O título do novo filme de Charlie Kaufman remete desde logo para um duplo significado: I’m Thinking of Ending Things (2020) pode referir-se ao fim de uma relação, mas também a um suicídio, ou até à ligação entre as duas hipóteses. A interpretação poderá mudar consoante o narrador que escolhermos acompanhar, e Kaufman nunca preferiu a clareza, mas sim a ambiguidade, complexidade e efabulação. Uma das mentes mais férteis e inventivas das últimas duas décadas do cinema americano, Kaufman ficou conhecido pelo seu trabalho como argumentista, nas suas colaborações com Spike Jonze em Being John Malkovich (Queres Ser John Malkovich?, 1999) e Adaptation. (Inadaptado, 2002), ou Michel Gondry, com Eternal Sunshine of the Spotless Mind (O Despertar da Mente, 2004), obras que retratam de forma singular um universo onde a realidade é assolada pelo surreal, onde o subconsciente invade aos poucos a normalidade, como se tratassem de sonhos lúcidos infectados pelo pessimismo existencialista do seu autor.

O seu trabalho como realizador é mais recente, reduzido a dois filmes: a jornada épica sobre a interioridade de um homem que se desdobra em múltiplas manias personificadas num Philip Seymour Hoffman que surge como substituto do realizador em Synecdoche, New York (Sinédoque, Nova Iorque, 2008), e a insólita animação Anomalisa (2015), talvez o seu filme mais linear, de escala menor, mas igualmente sobre uma solidão assolada por medos íntimos.
No início do filme acompanhamos um jovem casal (interpretado pelos fabulosos Jesse Plemons e Jessie Buckley), que viaja durante um dia de inverno para o rapaz, Jake, apresentar os seus pais à rapariga, um momento de alguma tensão numa relação ainda relativamente nova (estão juntos há um mês, sete semanas? a rapariga não parece ter a certeza). Logo nos primeiros minutos ouvimos um monólogo interior da rapariga, Lucy, onde esta diz que está a pensar em acabar as coisas com Jake – fica resolvida a questão do significado da frase, talvez. Apenas talvez porque no primeiro tempo do filme, uma longa sequência que decorre durante a viagem de carro, Kaufman lança diferentes notas dissonantes, pequenas incertezas e variações que mais tarde irão colocar em causa a credibilidade do narrador.
Um dos temas recorrentes na filmografia de Kaufman, e uma das formas que este usa para aludir às tais notas dissonantes, é uma reflexão sobre a forma como a cultura popular permeia o nosso dia-a-dia e molda o nosso discurso, mas também como acaba por influenciar e penetrar as nossas fantasias ou imaginação, contaminadas por pedaços de obras de arte, criando por exemplo uma ideia romantizada do amor ou a expectativa de um final feliz. Porém, no universo criado por Kaufman, por muito que nos tentemos abstrair da realidade e imaginar uma visão soalheira e escapista nessas fantasias, a realidade, em toda a sua dimensão cruel e temor existencial, acaba por se mostrar inescapável, danificando qualquer fantasia de uma versão melhorada da vida.
Se Kaufman não revela uma resposta simples, o seu pessimismo é claro: mesmo na imaginação, o narrador não consegue encontrar a felicidade que encontra nas obras de arte que gostava de viver, como se a fantasia acabasse infectada pelo miserabilismo quotidiano.
Esta dinâmica, entre as referências culturais que parecem apropriadas para fazerem parte de uma memória imaginada, e as brechas que vão questionando a credibilidade do narrador e qual o ponto de vista que observamos, ficam à vista durante a sequência do jantar do casal em casa dos pais de Jake. Por exemplo, a rapariga é primeiro uma virologista, depois uma poetisa, e afinal também pintora, e a estudar Física Quântica – estamos apenas a conhecer diferentes facetas da mesma pessoa, ou tratam-se de diferentes versões de uma namorada? A história de como os dois se conheceram também sofre diferentes permutações, tal como pequenos detalhes como a cor da camisola de Lucy, ou então pormaiores, como a aparência dos pais de Jake, mais velhos a certa altura; a certo ponto, Lucy parece olhar para uma fotografia de quando Jake era uma criança, mas parece ver-se a ela própria; noutro momento parece estar sozinha à mesa ou na casa. Estes detalhes parecem indicar a possibilidade de estarmos presente diferentes versões da mesma pessoa, diferentes manifestações do autor.
Porém, Kaufman introduz um terceiro elemento, além do casal, logo desde o início, mas que só começa gradualmente a fazer sentido, especialmente quando – spoilers a partir deste ponto – a rapariga visita o quarto de infância de Jake. Esse terceiro elemento, que parece ser um guarda ou contínuo de uma escola, tinha surgido esporadicamente ao longo do filme, no seu quotidiano solitário apenas interrompido por pequenas distrações, como um musical na escola ou uma televisão durante uma pausa para almoço, que mostrava um filme fictício de Robert Zemeckis, precisamente sobre uma concepção romântica do amor. Esta terceira personagem parece afinal ser uma versão mais velha de Jake, que mora sozinho na casa dos pais depois destes falecerem, que vive uma existência solitária, com uma imaginação povoada por diversas referências culturais. Afinal, o poema que a rapariga recita como seu pertence a outra autora, os quadros são afinal cópias de outro pintor, a conversa no carro em que Lucy discursava sobre A Woman Under the Influence (Uma Mulher Sob Influência, 1974) pertence afinal a Pauline Kael, o discurso inspirado sobre a nobreza da vida, que surge mesmo no fim, é afinal uma cópia do final de A Beautiful Mind (Uma Mente Brilhante, 2001), e o próprio acto final do filme parece decalcado de um musical, “Oklahoma!”, sobre um triângulo amoroso e em particular sobre uma cena – um sonho – no qual os dois homens lutam pela mulher.
Será então tudo um produto da imaginação fértil de Jake, já mais velho, a olhar para trás? Será uma memória baseada na realidade mas tingida pelas referências culturais, ou apenas uma fantasia, em que Jake imagina uma namorada, ou diversas variações de uma namorada, na procura de um ideal? A ideia de uma personagem feminina que é o produto de um desejo masculino solitário, e resultado de uma amálgama de referências, acaba por ser interessante, precisamente pela forma como revela um olhar fetichista sobre o sexo oposto, olhar também em si resultado de um certo contexto cultural.
Se Kaufman não revela uma resposta simples, o seu pessimismo é claro: mesmo na imaginação, o narrador não consegue encontrar a felicidade que encontra nas obras de arte que gostava de viver, como se a fantasia acabasse infectada pelo miserabilismo quotidiano. Se o tom cínico e esta misantropia podem ser desanimadores, tal como a forma do filme como um puzzle, com diferentes peças e camadas (ou neste caso, um filme-cebola), parece inevitável que o filme caminhe para uma alienação do espectador perante tantas referências (muitas delas só encontradas já depois do filme, tal a sua natureza especificamente americana): como se o caminho se estreitasse até se tornar demasiado pequeno para duas pessoas ao mesmo tempo (o narrador e o espectador), até só sobrar espaço para um passar. É ainda irresistível fazer uma ligação à situação presente na América (especialmente com a imagem de um porco infestado de larvas a liderar o caminho para o final), com uma certa ideia de fim dos tempos, ou pelo menos de fim de ciclo que paira no imaginário colectivo, – Kaufman parece dizer-nos para nos deixarmos perder na imaginação, enquanto alerta para o perigo disso mesmo – com ele nunca se pode ter, realmente, certezas.