O mestre japonês Mikio Naruse é sobretudo associado aos seus belíssimos filmes dos anos 1950 e 1960 como Ukigumo (Floating Clouds, 1955) ou Onna ga kaidan o agaru toki (When a Woman Ascends the Stairs, 1960). Mas a sua carreira começou nos anos 1930, ainda no mudo. Recuperamos agora uma das suas “raridades” dos anos 1940, Hideko no shasho-san (Hideko, the Bus Conductor), datado desse fatídico ano de 1941 e que marca o início da colaboração com a actriz Hideko Takamine.
Este texto contém spoilers
1941, ano de Pearl Harbor e da queda de Hong Kong. O Japão de 1941 é o Japão que não já pode ser ignorado pela Europa em guerra e pelos Estados Unidos que entram na guerra em 1941. Mas nesse mesmo 1941 Naruse filmava o maravilhoso Hideko no shasho-san onde não há eco ou sombra de beligerância. Hideko é uma melancólica celebração da honestidade e espírito empreendedor por entre a adversidade. É, no limite, um filme sobre a doce ilusão da bondade e do dever cumprido. Mas, ainda assim, uma ilusão, bela e falsa como o próprio cinema.
Hideko é, talvez, melhor apreciado se o integrarmos no seu contexto, não de política internacional mas de mudanças sociais internas. Nesse aspecto, o filme terá mais a ver com a emergência da “nova mulher japonesa” dos anos 1920s que com modelos de submissão feminina anteriores ou posteriores. A protagonista, O-Koma, interpretada por uma muito jovem e já fascinante Hideko Takamine que dá nome ao próprio filme, trabalha como ajudante de motorista num autocarro em Kofu. O negócio vai mal, com o autocarro, sujo e obsoleto, a ser usado apenas por uma minoria de clientes. Outro autocarro mais moderno reúne a preferência e o elogio dos passageiros. A má reputação do dono da empresa transportadora não ajuda muito. Mas O-Koma, acompanhada pelo dedicado condutor, põe em marcha uma estratégia para recuperar o negócio, através da oferta de serviços de guia turística, ocupação de que ela ouve falar na rádio. Ambos pedem a um escritor alojado localmente que lhes escreva um guião e conseguem a aprovação do patrão para iniciar a actividade: um relato turístico durante o percurso normal da viatura. Uma série de peripécias dificultará o arranque do projecto, mas O-Koma acabará por consegue fazer uma viagem a discorrer sobre os pontos de interesse locais e, assim, atrair mais passageiros.
Naruse termina o filme com o sorriso de O-Koma, e o autocarro seguindo pela estrada fora. Em todo o caso, ainda que nos deixe com essas imagens de “final feliz”, antecede-as com uma cena na qual nos revela que o patrão vendeu o autocarro e vai extinguir com a empresa. Sabemos, pois, que a felicidade de O-Koma e do motorista terminarão em breve, mas a consciência dessa efemeridade dota os planos finais de uma beleza particular.
O filme de Naruse, como a maioria das suas obras, centra-se numa mulher. O-Koma é prestável e generosa mas está longe de uma imagem de submissão. Aliás, no autocarro o seu lugar é ao lado, não atrás, do motorista, não sentada mas de pé, e de estatura superior à dele. É dela que parte a iniciativa de salvar o negócio, e o facto de ter de recorrer a intermediários para chegar ao patrão coloca em evidência o espartilho social que a limita. Significativo será também o facto de O-Koma envergar roupas “ocidentais” no trabalho e indumentária japonesa em casa – uma interessante referência às mudanças sociais em marcha no Japão.
Este pequeno filme de Naruse (pouco mais de 50 minutos) é, também, um retrato interessante do Japão da época, que seguia num movimento como o que vemos nos muitos planos das janelas do autocarro. A persistência de alguns traços rurais e o abraço de sinais de modernidade coexistem. Todavia, a uma visão idealizada da realidade Naruse contrapõe subtilmente desafios e dificuldades. O-Koma ouve rádio para aprender a falar sem sotaque, com sapatos tão rotos que tem de os substituir pelos seus velhos tamancos para trabalhar. O escritor está habituado a escrever por nada e por isso não espera pagamento pelo guião. O motorista não é dali, por isso não sabe os locais de interesse da zona.
Mais importante é, porventura, o facto de a figura de autoridade do filme, o patrão, ser representado como corrupto e cobarde. As grandes personagens do filme são trabalhadores num negócio em declínio e as pequenas acções reiteram a sua dignidade, recusando submeter-se ao chefe quando este lhes pede que pactuem num esquema fraudulento. O desenlace mostrará, contudo, como interesses que eles não controlam os tornarão vítimas das circunstâncias. Era o ano de 1941.