You learn a lot from pain, mostly in retrospect
Oliver Stone.
No que a leituras diz respeito, o meu ano de 2020 foi largamente preenchido pelas 373 páginas de Chasing the Light: Writing, Directing, and Surviving Platoon, Midnight Express, Scarface, Salvador, and the Movie Game, a autobiografia sentimental de Oliver Stone enquanto homem, soldado, argumentista e cineasta.

A filmografia de Oliver Stone, admito, está longe de ser consensual. Entre a cadeira de realizador e as páginas dos argumentos, da sua autoria romperam obras prenhes em conflito, repulsa e extremismo, de conteúdos politicamente controversos e moralmente questionáveis, e de ambiências que divagaram por adjectivos como abrasivo, kitsch, frenético ou incondicional.
Chasing the Light, pelo seu tom brando, revela-se em total oposição ao Oliver Stone realizador. E, na sua leitura, será impossível não associar a sua experiência de vida aos filmes que concebeu. Afinal, os traumas que presenciou – o de ser um “filho de divórcio” (tal como intitula o primeiro capítulo); o de ter vivido, íntima e pessoalmente, a Guerra do Vietname; o do país fracturado e em ebulição política que encontrou aquando do seu regresso do Sudeste Asiático; o de relações familiares e afectivas quebradas e nunca resolvidas; o de uma “admissão” aos meandros da produção cinematográfica norte-americana com mais agrura do que temperança – foram elementos decisivos para tudo aquilo que, ao longo de 50 anos de carreira, espalhou no grande ecrã.
Esta é uma história sobre alcançar um sonho a todo o custo, mesmo sem um dólar no bolso. É sobre encontrar atalhos, improvisar, lutar, fazer remendos e ultrapassar problemas para acabar um filme e levá-lo às salas, sem saber a origem do próximo ordenado – ou da próxima tempestade ou picada de escorpião. É sobre recusar ‘não’ como resposta. É sobre mentir descaradamente, ranger os dentes com suor e lágrimas, sobreviver.
Nas páginas iniciais de Chasing the Light, a dinâmica conjugal das suas figuras parentais – Louis, corretor de bolsa, e Jacqueline, uma francesa de educação católica, que se conheceram em França durante os últimos dias da Segunda Guerra Mundial – é detalhada escrupulosamente, desde a primeira vez que os seus percursos se cruzaram até, por desenganos e infidelidades mútuos, ao divórcio do casal em 1962. No entanto, a imagem e o espírito da mãe, a existência ambígua do pai e o modo como essa circunstância definiu a sua vida, são constantemente sublinhados por Oliver Stone.
Ninguém ficava indiferente a Jacqueline Stone. Num filme, ela seria Jeanne Moreau, um entusiasmo nato que partilhava com todos. Sim, ela estava lá para mim e, ao mesmo tempo, não estava; era mais como se ela estivesse em ‘exibição’. Mais tarde, compreendi que a nossa relação foi ‘ou um close-up ou um plano distante, mas raramente um plano médio.‘
O capitalismo, na verdade, triturou o meu pai para depois o cuspir. Apesar de ter feito milhões de dólares ao longo de quarenta anos de trabalho, o sistema capitalista de guerras, mais e mais lucros para apaziguar as exigências dos accionistas, e a exploração das pessoas ‘pequenas’ deixaram-no vazio e exangue.
Se os meus pais se tivessem conhecido um ao outro antes de casarem, nunca se teriam juntado e eu nunca teria existido. Crianças como eu nasceram daquela mentira original e, por viverem nesse estado de aparências, sofrem quando percebem que não podem confiar em nada nem ninguém. Como adultos, tornam-se perigosos. A realidade torna-se em solidão. O amor ou não existe, ou não consegue sobreviver.
Em 1967, e depois de uma breve frequência universitária em Yale, Oliver Stone alistou-se no exército, tendo sido convocado para o Vietname. Esse período, profusamente relatado e de modo muito cinemático, revela os combates em que Stone esteve envolvido, a atmosfera que o rodeava e os momentos – especialmente, o dia em que matou um guerrilheiro vietnamita – que lhe valeriam condecorações militares e peso na consciência.
[Em combate] não há mais nada a fazer excepto manter-me vivo. (…) A luz da manhã revelou cadáveres carbonizados, napalm fumegante e árvores cinzentas. Homens que morreram com expressões de dor, em posições congeladas, alguns dos quais ainda de pé ou de joelhos em estado de rigor mortis, uma morte branca e química nas suas faces. Mortos, tão mortos.
Um dia, naquele Verão, tornei-me oficialmente num assassino quando nos vimos envolvidos numa emboscada nos arredores de uma aldeia (…). Correndo o risco de expor a minha localização, detectei uma vala de onde alguém disparava e se abrigava. Sem pensar muito, lancei uma granada a 13 metros de distância e na direcção daquele pequeno buraco. (…) Cautelosamente, aproximei-me pensando que o inimigo ainda estaria vivo, mas quando olhei para o interior do buraco, o homem estava maltratado, despedaçado e bem morto.

Depois do Vietname, estudou cinema na New York University. Entre os seus professores, contava-se um jovem Martin Scorsese, o qual terá sido, inadvertidamente, um dos primeiros apreciadores de Oliver Stone enquanto cineasta.
No fim do meu primeiro ano, fiz uma curta-metragem, com o título Last Year in Vietnam. Era sem diálogos, e filmei-a em película de 16mm a preto e branco, com alguns excertos coloridos em 8mm. (…) Quando o filme terminou, após o que me pareceram onze longos minutos, e o projector desligado, fiquei paralisado à espera do habitual sarcasmo de uma sala de aula inspirada na “auto-crítica” da Revolução Cultural Chinesa em que não se poupava ninguém. O que iriam dizer os meus colegas?
Ninguém ainda tinha falado. As palavras tornam-se muito importantes em momentos como este. E Scorsese simplesmente antecipou-se à discussão quando disse “Bem – isto é um realizador.” Nunca me esquecerei daquilo. “Porquê? Porque é pessoal. Sentes que quem o fez vive mesmo aquilo.
Uma parte substancial da autobiografia é dedicada aos bastidores de como se fazia cinema, na década de 1970, nos Estados Unidos. Entre memórias de reuniões com actores (Michael Caine, Al Pacino, James Woods…), das colaborações em projectos de outros realizadores, da convivência com argumentistas mais experientes (nesse particular, Robert Bolt é sublinhado como influência determinante) e produtores larger-than-life (sobretudo, Dino De Laurentiis, o qual, “como Donald Trump, lidava com processos judiciais como se fossem multas de trânsito”), subsiste a convicção de que Oliver Stone, desde cedo, sempre se sentiu mais confortável em frente da máquina de escrever.
Comecei a escrever dia e noite, à mão, sobre todas as minhas novas experiências. Na verdade, derramava os meus sentimentos mais profundos, porque sentia ter de o fazer. Saíam de mim, como se fossem lágrimas, frases belas, compridas, exuberantes e entrelaçadas que chamavam a atenção para mim – eu! Pela primeira vez na minha vida, existia não como projecção de outros, mas como uma pessoa mesmo real – pelo menos, no papel.
Na carreira de Oliver Stone, o sucesso chegou por via do seu argumento de Midnight Express (O Expresso da Meia-Noite, 1978), pelo qual ganhou notoriedade e “estatuetas”. Uma das mais curiosas memórias daquele momento, descritas em Chasing the Light, é relativa à cerimónia dos Globos de Ouro daquele ano.
Umas quantas gramas de cocaína, um ou dois quaaludes e vários copos de vinho ao longo de três horas, o meu nome foi, finalmente, pronunciado por Melhor Argumento Adaptado. (…) Tentei dizer algo como isto, agora muito mais articulado do que, provavelmente, falei na altura: ‘O nosso filme não é sobre a Turquia… mas sobre a nossa sociedade. Prendemos pessoas por causa das drogas, e atiramo-las para uma prisão… e chamamos heróis aos que fazem isto… e…’ E eu continuava. Segundos. Não tenho a certeza. A minha língua estava seca e pesada, e tentei a custo explicar o meu conceito de como condenamos pessoas a penas de prisão sem reconhecer o que estávamos a fazer enquanto nação. Perdi-me nas palavras, pois não tinha discurso escrito, e estava mais atordoado do que julgava. Ouvi um silêncio de morte na sala… depois os apupos começaram, e aumentaram de tom.

Numa curiosa opção editorial, Chasing the Light apenas cobre o percurso biográfico e profissional de Oliver Stone até 1987, logo após a consagração de Platoon (Platoon – Os Bravos do Pelotão, 1986) nos Oscars e com Wall Street (1987) em pré-produção. Por coincidência, aquele foi também um dos momentos mais proveitosos da sua vida. É nessa veia que o livro conclui: com palavras de esperança no futuro e dos filmes por realizar – e de uma hipotética “sequela autobiográfica”.
Dinheiro, fama, glória e honra, tinha-o tudo em simultâneo. Tinha de progredir. Esperei tantos anos para fazer filmes. O tempo ganhava asas. Queria fazer um filme atrás do outro numa corrida contra o tempo – ou, suponho, uma corrida contra mim próprio num corredor de espelhos da minha própria criação.