Todos os filmes que aqui trazemos, para a rubrica Recuperados, começam por nos despertar uma mesma estupefacção, que naturalmente se prende com o relativo obscurecimento ou baixíssimo nível de reconhecimento a que esses títulos estão votados. Vou ser claro: a propósito de The Nickel Ride (1974), não pretendo ser minimamente original, até porque toda a obra do seu realizador, em especial a dos anos 70 do século passado, carece de uma séria reavaliação. Um bom dossier publicado recentemente na Positif e que foi inteiramente dedicado a Robert Mulligan constitui um pequeno começo no sentido da reabilitação plena este realizador, mas mesmo aí, nessas páginas, The Nickel Ride, obra invisível dentro de uma filmografia já de si pouco visível, não merece o destaque devido. Cabe-me então a tarefa de o desenterrar do notório esquecimento, porque se há experiência que se entranha, toma conta de nós e nos confunde… this is the one.
Obra feita na sequência de dois assombrosos filmes coming-of-age, adensando (se não pulverizando) o que alguns críticos vieram a apelidar de classicismo nostálgico tipicamente mulliganiano, Summer of ’42 (Verão 42, 1971) e The Other (O Outro, 1972), este é um thriller psicológico muito lento e movediço do ponto de vista da construção psicológica do seu protagonista, à volta do qual, ou mesmo dentro do qual (de fora para dentro), todo o filme se vai desenrolando, e que é interpretado com sobriedade e elegância por Jason Miller, que havia protagonizado, um ano antes, o blockbuster The Exorcist (O Exorcista, 1973) – mesmo assim, Miller permanece um dos actores mais ignorados da Nova Hollywood. Miller, ou melhor, Cooper (“Coop”, para os amigos) é um zelador, o chamado “key man”, aquele que detém as chaves para vários armazéns da cidade de L.A. onde a máfia deposita mercadorias transviadas. O filme de Mulligan, com argumento de Erico Roth (argumentista de filmes muitíssimo populares, como Forrest Gump [1994] e o mais recente Dune [2021], e de outros filmes a redescobrir, como The Onion Field [Crime em Campo de Cebolas, 1979] e Wolfen [Cidade em Pânico, 1981), atira-nos directamente para um momento de crise na vida de Coop, quando este começa a desconfiar de quem o rodeia; quando este também começa a desconfiar da sua própria capacidade para continuar a lidar com essa altíssima responsabilidade que lhe pesa sobre os ombros. Uma responsabilidade representada pelo tal molho de chaves que lhe confere poder, status, pelo menos no seu bairro (é o seu ceptro), mas que também o põe à mercê de big shots sem rosto visível.
Mulligan cola-se e faz-nos aceder ao “interior” da personagem com um grau de intimidade e empatia incomuns no cinema americano, talvez só presente nalguns filmes de William Friedkin, como Cruising (A Caça, 1980), ou Sidney Lumet, como Serpico (1973). Apesar de tudo nos aparecer tocado pela presença de Miller – pela maneira como olha, gesticula, movimenta -, também é verdade que nada é comentado ou “demonstrado”. Aquilo que cresce dentro da personagem começa por ser “lá com ela”, ainda que sintamos a inquietude desde o primeiro instante e, por arrasto, ela vai paulatinamente crescendo dentro de nós. Não é tanto o que a personagem, ou quem a rodeia, faz ou diz que nos convence de que essa inquietude é, digamos assim, real ou tem razão de ser, mas mais o facto de tudo no filme concorrer, numa série de sugestões não claramente formuladas (por ex., Coop faz anos e só lhe oferecem relógios… como se ele precisasse de ver como o tempo “está contado”), ainda que presentes na própria atmosfera vagamente decadente dos cenários e da ambiência, para a sensação de que Coop está à beira de uma reforma antecipada ditada pela lei da bala.
Eis The Nickel Ride, um magnifico gangster movie existencialista, cheio de angst e enformado por um tipo de sobriedade muito masculina.
O clima mortificante de desconfiança, muito mais da ordem da derme do que da epiderme, é o elemento principal a pintar o drama. O ambiente de paranóia remete-me também para os filmes de Francis Ford Coppola, sobretudo The Conversation (O Vigilante, 1974), e, mais ainda, de Alan J. Pakula, antigo produtor e, sobretudo, grande amigo de Mulligan. Alguma coisa ou alguém parece cercar o protagonista mal o filme começa e, a partir daí, vamos sendo encaminhados para uma espécie de imersão lenta na “noite” mais tenebrosa, em que Coop se vai deixando possuir pelos seus próprios fantasmas. A câmara de Mulligan, como disse, mostra mais do que demonstra, isto é, recusa-se sempre a psicologizar de modo evidente, não impondo leituras sobre o estado de espírito de Coop. O que é dito, de pessoal e intransmissível, expressa-se na maneira como o actor interage, se mexe em cada cena, “monta” o filme no seu olhar “esgazeado” e na cor pálida do rosto. Para convocarmos títulos do cinema americano mais recente, dir-se-ia que tem o grau de aderência ao corpo da personagem de Adam Sandler em Uncut Gems (2019), dos irmãos Safdie, mas o tempo adensa-se e putrifica-se à maneira de um filme tão magistral, neste particular, como The Irishman (2019), de Martin Scorsese – com a particularidade de Mulligan não ter tido o luxo do tempo que teve agora Scorsese. Também me fez pensar num magnífico filme intimista e crepuscular sobre os interstícios do mundo da máfia (de uma certa “economia do crime”), desta feita nova-iorquina (a cidade natal de Mulligan), chamado A Most Violent Year (Um Ano Muito Violento, 2014) de J. C. Chandor, com um Oscar Isaac a conferir à sua personagem um tipo de densidade e nuance dramática semelhante à que caracteriza Jason Miller aqui.
Enfim, estamos entre o que melhor se fez dentro da tradição do drama americano, com o extra de nos sentirmos sempre à margem dos acontecimentos, tentando “dar conta do recado”, deste enredo bem enredado que é a vida de Coop, alguém com uma espada sobre a cabeça, ainda que nunca percebamos ao certo para onde nos levará esse julgamento, isto é, se permite contraditório ou se é de uma sumária crueldade. Adivinhamos na inquietude de Coop – e Mulligan filma apenas uma sequência onírica para nos alertar acerca da gravidade da situação – que este simplesmente perdeu a capacidade de jogar o jogo. E, no mundo do crime, quem deixa de poder jogar, pode bem estar com a cabeça a prémio. A personagem diz, a dado momento, algo como, e parafraseio: “deixei de poder antecipar as coisas”. Coop leu os sinais e sente-se marginalizado num mundo feito de laços sólidos que se renovam, ritualisticamente, em contactos profissionais que são para ser levados muito a sério, or else…
Depois há a máscara assustadora, verdadeiramente creepy, de Bo Hopkins, um cowboy redneck destacado para seguir de perto as movimentações do nosso herói prostrado. No sorriso – simpatia psicótica que faz lembrar “o melga” de Jim Carrey ou um vilão dos irmãos Coen (vide Blood Simple [Sangue por Sangue, 1984]) – e na verborreia complacente vamos pressentido uma ameaça, uma sentença de morte, que virá, se vier…, quando menos se estiver à espera. Vamo-nos arrastando numa espera podre por uma qualquer “reforma”. Reformado pela paranóia ou pela lei da bala, Coop é um homem acossado, detido, a dado ponto, num tempo suspenso que vai pesando cada vez mais e ferindo-o existencialmente. É isso: eis The Nickel Ride, um magnifico gangster movie existencialista, cheio de angst e enformado por um tipo de sobriedade muito masculina.