Caderneta de Cromos é um questionário breve, mais ou menos imbecil, sobre o mundo do cinema, em geral, e sobre o mundo em toda a sua inteireza, em particular. Rui Alves de Sousa é humorista, crítico de cinema na Take Cinema Magazine, podcaster nos programas À Beira do Abismo (do qual também tem um blog homónimo) e Escolhe Tu!, participou já em vários espéctaculos de comédia stand-up, é assistente de produção na produtora independente JumpCut e, não menos importante, venerador incondicional da Claudia Cardinale.

1 – O que é pior para a saúde: monóxido de carbono, raios gama ou o MCU (Marvel Cinematic Universe)?
Cada uma das opções apresentadas tem o seu quê de maligno para a humanidade, mas na tentativa de fazer uma daquelas metáforas sensacionais do calibre de um José Rodrigues dos Santos. Digo que se o monóxido de carbono e os raios gama podem ter efeitos nocivos no ser humano, já o MCU, se consumido em quantidades excessivas, tem efeitos não só nocivos para o ser humano (o sistema imunitário deixa de funcionar perante tanto CGI), como é também uma espécie de monóxido de carbono (por tornar o espectro do mercado do cinema um pouquinho tóxico e poluído) e, em simultâneo, um grande ataque de raios gama (porque dá cabo da cabecinha de todas as pessoas assim que faz sentir a sua presença). Calma, fanboys da Marvel, que nada tenho contra os vossos hábitos “visionamentais” – mas que tal se, em vez de correrem ao cinema 74 dias seguidos para verem e reverem o Avengers: Endgame (Vingadores: Endgame, 2019), fossem só 70, sendo que as outras 4 teriam de ser preenchidas com outros filmes sortidos à escolha fora do MCU? Vá lá, não exagerei na dose. Podia ter pedido uma dieta mais à base de números com dois algarismos, mas eu sei que é difícil largar as drogas pesadas assim de repente, sem um aconchego. Só custa dar o primeiro passo!
2 – Qual é, para ti, um realizador cuja obra e/ou personalidade descreva adequadamente Joacine Katar Moreira?
Diria que o estimável Rui Goulart (autor dessa obra prima da História dos Multiversos denominada 1ª Vez 16 mm (2008) se adequa perfeitamente. Quem sabe se ele não fará um biopic sobre a vida da ilustre deputada? O cineasta é perito nas Artes do Amor e da Aleatoriedade, e o seu trabalho é pontuado pela junção de um extremo amadorismo técnico e narrativo, em que actores consagrados contracenam com cepos que só lá estão porque efectuaram o abençoado patrocínio à obra fílmica. O cinema de Goulart tem um conjunto de estranhos simbolismos e em que excertos rapidíssimos de canções de Celine Dion se conjugam, de forma espectacularmente desastrosa, com um realizador que gosta muito de se filmar a si mesmo, enquanto dispara para todos os lados a ver se acerta em alguma das barraquinhas de tiro ao alvo da feira popular imaginária que dá pelo nome de “Poder”. Creio que os dois se dariam muito bem. Caso o sr. Goulart aceite ideias dos seus admiradores, recomendo que a banda sonora da fita seja da exclusiva autoria do nosso maior cantautor de intervenção vivo – esta foi só porque me apeteceu, e é um escândalo se ainda não conhecem esta cantiga.
3 – Como seria um remake do The Exorcist (O Exorcista, 1973) realizado por Jean-Luc Godard?
Basicamente seguiria uma receita de coisas pensadas com grande profundidade durante 13 minutos, enquanto Godard comia uma sandocha de ego e mandava piretes ao festival de Cannes em frente ao espelho do seu WC, logo depois de lhes ter enviado o seu mais recente filme numa disquete pela via de um pombo correio. Enfim, diria que a receita seria composta por: muitas luzes e muitas cores para distrair a criançada, sistema 7.1 de áudio para incluir, com mais profundidade sonora, todos os 47 tipos de tosse convulsiva de que sofre o realizador; citações várias de 9 curtas-metragens filmadas em Zagreb entre 1956 e as primeiras sete semanas de 1957 – mais aquele feriado no Outono desse ano que se revelou muito produtivo para os jovens realizadores da localidade; um plano filmado com o iPhone 6 (usar um modelo mais recente do que esse não é aceite pelo mestre como “uma tentativa de revolucionar o Cinema”) que demonstra a origem do demónio Pazuzu (numa fábrica de escovas de dentes – ah, a auto-citação do cineasta aos seus tempos pró-operariado); e 37 fotos polaroid tiradas por um sagui que espelham as contradições da crença do padre Karras. A menina possuída seria interpretada por uma criança nigeriana refugiada, e o demónio teria a voz da funcionária do snack-bar que Godard costuma frequentar quando lhe apetece fingir que ainda é um ser humano. É levar isto tudo ao lume no movie maker do Windows XP e deixar que os meninos dos Cahiers atinjam o nirvana cinéfilo mesmo sem terem visto o filme. Não esquecer que, antes de entregar o produto final, serão colocados os créditos escritos em aramaico e de pernas para o ar, e o colosso cinegásmico culminará com uma frase do livro O Desespero Humano, de Søren Kierkegaard, escolhida aleatoriamente – e tendo em conta o lado sempre transgressivo do mestre, ele acaba por fazer uma opção nada convencional, retirando da segunda página do volume esta citação: “Tiragem: 5000 exemplares”. Ora toma, Friedkin!
4 – E o The Irishman (O Irlandês, 2019) subsidiado pelo ICA?
O ICA só aceitaria se no guião estivesse escrito que se trata de uma adaptação de uma obra literária portuguesa incluída no Plano Nacional de Leitura – nem que depois só seja mencionado o título a meio do filme, quando nos mostram que é o livro que o protagonista está a ler enquanto espera pelo 727 para ir à labuta. E os mais novos é que pagam, coitadinhos. Depois não se queixem que eles preferem ver YouTubers a fazerem piadas sobre necessidades fisiológicas. Ou isso ou se for uma curta-metragem da ESTC em que a história da máfia é apenas o ponto de partida para uma reflexão pictórica sobre a natureza do abacate como objecto fálico pela sociedade mesopotâmica. Enfim, mais depressa o épico seria financiado pela TVI para dar origem a uma novela de 79831 episódios. Assim nem se precisava de pagar efeitos digitais, que os actores envelheciam por sua conta ao longo dos 45 anos de exibição. Fora o ICA e a caixa mágica, devo dizer que o The Irishman português já foi feito, e muito antes de Scorsese. Chama-se Corrupção (2007) e, se nenhum dos actores foi rejuvenescido digitalmente, todos os espectadores envelheceram 27 anos no fim do visionamento, dada a quantidade de azeite utilizada na concepção do filme.
5 – És nomeado com o novíssimo cargo de embaixador cultural do cinema português na República Democrática do Congo. Qual o primeiro filme que mostrarias e porquê?
Creio que o único filme português que interessaria aos habitantes do Congo seria Recordações da Casa Amarela (1989), para perceberem o quão belo pode ser o nosso vernáculo em toda a sua complexidade linguística e badalhoquice filosófica. E para prevenir a eventualidade dos meus subordinados da embaixada se portarem mal (por exemplo: surripiarem o último exemplar da minha sobremesa “perdileta” na cantina), levaria comigo também, para o devido castigo, uma cópia dos filmes Chaimite (1953), A Aldeia da Roupa Branca (1939) e Uma Aventura na Casa Assombrada (2009), para serem visionados em loop sem parar ao longo de 3 dias.
6 – Ligam-te. É o Woody Allen, que te diz: “Rui, vi o teu último espectáculo de stand-up e quero que venhas imediatamente a Nova Iorque para ser o actor principal do meu novo filme.” Estás a sair de casa quando, do nada, te aparece à porta o Dr. Emmett Brown no seu DeLorean e diz: “Tens que ir já a 1965! A Claudia Cardinale não tem ninguém que a acompanhe a jantar esta noite!” Ambas são oportunidades irrepetíveis e que exigem uma resposta imediata. Qual escolherias?
Qualquer questão que envolva Woody Allen e Claudia Cardinale, mesmo que envolvesse largas quantias de dinheiro oferecidas pelo primeiro, terá sempre a mesma resposta: nunca se recusa uma oportunidade para estar com a maior donzela do cinema no topo da(s) sua(s) forma(s). Aproveito para me auto-citar, pescando o que comentei neste podcast: uma das melhores coisas que fiz na vida foi rever o Once Upon a Time in the West (Aconteceu no Oeste, 1968) no Grande Auditório do CCB. Dei por mim a ter, de repente, 20 metros de Claudia Cardinale à minha frente. Uma maravilha.
7 – Imagina uma sala de cinema monstruosamente colossal ao ponto de conseguir abarcar todas as pessoas do mundo inteiro. Qual a sequência cinematográfica que, ao ser mostrada, seria capaz de assegurar a paz mundial eterna?
Acredito que qualquer sequência maravilhosa dos grandes musicais (como esta aqui, por exemplo) conseguiria colocar toda a gente num espectro de paz e amor e confraternização como nunca se viu na História da Humanidade. Quem é que consegue resistir a estes momentos tão mágicos, encantadores e universais do cinema? Ah, espera aí, dei uma resposta séria, não foi? Então pronto, fica antes esta aqui. Também produz o mesmo efeito.
8 – Qual é, para ti, a melhor ideia para um filme escrito e protagonizado pelos Gato Fedorento?
Um remake do The Exorcist realizado por Jean-Luc Godard. O Zé Diogo Quintela pré-riqueza (ou seja, com mais quilos) pode interpretar a infame escadaria da história.
9 – O que há mais em Portugal: “humoristas” ou “críticos de cinema”?
Como a maioria da malta acha agora que cinema e televisão é tudo a mesma coisa, um filme do Coppola e um episódio dos Batanetes estão ali taco a taco a competir no mundo dos “conteúdos audiovisuais”, não acho que a abundância dos “críticos de cinema” seja assim tão elevada. É óbvio que não estou a incluir nessa categoria aquelas pessoas que escrevem textos onde dizem “o filme é bué da fixe, curti milhões, a história é gira e a iluminação também, comentem aí o que acharam people“, porque também não sou assim tão cínico. Já quanto a “humoristas”, existe uma disseminação de uma árvore qualquer que nos tem dado um superavit nesse sector que se tornará insuportável no futuro. Já falta pouco para termos mais “humoristas” que “portugueses” (porque já uma parte são turistas e etc. e tal) neste nosso belo país. Quem mandou abrir open mics a torto e a direito? Enfim. Mas não se tem falado de outra vertente, agora em expansão: a dos “críticos de cinema armados em humoristas porque acham que têm muita gracinha ao efectuarem perguntas bizarras em questionários de blogues de cinema”.
10 – Uma maratona da carreira integral do Lars von Trier vista amarrado à cadeira e com os olhos forçadamente abertos à la A Clockwork Orange (Laranja Mecânica, 1971), ou uma noite passada na banheira com a velhota do quarto 237 do The Shining (Shining, 1980)? Escolhe tu!
Se for possível gritar todos os impropérios ao senhor dinamarquês durante os visionamentos, por mim já fico satisfeito. Se calhar ele até tem prazer em ser insultado, mas prefiro isso a ter de usufruir de uma experiência nocturna tão revigorante como espetar um ferro em brasa no intestino delgado. Ah, e se me portar bem, têm de me dar o bónus de poder dar um calduço ao dito cujo no fim da experiência, está bem?
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