Estranho paradoxo este, escrever sobre liberdade em tempos de clausura. Talvez até as actuais restrições façam um semelhante grupo de libertinos explorar os eucaliptais – esse “lugar maldito” (citando um personagem do filme) – ignorando as forças estatais, porque o desejo é a mais soberana das forças. Porém, o paradoxismo não termina aqui, pois só podemos pensar o desejo se pensarmos contiguamente a repressão e quanto maior é a repressão, maior o desejo. Não é por acaso que esta ilustre corte de devassos – assim como o próprio Marquês de Sade -, nasce em pleno século iluminista. Sem a ferocidade da razão e da moral religiosa da França pré-republicana, Sade ou esta corte francesa que procurava exílio e tolerância em terras prussianas, talvez não tivesse tido o mesmo ímpeto criativo. E não será também por acaso que tanto Sade como os personagens deste filme descendem da nobre linhagem aristocrática, onde a exigência de um vida pública casta instigava à dissidência no plano da vida privada.

Pierre Klossowski, num magnífico livro dedicado a Sade (Sade, Meu Próximo), relembra que a transgressão pressupõe que existe uma ordem, que haja normas e que, por debaixo dessas normas, se acumule uma energia que impulsione a vontade de transgredir. Sem este impulso não haveria também a fantasia e é precisamente esta a chave crucial para compreender tudo aquilo que (não) vemos neste filme. A um determinado momento, talvez aquele que é o mais explícito do filme, dois condes conversam sobre uma futura prática sexual e após uma extensa descrição do coito com um animal, que termina numa cena coprofágica, um dos condes responde: “Finalmente uma imagem justa que preencha os meus apetites”. Esta image, que nunca chega a ter qualquer materialização no filme, coloca Liberté (2019) na linhagem de Salò o le 120 giornate di Sodoma (1975) de Pasolini. Contrariamente aos inúmeros disparates que se diz sobre Salò e sobre um suposto gosto pela abjecção – como se a crueldade do filme estivesse depositada no corte da língua ou no ingerir das fezes; pelo contrário, a maior violência de Salò está no suicídio da pianista, pois enquanto o elemento da arte resiste à barbárie, a barbárie não toma conta do filme, tanto que as execuções só ocorrem no final do filme, após o suicídio -, nenhum dos filmes vive daquilo que nos dá a ver, mas é sobretudo no dito que reside a força da perversão e da abjecção.
O filme de Serra explora todos os mecanismos possíveis à excitação mental, porque em momento algum a excitação se traduz em tesão. Não há nenhuma erecção em Libertè e contra qualquer entendimento primário do desejo sexual, como se o prazer estivesse unicamente ligado à concretude do acto, Serra elabora uma das mais complexas reflexões sobre o prazer neste filme. A cena desenrola-se em torno de um dos personagens, que, deitado num carro de mão enquanto vários urinam para cima dele, masturba-se sem qualquer indício de erecção, sendo que um dos personagens comenta: “mas ele não tem qualquer prazer!” Ao qual um outro personagem lhe responde, de forma condescendente, de que não é preciso estar erecto para fruir (não é por acaso que Serra termina esta cena num close-up da cara do homem, onde vemos espelhado um imenso deleite). Mas o facto de não haver qualquer erecção explícita no filme implica ainda um outro nível de leitura. Uma erecção significaria uma materialização do acto e esse acto dentro do filme, implicaria uma certa exclusão do espectador. O espectador é tal como o voyeurista – figura por excelência deste filme -, ou seja, ao voyeurismo é exigido a suficiente presença para nos darmos conta dele e inversamente a sua invisibilidade para que o voyeur não se torne demasiado visível. Tal como o espectador, o voyeur unicamente assiste, mas é a sua presença que determina a existência do acto.
Serra parece querer cartografar o declínio do homem ocidental, assim como dos elementos que o compõem. Não há pois razão que não ceda ao prazer da carne, não há nobreza que não se vergue às humilhações do sexo.
Outra questão fundamental que o filme explora é a relação intrínseca entre desejo e tédio. Tanto em Salò como no romance homónimo de Sade ou mesmo em Libertè tudo converge inevitavelmente para a morte. Porque o impulso sexual esconde sempre um impulso mortal, pois o êxtase da carne é um êxtase finito, o que leva a que novas sensações impliquem uma maior radicalidade do acto. Não é por acaso que as poucas cenas sexualmente exuberantes do filme são levadas ao ponto em que a excitação se converte em aborrecimento e o aborrecimento por fim em dor. O próprio coito sexual vai perdendo lugar por entre as práticas dos libertinos, sendo o chicote, por fim, o objecto fetiche de todo o filme. Algures um personagem grita por mais e mais chicotadas, por entre a carne já dilacerada das nádegas e das costas, o que expõe a cru a natureza incessante do desejo. Quando o corpo atinge o máximo prazer qualquer repetição posterior desse prazer é condená-lo à monotonia – aos espíritos infatigáveis, resta-lhes somente o derradeiro êxtase, o da morte. Todos os personagens ao longo do filme são consumidos por um imenso tédio, passeando a sua carne cada vez mais lânguida e cada vez menos excitada, em busca de algo mais violento e, portanto, mais sensível. Se ainda restava algum receio à mulher que banhada em leite sentia os pulsos quebrarem-se, nenhum receio há na outra mulher que pede para ser chicoteada junto à carruagem.
Numa das cenas finais há uma mulher que grita que está aborrecida, porque um homem já não é capaz de penetrá-la. Logo em seguida, surgem dois planos rápidos que revelam algumas mortes. Serra, tal como afirmei anteriormente, é sempre depurado naquilo que mostra porque não há qualquer sadismo em Liberté. O único sádico é aquele que imagina, ou seja, o espectador. Por diversas vezes, a nossa imaginação é levada pelo fora de campo a congeminar as práticas mais terríveis, estimuladas por sons e gritos, assim como a própria iluminação do filme nunca permite que possamos aceder à totalidade dos corpos e das práticas. Tudo está mergulhado em penumbra e quando há luz, há um cuidado meticuloso de convocar somente a alvura da lua, um branco de tal forma gélido e assumidamente artificial que os actores ganham contornos fantasmagóricos. Essa é a característica mais importante dos filmes de Serra, sobretudo desde Història de la meva mort (História da Minha Morte, 2013), em que o personagem ao longo do filme vai perdendo as suas características humanas e ganhando contornos grotescos e vampíricos. Se em El cant dels ocells (O Canto dos Pássaros, 2008), Serra procurava já de modo provocatório dessacralizar a imagem dos Reis Magos, pondo-os a rebolar encosta abaixo tal como crianças, esta busca pelo prosaico em figuras mitológicas da cultura ocidental foi sendo refinada nas seguintes longas-metragens. Tanto o Casanova de Història de la Meva Mort como posteriormente o Luís XIV de La Mort de Louis XIV (A Morte de Luís XIV, 2016) se metamorfoseiam em Drácula. Estas figuras envelhecidas, frente à morte e desfiguradas pelo tempo, são transformadas pelos mesmos agentes, o tédio e o deboche. Serra parece querer cartografar o declínio do homem ocidental, assim como dos elementos que o compõem. Não há pois razão que não ceda ao prazer da carne, não há nobreza que não se vergue às humilhações do sexo.