O primeiro plano é monumental na sua singeleza contraída (e contrariada…). Uma mulher (Margit Carstensen, uma das atrizes – senão mesmo a atriz – fetiche de Fassbinder) sentada à janela. As suas pernas estão estendidas sobre o aquecedor; uma perna esticada, a outra meio dobrada. O enquadramento é simétrico no modo como filma a arquitetura da divisão: duas janelas, lado a lado, o aquecedor ao centro, e o formato 1.66:1 é “sobre-enquadrado” pela moldura da porta, que recorta o espaço num “académico” 1.37:1. Neste primeiro plano de Chinesisches Roulette (Roleta Chinesa, 1976) é possível encontrar respostas a quase tudo o que está por vir. Há um efeito de concentração neste plano que parece sublimar o gesto do filme (as suas intrigas e personagens, as suas questões e dilemas), apresentando-o de forma cristalizada (e cristalina…). É a capacidade de síntese.
Em primeiro lugar há a questão das pernas. A postura torcida da atriz e a opção de a apresentar assim, com uma perna dobrada e outra estendida, antecipa a personagem da filha, figura torta (e torcida…), no sentido literal e figurado da palavra. De facto, o plano seguinte apresenta essa pequena e diabólica criatura Angela (interpretada por Andrea Schober), sem que seja ainda possível ver as canadianas de que necessita para se deslocar – é provável que sofra de poliomielite, apesar de nunca se especificar qual a doença que a afeta. Fassbinder recuperará esta postura (uma perna dobrada e a outra perna estendida) mais adiante no filme, só que agora transposta para o corpo de Alexander Allerson (o ator que interpreta o pai da criança). Ou seja, e como se ainda restassem dúvidas, será a própria menina que o afirmará, a doença dela afetou a postura dos pais, não só a postura física, mas a postura perante o mundo e, em particular (porque é sobre isso que o filme trata), perante as relações. Eles estão – aos olhos da adolescente mimada – “torcidos” na sua moral e ela, que não se pode endireitar, quem irá pô-los na linha (ou assim pretende).
O outro aspeto que releva deste primeiro plano é a sua imobilidade. Durante os primeiros segundos é possível afirmar com grande convicção que se trata de uma imagem parada, um freeze frame como se diz em inglês, e que em português tem a tradução (que aqui parece constituir um comentário irónico – e talvez infeliz – sobre o desenrolar da trama) de paralítico. Perceber-se-á depois que não, ou antes, que sim, só que a imagem está a correr ao ralenti. Assim, com a máxima lentidão, Margit Carstensen levanta o rosto e olha na direção da câmara. E antes que o seu olhar atravesse a lente e se fixe em nós, o corte dá a ver o contracampo da filha, revelando-a num plano subjetivo da mãe; de novo duas janelas, de novo um aquecedor sobre elas. Esta imagem estática anuncia, em jeito de redondilha, o final do filme, que será, igualmente um freeze frame/paralítico, só que dessa segunda vez a pausa do movimento das imagens é declarada e – mais que isso – reforçada pelo som do disparo de uma arma (a morte como forma definitiva de imobilidade). Esta estase indica uma qualquer noção de inevitabilidade das coisas, ou um olhar mortificado sobre o mundo, um entendimento das coisas como se elas fossem sempre, e já, passado. Há, nesta paralisia que abre e encerra o filme, um cheiro a funesto álbum de família: inevitável e invariavelmente retrospetivo. E, até certo ponto, todo o filme é, afinal, sobre a inescapável linha do destino.
Regressando à abertura do filme, o que espanta, nesse raccord de olhar, entre o plano da mãe e da filha é que, apesar de também a rapariga permanecer totalmente imóvel, as árvores, lá fora, são fustigadas pelo vento (o que não acontece no plano da mãe, onde a natureza permanece calma e aprazível). Esta espécie de dialética cruzada entre movimento/paralisia e interior/exterior (a mãe com o corpo torto mas estática em frente a uma natureza plácida, a filha hirta e torcida mas secundada por uma folhagem revolta) é um bom preâmbulo para as complexas dinâmicas que Fassbinder irá pôr em prática para dar a ver a interioridade das personagens, partindo sempre da sua exterioridade (e das suas externalidades…). E é nesse ponto que as opções pelo sobre-enquadramentos se revelam mais do que uma mera recorrência visual de Fassbinder, isto porque enquanto a mãe é sobre-enquadrada, à filha é dado todo o espaço do enquadramento. Um provocador paradoxo: a mãe, que se move livremente, encapsulada num formato “televisivo” e a filha, com mobilidade reduzida, tem todo o espaço de circulação do ecrã largo. Há, portanto, um comentário, é certo, que é de cariz psicológico, mas também sócio-cinéfilo e geracional: a mãe parece encerrada no formato do melodrama clássico (o adjetivo é inevitável, sirkiano); enquanto que a filha tem todo o espaço da modernidade e não o aproveita, ficando-se pela futilidade da manipulação. Ainda assim, e é aí que se encontra a beleza deste campo/contracampo, elas são o espelho uma da outra (daí a simetria do espaço).
Tudo, neste filme, é comentário, tudo produz sentido, nenhuma imagem, nenhum gesto, nenhum quadro, nenhuma movimentação é simplesmente casual; há um rigor que se impõe sobre tudo e todos.
A cena continua e o campo/contracampo prossegue, só que as escalas dos planos vão se alterando, ora o grande plano do rosto (da mãe e da filha), ora o plano americano, ora planos médios, mas sempre trocados através de um eixo que, perceber-se-á adiante, é perpendicular ao corredor que separa as divisões contíguas que cada uma ocupa: quartos em lados opostos de um corredor que dá acesso à porta da rua. A música clássica ocupa a banda sonora e parece haver um entendimento mudo entre mãe e filha (o campo/contracampo termina quando a mãe se aproxima da filha, se senta a seu lado e pousa a cabeça no seu ombro). Esse entendimento é quebrado pela chegada do marido (a música, que parecia diegética – há um gira-discos em campo – desaparece subitamente quando a criada abre a porta). Marido que vem acompanhado pelo outro homem da história, Kobe (Ulli Lommel). E é aí, com a chegada dos homens, que pela primeira vez a câmara oferece um plano no sentido do eixo que separa os dois quartos. Estas oposições formais de género (homens no eixo vertical, mulheres no eixo horizontal – ou vice-versa – mulheres como figura e projeção, homens como superfície refletora, esvaziados) são outro comentário psicanalítico sobre a função do pai na história, já que ele é aqui apresentado – de forma literal e figurada – como elemento de ligação (e de contraposição…) entre divisões idênticas mas opostas.
Esta estrutura espacial, com dois quartos com portas que se abrem frente-a-frente para um corredor que os separa (e atravessa) será repetida, mais adiante no filme, na casa de férias, só que desta feita o elemento de ligação será a filha, e nos quartos opostos repousam (ou nem por isso) o pai e a mãe, cada um no seu quarto e acompanhados pelo seu/sua amante (interpretados plo referido Lommel e por uma, necessariamente referencial, Anna Karina). O que isto permite a Fassbinder é operar um jogo de pontos de vista e de olhares reenquadrados e sobre-enquadrados que irá depois contrastar com a mise en scène híper dinâmica feita no espaço circular da sala de jantar onde os corpos, as palavras e a própria câmara estão em permanente rotação. Será exatamente por oposição que as sequências nessa sala de jantar ganham dimensão (melo-)dramática, porque tudo o resto é feito a régua e esquadro (num sistema de representação frio e esquemático).
Esta minha demorada atenção sobre a sequência de abertura do filme (em particular esse primeiro plano) resulta da qualidade fotogramática que perpassa todo o filme (e muito do que é o cinema de Fassbinder). Uso o termo “fotogramático” no sentido em que vendo o filme, fica a sensação de que cada fotograma que o compõe (e são mais de 120 mil, para quem quiser fazer as contas) tem uma certa independência, ou antes, não custa imaginar que tirando à sorte um qualquer still, é possível descobrir uma imagem com valor narrativo. Até certo ponto isso é algo que o cinema de Fassbinder tem em comum com muito do cinema clássico e o de (desculpem a deformação profissional) Manoel de Oliveira. Não pude ver Chinesisches Roulette sem pensar em O Passado e o Presente (1972) – a mesma burguesia fetichista, a mesma relação com os criados, a mesma casa como catalisador do desejo, a mesma câmara tresloucada que constantemente se passeia pelos corpos e pelas divisões, a mesmas pequenas traições, a mesma presença da morte –, e, inevitavelmente em Party (1996) – quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, dois, ou três ou quatro casais, a jogo da perversão, o poder dos diálogos e da conversa, o mesmo “jantar” sem comida, o mesmo desenlace, onde a traição fomenta e fortalece o amor do casal originário –, ou, até certo ponto, em A Divina Comédia (1991) – a qualidade recitativa, as citações literárias, a casa de malucos, a “comédia” de portas. Mas todas estas coincidências são narrativas e aquilo que está no cerne desta improvável correspondência Fassbinder-Oliveira é a tal “abordagem fotogramática”, isto é, a potência simbólica dos enquadramentos. Mas terá que ficar para outro momento uma mais demorada reflexão sobre o que aproxima e afastas estes dois cineastas.
Tudo, neste filme, é comentário, tudo produz sentido, nenhuma imagem, nenhum gesto, nenhum quadro, nenhuma movimentação é simplesmente casual; há um rigor que se impõe sobre tudo e todos. O exemplo perfeito disso é o modo como Fassbinder compõe – no limite do delírio – o labirinto de espelhos e imagens reflexas que acompanham todo o filme e para a qual a cena de abertura é mera alusão. Não é por acaso que o manuscrito do romance do criado está escondido por de trás do espelho, não é por acaso que a mordoma se observa ao espelho entre o prato principal e a sobremesa: ensaiam uma performance de classe. E os elementos da família (alargada aos amantes) embora não se vejam ao espelho de forma obsessiva, a câmara filma-os sempre tirando partido dos reflexos produzidos por dois móveis de vidro translúcido que, no centro da sala, contrastam com a decoração novecentista. Esses pilares espelhados que cindem a arena que é aquela sala de jantar provocam toda uma série de prolongamentos, sobreposições, espelhamentos e outras deformações visuais que, em todos os momentos, sublinham ou ironizam sobre as personagem que, respetivamente, se revelam, confundem ou disfarçam os seus verdadeiros intentos. É o teatro da vida exposto na artificialidade operática de um cinema feito enquanto política dos sentimentos.
Roletas Chinesa e os vários outros filmes de Rainer Werner Fassbinder estão em exibição, em cópias digitais restauradas, de 6 a 26 de outubro, no cinema Medeia Nimas, em Lisboa, e no Teatro do Campo Alegre e Cinema Trindade, no Porto.