Já referimos noutra ocasião que uma das características do cinema de Farhadi é a capacidade de sintetizar nos primeiros minutos de cada filme, geralmente pela via da metáfora, o tema principal que explorará nas duas horas seguintes. Tal como o mais recente Todos lo saben (Todos Sabem, 2018) se iniciava numa torre de relógio abandonada, introduzindo o assunto fulcral que era o tempo, o primeiro plano de Darbareye Elly (À Procura de Elly, 2009) tem a câmara colocada no interior de uma caixa escura indistinguível, atravessada apenas por uma pequena brecha pela qual é fornecida à audiência uma visão estreitíssima do exterior. Um match cut e a caixa dá lugar a um túnel, com a brecha a ser substituída por um rasgo de luz ao seu fundo, o qual iluminará gradualmente a totalidade do enquadramento, à medida que um grupo de amigos rumo a ela se dirige nos seus automóveis. Da escuridão à luz, da vista parcial de algo para o seu todo: analogias recorrentemente utilizadas, e aqui levadas à letra, para referir a transição que vai da ignorância, do engano e do sigilo, ao conhecimento dos factos. Com este começo, Darbareye Elly parece-nos principiar aquela que será a sua grande obsessão formal e narrativa: o trajecto da mentira para a verdade, assim como os seus efeitos.
É tentador denominar os filmes de Farhadi como thrillers. Certo, há também a busca pela realidade dos acontecimentos (neste caso, a desaparição da enigmática Elly, uma educadora de infância convidada pela mãe de uma das suas alunas, Sepideh, a passar um fim-de-semana com os amigos desta, havendo nela o intuito secreto de alcovitar o romance entre Elly e um deles), mas principalmente a forma como é retratada a angústia, o medo, e a empatia do espectador se vê desafiada pela revelação das arestas mais obscuras dos sujeitos que filma. Mas Farhadi prende-se a uma tradição teatral, interessando-lhe menos o desenvolvimento e resolução “policial” dos incidentes trágicos que expõe do que a exploração das relações humanas num espaço concentrado a partir dos mesmos, usando-os como catalisadores da instabilidade interna de um grupo – tão agitada como a força do mar para a qual a villa de Darbareye Elly tem vista e que de alguma forma parece espelhar o clima pressuroso dentro dela. A verdade que se busca em Darbareye Elly é então menos a da origem do desaparecimento da personagem homónima, idêntico ao de L’Avventura (A Aventura, 1960), do que da sua virtude e integridade moral. Destapam-se velhos segredos, entram novas personagens, surdem as dissidências numa teia de enganos convulsivamente tecida, e ninguém é capaz de responder à questão crucial que o realizador impregna em cada plano: “Quem era Elly?”
O círculo vicioso de dissimulações, logros e ocultações que é montado sobre Elly surde como consequência imperativa de uma cultura sexualmente conservadora e possessiva, onde um noivado com o desejo de ser rompido acarreta o sabor da conspiração.
É nessa dinâmica atribulada propulsionada pela catástrofe que Farhadi, como os mais aclamados cineastas iranianos, critica obliquamente o seu país natal. Os conflitos, artimanhas e manigâncias que filma são feitos examinações das hipocrisias, repressões e atavismos do Irão. O círculo vicioso de dissimulações, logros e ocultações que é montado sobre Elly surde como consequência imperativa de uma cultura sexualmente conservadora e possessiva, onde um noivado com o desejo de ser rompido acarreta o sabor da conspiração, onde uma mulher comprometida é incapaz de estar ausente de casa por mais de um dia sem sentir medo de represálias, em suma, onde até no interior da classe média iraniana moderna a emancipação feminina e insubmissão ao patriarcado são encarados como delitos. Tal como os seus dois outros grandes filmes (com a qual Darbareye Elly forma, no nosso entender, uma trilogia obrigatória do cinema contemporâneo), Chaharshanbe-soori (Fireworks Wednesday, 2006) e Jodaeiye Nader az Simin (Uma Separação, 2011), deixam salientes, a prova da destreza, maturidade e globalidade do cinema de Farhadi está na capacidade de abordar um aglomerado de tensões e coibições sociais culturalmente especificadas como universalmente tangíveis, sentidas de forma frenética e veemente, independentemente da nacionalidade, ideologia, religião, classe ou género do espectador.
É por isso que os seus filmes são tão visualmente dinâmicos. Em cada um deles há a irrequietude imprevisível do blocking dos actores, a urgência justificada da câmara à mão (que aqui entra após a primeira meia-hora filmada em tripé, quebrando o tom jovial de rituais sociais veraneantes para dar lugar a uma tentativa desesperada de resgate de uma criança em afogamento), o rigor cinético da montagem, o jogo de evasão e confronto entre os olhares de cada rosto, o aproveitamento do espaço deixado por portas abertas para sucessivos enquadramentos dentro de enquadramentos onde as personagens se movem e espiam. Toda esta turbulência de mise en scène reflecte a moral e emocional atravessada pelas figuras humanas no plano, nas quais Farhadi corporaliza os medos, as tensões, as perturbações comportamentais resultantes da imposição de sistemas de valores reaccionários e políticas de género obsoletas. Daí que aquela sequência tão simples em que Elly brinca com o papagaio (e com a qual Farhadi se despede dela) acabe por ser tão bonita, onde ao invés de se focar no brinquedo ou num campo/contracampo entre ele e ela, Farhadi filma exclusivamente o rosto de Elly com sucessivos cortes na montagem que não obedecem intencionalmente a qualquer regra de continuidade, frisando apenas sempre o mesmo gesto da corrida, da contemplação do papagaio no céu e do sorriso que este lhe causa, sendo nela visível uma paz e alegria genuínas. Não é uma sequência sobre o lazer, é uma sequência sobre a liberdade.
E a ambiguidade, a incerteza dos acontecimentos apresentados em elipse, fazem com que seja criado um caleidoscópio de perspectivas individuais quanto ao apuramento de responsabilidades, onde cada personagem parece ser vítima colateral ou cúmplice forçada das acções incorrectas de outra, das quais Farhadi reserva sempre e sempre um olhar objectivo, permitindo democraticamente ao espectador tirar os julgamentos que melhor lhe aprouver de cada conflito subsequente. O final, como é apanágio no cineasta, não traz qualquer resposta, mas apenas uma série adicional de questões. É Sepideh culpada ou não deve sequer ser julgada pelo que via como as suas boas intenções? Poderá o grupo voltar a ser uno como dantes ou estará irreconciliavelmente quebrado pelo peso da tragédia? Tudo o que ficamos é com o último plano, no interior da casa, com vista para a beira-mar: lá fora, os amigos tentam arrastar em conjunto o carro atolado na areia, enquanto no interior Sepideh está sentada à mesa, sem coragem de olhar pela janela, só, desamparada, com apenas as mentiras que criou. Poderá não ser a referência mais expectável ou compartilhada, mas ver as personagens nos desfechos amargos dos filmes de Farhadi, com todas as consequências que a revelação dos factos lhes trouxeram, dá-nos frequentemente vontade de citar o coronel de Jack Nicholson em A Few Good Men (Uma Questão de Honra, 1992): “Querem a verdade? Vocês não conseguem lidar com a verdade.”
Darbareye Elly, nunca estreado em Portugal, foi recentemente lançado em DVD pela Alambique.