Quando se estreou na longa-metragem, com Being John Malkovich (Queres Ser John Malkovich?, 1999), Spike Jonze tinha já um extenso portefólio como realizador de vídeos de música meio artesanais (em comparação com o polimento dos “industriais”), imaginativos, pós-modernos – a paródia ao policial dos anos 70 de Sabotage para os Beastie Boys ou o cão antropomórfico de Da Funk para os Daft Punk são dois dos melhores exemplos -, para os quais concebia também as situações. No entanto, à altura, foi quase impossível perceber de quem era a verdadeira autoria do filme, se dele se do argumentista Charlie Kaufman. Filmes seguintes, incluindo Adaptation (Inadaptado, 2002), que os voltou a juntar (ao que parece, Jonze reescreveu bastante o argumento original de Kaufman), não esclareceram a questão. Este Her (Uma História de Amor, 2013), sem qualquer contribuição de Kaufman, ainda não a encerra.
Não ajuda que o próprio Jonze declare que se inspirou na grandiosidade do belíssimo Synedoche, New York (Sinédoque, Nova Iorque 2008), até agora o único filme assinado por Kaufman enquanto realizador. Embora Her não tenha o escopo daquele, partilha da mesma busca por um sentido da vida ou, pelo menos, por respostas a algumas grandes questões: O que é o amor? O que vale mais, a existência física ou a imortalidade? Para onde nos leva esta era de constantes avanços tecnológicos? Será que usar as calças por cima da barriga vai ser moda daqui a uns anos? A resposta mais óbvia para esta dúvida sobre a autoria deste pretensiosismo cinematográfico – no sentido que pretende abarcar tudo, até ao mais filosófico – é assumir que ambos chegaram a posições similares por virtude da associação que tiveram (se bem que, obrigado a escolher, apostasse na cabeça tortuosa de Kaufman).
Seguindo a corrente de Being John Malkovich e Adaptation [e de Eternal Sunshine of the Spotless Mind (O Despertar da Mente, 2004) e de Synedoche, New York], Her estabelece-se numa espécie de realidade paralela que serve para comentar a nossa. A acção decorre num futuro próximo mais ou menos distópico [um universo semelhante ao de Minority Report (Relatório minoritário, 2002) mas onde as pessoas se vestem pior – Jonze, como Kaufman, parece ter gosto em desfear os seus actores, principalmente os mais bonitos, olhe-se para Amy Adams neste filme], numa Los Angeles parda, cinzenta e com uma altura a que o espectador de cinema está pouco habituado [nunca se viu tanto arranha-céus, a não ser talvez em Blade Runner (Blade Runner: Perigo Iminente, 1982), mais um filme futurista], em que as interacções humanas vão escasseando, substituídas pelas mediações tecnológicas (ou outras: Theodore escreve “cartas pessoais” para outros, mediando assim os seus sentimentos) a chegarem a um ponto em que excluem a necessidade de um interlocutor real. Samantha, o sistema operativo com o qual Theodore [Joaquin Phoenix quase restabelecido da desventura de I’m Still Here (2010)] inicia uma relação amorosa, é apenas uma voz (de Scarlett Johansson, na sua melhor interpretação em muito tempo), um espaço vazio com que Phoenix contracena. Uma impossibilidade que serve para comentar a nossa dependência da tecnologia e das redes sociais e a crescente dificuldade em comunicar directamente com outros seres humanos (também representada pela personagem de Olivia Wilde) assim como a efemeridade da vida humana em contraponto com a provável eternidade de uma inteligência artificial.
Mais do que o comentário social ou as questões filosóficas, é o tema do amor o que mais interessa a Spike Jonze. Este usa aquela relação fora de normal para dar nova vida à comédia romântica – ou seja, através da estranheza, renovar o olhar sobre as armadilhas, as pequenas traições, as obsessões, as dúvidas e as frustrações que qualquer relacionamento acarreta. O outro grande fantasma (a outra ausência demasiadamente presente) de Her (e nunca se sabe muito bem a quem se refere o pronome) é o da ex-mulher de Theodore, que é conjurado sobretudo em pequenos clarões de memória. Dizem as más-línguas (os coscuvilheiros do costume) que a personagem, interpretada por Rooney Mara, é inspirada em Sofia Coppola, que foi casada com o realizador [como dizem que o fotógrafo de Lost in Translation (O Amor É Um Lugar Estranho, 2003) “é” Jonze]. Verdade ou não, o coração do filme parece encontrar-se nesta ferida por sarar. É de reparar que só depois da resolução possível para este ex-amor, Her pode encerrar, com um suspiro bem humano. A artificial Samantha foi apenas um meio que Theodore usou para ultrapassar algumas questões (o conhecido rebound). Afinal, Her é mais convencional e sentimental do que aparenta.
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