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Women lives matter

De Carlos Natálio · Em Julho 12, 2020

No interessante livro de 2016, Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene, Donna Haraway lança várias imagens que procuram ilustrar o seu pensamento materialista. Um pensamento que recusa o Apocalipse e o seu fuck it attitude, mas também, no inverso, a crença numa salvação inerente a uma tecno euforia que levaria necessariamente a uma superação dos problemas do humano. Staying with the Trouble ou “ficar com o problema” significa bater com a cabeça na parede. Isto é, procurar soluções com aquilo que temos. Dessas imagens que usa há duas que acho serem interessantes para vos falar dos dois últimos filmes desta crónica que, ao longo de 24 edições foi tentando fazer sentido de coisas mais ou menos impossíveis, “raccordar” o inusitado, ou simplesmente, dar azo às ligações de um caos em circuito que é a mente a funcionar. Os filmes são Mourir à tue-tête (Morrer de desespero, 1979) de Anne Claire Poirier e Moolaadé (2004) de Ousmane Sembène. E as imagens são a cama de gato ou string figures e o pensamento tentacular.

Moolaadé (2004) de Ousmane Sembène
Mourir à tue-tête (Morrer de desespero, 1979) de Anne Claire Poirier

No filme de Sembène a situação é a seguinte: a segunda mulher de um agricultor de uma vila senegalesa recebe em sua casa quatro meninas assustadas que fogem ao “ritual da purificação”. O ritual é o da excisão clitoriana da qual muitas raparigas morrem. Sem este os homens da comunidade não aceitam casar com as mulheres, são consideradas “bilakoro” que, não sabendo eu língua bambara, há-de ser próximo da palavra “impura”. Collé Ardo (Fatoumata Coulibaly) é a mulher guerreira que há-de inspirar muitas outras na comunidade a opor-se a este costume que leva precocemente tantas crianças – já para não falar da remoção do prazer sexual, algo que o filme não aborda, pelo menos directamente. Ardo começará o filme traçando um limite, visualizado através da colocação de uma corda à porta de sua casa. Para lá dela nenhum homem ou mulher poderá passar e entrar para retirar as jovens da sua guarda.

Voltando a Haraway, as string figures (sf) são aqueles jogos que fazíamos em criança, com um cordão e nós, em que sucessivamente íamos traçando diferentes formas, passando-os de mão em mão. Para a teórica americana as string figures dão uma corporização visual ao conceito de SF que implica várias declinações como o science fact, a speculative feminism, a speculative fabulation ou, claro, a science fiction. Se bem entendo, as string figures são uma actualização do que já havia de certo modo sido intuído com a noção do reticular, mas aqui dando-lhe um cunho mais vasto, cosmológico, em que sempre vamos compondo em conjunto com as demais linhas e nós do cordão. Por outras palavras, salienta-se um pensamento em comunidade, criativo e uma interacção constante e contínua, um fazer e desfazer, com todas as espécies do planeta, humanas ou não.

Moolaadé (2004) de Ousmane Sembène
Mourir à tue-tête (Morrer de desespero, 1979) de Anne Claire Poirier

Se me lembrei desta noção que li no livro de Haraway é porque a obra-prima de Sembène encena bem a vontade de desfazer os territórios, ilustrados pela tal corda na casa de Ardo. Não só desfazer a necessidade de existência dessa corda como limite do “não trespassarás”, mas sobretudo pela entrada progressiva da comunidade feminina nos espaços reservados aos homens. Algo que podemos ver na cena final em que as mulheres entram na assembleia da vila, um espaço de poder exclusivamente masculino, para afirmar a sua força e o seu poder. A mesma ideia pode ser avançada para a simbologia das rádios e da televisão que os líderes da vila querem confiscar e queimar, pois acham que estas são as culpadas dos intuitos revolucionários femininos. O último plano é o de uma antena, que será símbolo de modernização da vila, mas também a substituição de um sistema de linhas rectas e separadas por um outro rendilhado de ondas invisíveis que entram em todos os espaços, insuflando todos de conhecimento e poder de “criar com”.

Repegar em filmes desirmanados e procurar retraçar com eles novas figuras, o que aqui tentei fazer sempre foi, julgo, um jogo da descolonização do pensamento crítico. Sigamos em andamento e sem conclusões. Feliz por isso.

A descolonização implica um processo de descentramento do pensamento e dos sistemas de acesso ao poder e à representação. Isso está mais do que à vista em Moolaadé com essa coincidência entre o ánthropos e o homem que tem o poder de punir, de escolher, de determinar a existência do outro género. A descentralização passa precisamente por uma participação comunitária de todos, de um fazer-com numa espécie de sucessão ininterrupta de figuras e nós, sendo criados neste esquema das string figures. O feminismo resulta, creio, de um dos icebergues a partir do qual se combate esse centramento autocrático. Por isso, Haraway contrapõe a narrativa do antropoceno, centrada no homem (e, em círculos concêntricos, um certo estatuto privilegiado de apenas alguns de entre os ánthropos) às narrativas de um chthuluceno. Este é baseado no monstro criado pelo escritor H. P. Lovecraft que funde a aparência de polvo, com o de um dragão e do ser humano. Em vez de vivermos atormentados com o fim, uma narrativa do Homem na terra, o chthuluceno propõe uma forma de pensamento tentacular – que vai unindo e cruzando campos de saber e acção, espécies, formas de gerir habilidades de resposta (respos-abilidades), numa narrativa em que o Homem é, na sua continuidade, húmus.

Um filme como Mourir à tue-tête abraça bem os poderes destrutivos e construtivos desse pensamento tentacular. A realizadora e produtora canadiana Anne Claire Poirier, precursora do cinema feminino do Quebec, trabalhou, sobretudo nos anos 70, acerca de várias problemas e vivências das mulheres. A maternidade em De mère en fille (1968), o aborto em Le temps de l’avant (1975), a submissão feminina às narrativas oficiais da História em Les filles du roy (1974) ou a violação, neste filme de 1979, considerado a sua melhor obra. É uma obra pensativa, revoltada, tentacular. Poirier vai filmar uma longa cena de violação do ponto de vista da vítima; temos acesso, lentamente, ao domínio de um corpo assustado, ao discurso de ódio do violador face a todas as mulheres concentrado na vítima Suzanne, momentos de agressão física (com o ecrã a ir a grená nessas ocasiões) e, finalmente, o acto sexual. Como se ouve a dada altura, a violação é o contrário de fazer amor, é o fazer do ódio.

Moolaadé (2004) de Ousmane Sembène
Mourir à tue-tête (Morrer de desespero, 1979) de Anne Claire Poirier

A inteligência de um filme como Mourir à tue-tête passa pelo facto de Poirer e da argumentista Marthe Blackburn abordarem a questão da violação em toda a sua extensão. Desde logo, naquilo que eu apelidava de poderes destrutivos da lógica tentacular. Isto porque, a seguir à violação vêm a examinação genital pelo médico, as fotografias íntimas para prova, o racconto com o máximo detalhe do detective à procura de evidências e incongruências. No fundo, após a violação, a sociedade monta um esquema que faz a vítima viver tudo outra vez, ser violada novamente por outros meios. Já o poder tentacular na sua faceta mais criativa ou transformadora pode ver-se em vários momentos. Em primeiro lugar, pelo uso de imagens reais de arquivo que mostram cenas de excisão genital (Moolaadé mas com imagens reais), violações ou outras agressões ao corpo feminino em contexto de guerra. O real e o ficcional surgem agrafados não apenas por uma questão de choque mas para construir o argumento: a violação não é apenas um acto criminoso de natureza sexual, mas um crime político de dominação que faz da vítima uma vítima de guerra.

O pensamento tentacular avançará depois pelos efeitos da violação na vida, no corpo e na mente de Suzanne, mas também pelas estratégias de distanciamento. Assim como Suzanne que grita de dor ao espelho – e este é objecto que dá a ver alguém que, fisicamente igual, já se apresenta um outro – a cena de tribunal possui a virtude de quebrar com a lógica do espelho funcional. Aí, várias mulheres de olhos vendados são inquiridas por uma voz masculina – a lei masculina, que é o mesmo que dizer a lei da sociedade, apoiada sobre certos ditames religiosos ou psicanalíticos – voz provinda de um corpo sempre ausente. Estamos ainda no domínio da lógica que implicará uma versão de lado versus lado, campo contracampo, mas sim a possibilidade saudável de fazer com, de uma string figure que compreenda de facto o alcance das várias violações e condicionamentos sobre o corpo feminino. Por exemplo, esposas violadas ou pressionadas a terem sexo pelo marido ou namorado, no contexto de uma relação. Ou as crianças assediadas por um pai ou outro familiar. A quebra do sistema fechado que fará da vítima de violação a vítima do sistema, que não pune devidamente o agressor, é essa lógica do tentáculo corruptor, que só pode ser combatido através da tentacularidade na discussão da questão. Por isso, Anne Claire Poirier afirma que fez este filme para homens e mulheres, para que pudéssemos discutir todos. Por isso, ainda, a outra camada do filme, que lhe vai dando um cunho reflexivo, no qual realizadora e montadora vêem estas cenas que compreendemos rapidamente terem sido encenadas e realizadas com base em investigações reais.

Quer no filme de Poirier, quer no de Sembène, coloca-se o problema de uma disputa de verdades, ou melhor, versões parciais de uma realidade. Realidade do lado de lá da corda de Ardo, realidade do lado de cá do uivo desesperado de Suzanne em frente ao espelho. “Ficar com o problema” também é usar da ficção e das lágrimas, ou do distanciamento e da revolta, como faz o senegalês ou a canadiana, para retraçar as versões, pegar em seus dedos as linhas com formas já formadas e desfazer os nós para criar novas figuras e novos pontos de sedimentação. Infelizmente, o cordão sempre esteve mais tempo numas mãos do que noutras. O tempo da descentralização e da igualdade é também ele o tempo da luta contra a injustiça. Dois anos depois, estas crónicas chegam ao fim. E penso em como o raccord do algoritmo humano é sempre falso. É preciso fazer-nos valer do orgulho no seu artifício. Repegar em filmes desirmanados e procurar retraçar com eles novas figuras, o que aqui tentei fazer sempre foi, julgo, um jogo da descolonização do pensamento crítico. Sigamos em andamento e sem conclusões. Feliz por isso.

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Carlos Natálio

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