ganham amplitude e melancolia, que carregam um jogo inteligente entre o passado e o presente, mesmo na ausência de diálogo.
Outono (2014) de Marco Amaral é um ensaio de filme em dois actos. Depois de umas linhas de texto para contextualizarem a acção, sobre um rapaz cuja escola foi encerrada e que agora tem que caminhar para outra mais longe, acompanhamos a sua personagem principal nesta nova viagem. De carácter minimalista e lento, a câmara persegue o rapaz por estradas vazias, até este fazer um desvio, distraído por uma floresta. É aí nos bosques que a câmara faz também um desvio próprio e o filme torna-se uma composição de paisagens etéreas, de ambiente fantasmagórico até desaparecer na neblina, abandonando a narrativa e a personagem – pena que volte atrás com o último plano, desfazendo essa ilusão.
Fortunato – D’aqui até S. Torcato (2014) de João Rodrigues é um produto bizarro num contexto de um festival de cinema. Comédia fácil de baixo nível, cujo primeiro acto revolve à volta de tremoços e o segundo à volta de uma vaca e acontecimentos que não valem a pena mencionar. Uma série de sketches de situações esticadas ao limite, sem piada ou diálogos sem qualquer valor, num imaginário próximo de filmes como 7 Pecados Rurais (2013). Não há aqui nada de novo para ver.
Taprobana (2014) é o novo filme de Gabriel Abrantes, uma comédia dissimulada de farsa, sobre uma re-imaginação da biografia de Luís Vaz de Camões, uma desconsagração do mito. Depois de um texto sobre imagens de um elefante a banhar-se num pântano, Camões aparece e sucedem-se cenas de sexo, de diálogos ridículos, de escatofagia, consumo de drogas, mas essencialmente de falta de subtileza ou acutilância – parece que não basta aludir, é preciso mostrar. Gesto velho mas disfarçado de ultramoderno, se há aproximação a um imaginário absurdo de Buñuel, falta-lhe a complexidade do mesmo, e fica longe da provocação brejeira e intelectual de César Monteiro. Próximo do filme anterior de Abrantes, Palácios de Pena (2011), especialmente pela repetição de alguns tiques, construção de uma persona e abordagem dos temas do colonialismo e da sexualidade, confunde crítica com uma vontade juvenil de choque. Num filme que procura satirizar o passado para agitar o presente, aqui não há poesia nem comédia, apenas uma única cena com piada, sobre um imaginado paraíso dos poetas, condenados a falar através de rimas pobres até à eternidade.
Se 2013 foi o ano zero da produção de cinema em Portugal, esse efeito não se fez sentir na edição do ano passado do Festival, talvez por culpa da existência de dois projectos – Guimarães Capital Europeia da Cultura e o Estaleiro – que adiaram as repercussões dos cortes nos apoios. Já este ano, muitos dos realizadores referiram nas suas apresentações as dificuldades de produção e, sem esses apoios, a qualidade geral dos filmes pareceu afectada, apesar dos esforços de produtoras independentes e dos vários filmes realizados no âmbito de residências artísticas ou projectos de curso. Dentro da competição nacional, destacaram-se, acima de tudo, First Light (2014) de Mariana Gaivão e Le Boudin (2014) de Salomé Lamas, pela força de um gesto simples mas envolvente. O Triângulo Dourado (2014) de Miguel Clara Vasconcelos e Sara e Sua Mãe (2014) de Teresa Villaverde impressionaram pela sua execução técnica e conceito, tal como Cinema (2014) de Rodrigo Areias e, no campo da animação, Fuligem (2014) de David Doutel e Vasco Sá.
Alguns destaques da competição internacional, onde o melhor filme que vimos terá sido The Immaculate Reception (A Recepção Imaculada, 2014) de Charlotte Glynn, uma composição sobre uma reunião de uma enorme família suburbana americana, sob o pretexto de um jogo de futebol que, ao situar a acção na década de 70 e junto da classe operária, lembra um filme de Cassavetes. Retrato detalhado, constrói rapidamente um modelo visual apelativo que, na riqueza de personagens complexas, mostra-nos a história através dos olhos de um rapaz distraído por uma rapariga, enquanto à sua volta o mundo parece eclodir. Já America (2013) de Valérie Massadian consiste num único plano, uma rotação de 360 graus no meio de uma floresta, em que os sons da natureza e a narração de um texto por uma criança, que surge mais tarde para olhar-nos de frente, produzem um efeito intenso de espanto e temor. Outro filme que recorre ao olhar de uma criança é En Août (Em Agosto, 2014) de Jenna Hasse, uma pequena mas afectuosa curta, com uma série de momentos quotidianos partilhados entre um pai e uma filha, antes de este partir de viagem.
Mais elaborado e ancorado em referências cinematográficas é The Cast: Procession (O Elenco: Procissão, 2013) de Clemens von Wedemeyer. O filme recria, à falta de imagens de arquivo, um incidente que teve lugar em 1958 na Cinecittà, durante as rodagens de Ben-Hur (1959), quando milhares de figurantes tentaram forçar os portões a pedir trabalho. Entre um preto e branco imaculado e longos planos-sequência, fica na memória uma inventiva cena que vemos invertida, do fim para o início. Em Washingtonia (2013) de Konstantina Kotzamani acontecem coisas estranhas no verão quente de Atenas, numa sucessão de alegorias bizarras que exprimem o peso do fatalismo sobre o quotidiano. Com cores saturadas, planos com piadas e um imaginário exótico que envolve girafas e palmeiras, retrata-se uma sociedade paralisada pelo ciclo do tempo. Person to Person (De Alguém Para Alguém, 2014) de Dustin Guy Defa é um herdeiro dos filmes de bairro nova-iorquinos de Woody Allen e Spike Lee, com as suas personagens de maneirismos e diálogos maníacos. Com uma montagem nervosa, câmara agitada e aspecto de filme dos anos 90, mostra-nos a história de uma rapariga que acorda no apartamento de um rapaz no dia seguinte a uma festa, como uma possibilidade real ou fantasiada pela imaginação do rapaz.
No campo do documentário, destaque para Radio Atacama (2014) de Víctor Cerdán, filme sobre uma cidade fantasma no meio do deserto Atacama no Chile, evacuada sob ordens do governo em 1966, e o seu único residente que ficou para trás. O documentário desenrola-se em dois planos, com um exame à cidade, morta e abandonada à deterioração, e com imagens trabalhadas e fantasiosas de paisagens da natureza, como recriação imaginada para os pensamentos do seu único ocupante. Se se perdoarem as imagens da autópsia a um cérebro, com que começa The Claustrum (O Claustro, 2014) de Jay Rosenblatt, e a falta de subtileza que o gesto envolve, este é um exercício hipnotizante. Uma análise de três casos psiquiátricos de mulheres fechadas ao mundo, com uma narração e música repetitiva sobre uma colecção de imagens de arquivo, compõe um imaginário aterrador, não tanto pela violência das imagens, mas pelo que evoca. Já a mais-valia de Three Stones for Jean Genet (Três Pedras para Jean Genet, 2014) de Frieder Schlaich é mesmo a participação da cantora Patti Smith, sob a forma da narração de um poema íntimo, que acompanha as imagens de uma viagem-homenagem a um cemitério, para entregar uma prenda a Jean Genet.
No sábado foi anunciado o palmarés do Festival. O Grande Prémio “Jameson” (competição nacional e internacional) foi para Cambodia de Davy Chou, o Prémio de Melhor Filme da Competição Nacional para O Triângulo Dourado de Miguel Clara Vasconcelos, o Prémio de Melhor Realizador Português para Fuligem (2014) de David Doutel e Vasco Sá, o Prémio de Melhor Documentário para El Palacio de Nicolás Pereda e o Prémio de Melhor Ficção para Person to Person (De Alguém Para Alguém, 2014) de Dustin Guy Defa. A lista completa de prémios pode ser consultada aqui.
9 Comentários
É mesmo pena, mas o João Araújo é um perfeito idiota.
Alerta de CENSURA: pode escrever-se sobre filmes sem qualquer sentido de profissionalismo, com má sintaxe – num blog que se quer respeitável -, com laivos de ataque pessoal no meio das “críticas”, mas não se pode dizer que o autor do artigo é um “idiota” sem que nos apaguem o comentário a seguir?
Por sistema, não publicamos ataques pessoais esvaziados de qualquer conteúdo. Como quer que o João Araújo ou qualquer um de nós responda a um comentário em que o Rodrigo se limita a chamar o redactor de “perfeito idiota”? Como podemos argumentar a favor ou contra a “idiotice” ou “grau de idiotice” do comentador, do redactor e nossa? Como é que isso melhora a nossa relação com o cinema ou tornará o blogue mais respeitável no futuro? O blogue quer-se respeitável, mas, para tal, contribuem NECESSARIAMENTE comentários que vão para lá do mero ataque pessoal.
Posto isto, neste segundo comentário substancia o que disse, tornando possível alguma forma de diálogo, aquilo que obviamente queremos que haja sempre entre redactor e leitor, leitor e redactor.
Espero que compreenda.
Caro Luis Mendonça. A sua resposta é respeitável e válida, ao contrário do ponto de vista crítico do vosso correspondente, desprovido de qualquer valor objectivo, construtivo, muitas vezes a roçar o ataque pessoal e quase nunca verdadeiramente “crítico” no sentido literário do termo. O meu comentário não é um ataque mais do que a forma como o senhor Araújo fala levianamente do trabalho alheio ou a forma como parece despreocupado com o peso das suas próprias palavras em relação ao blog com que colabora e à classe cinefila a que se dirige. É lamentável que se sirva exclusivamente de clichés em cada uma das ridículas “apreciações” que tece e parece impossível que não faça sequer o esforço de parecer mais inteligente, mais útil à sociedade, aos leitores, aos cineastas que critica, reduzindo a importância das suas “escarradelas verbais” a uma única constatação possível: o João Araújo não parece gostar verdadeiramente de cinema. E se lhe faltou colo na infância, quem sabe fosse altura de tentar amenizar isso agora arranjando uma vida sexual, em vez de achar que fazer crítica é desbaratar aos quatro ventos o esforço de quem, ao contrário dele, anda a tentar fazer alguma coisa pelo cinema nacional. Tenha vergonha, João Araújo. E ao blog, um conselho: sejam cuidadosos e exigentes na ampliação do staff. “Basta um burro para que, entre os cavalos, comecem a aparecer mulas”.
Sim, eu acho esta apreciação muito justa e bastante suave até.
Uma adenda: eu só me limito a chamar “perfeito idiota” ao correspondente por ele se limitar a, através desta catrefada de clichés, chamar o mesmo aos cineastas de que fala e aos leitores deste blog, entre os quais me tenho encontrado, pelo menos até ao presente. Limito-me pois é quanto basta, pelo óbvio. Eu não sou crítico de críticos, por isso, para bom entendedor duas palavras parecem suficientes. Mas, se o João Araújo quer alguma vez vir a ser crítico, terá de esquecer esta opção de ser um perfeito idiota e ganhar tomates para pensar antes de escrever. Um dia será a sua vez. Pense nisso.
Rodrigo,
Como disse o Luís, é inútil responder a comentários quando têm por base insinuações e ataques pessoais. Mesmo assim, e como acredito que é através da troca de ideias que se pode chegar a alguma conclusão, lamento que tenha preferido especular sobre a minha vida pessoal, em vez de concretizar qual ou quais as passagens dos textos com que discorda. Estaria disponível para responder a qualquer comentário construtivo que tivesse, mas, neste caso, não há em momento algum das suas intervenções esse pedido.
Sobre a sua dúvida se gosto realmente de cinema e a sua acusação de, com as minhas palavras, desfazer o esforço de quem tenta fazer algo pelo cinema nacional, pode ler os textos publicados por mim aqui neste blog, inclusive sobre outros filmes portugueses – se tiver algum comentário (e não insulto) sobre um desses textos, ou se tiver algum comentário sobre um dos filmes do Curtas, posso aqui elaborar sobre o que escrevi, mas até agora não se mostrou interessado nisso.
Os comentários do Rodrigo Braga são pertinentes e parecem justificados, embora demasiado calorosos. Não diria que ele precise de ser mais específico. Tu fazes crítica fácil e estás no teu direito, embora o blog e os filmes mereçam mais, só isso. Não é preciso entrarem em discussões parvas. Tenham calma.
[…] Doutel e Vasco Sá terem levado do festival o prémio para melhor realizador português por Fuligem (2014), eis agora esta pequena obra-prima sobre a dedicação e o isolamento. Tal como o primo de […]