Uma das frases que mais fica na memória no trajecto de descida da sanidade à loucura – ou da figura frágil e depressiva de Arthur Fleck à força carnavalesca de Joker – é: “pensava que a minha vida era uma tragédia, mas agora percebi que é uma comédia.” Num artigo pouco elogioso sobre o filme de Todd Phillips, Phoebe Chen refere um dado interessante: a despolitização de Joker (um homem que tropeça no seu simbolismo e que o observa já depois do caos instalado, a partir dos seus efeitos) mostra como cada um de nós consegue isolar uma imagem ou objecto, apropriar-se dela e carregá-la com uma energia pessoal, fazendo-a ressuscitar como uma outra coisa. Isto é naturalmente válido também para qualquer filme. E particularmente no caso de Joker (2019) este coloca em oposição, rápida e facilitista, dois tipos de apropriação: aqueles que vêem apenas “mensagem”, e o brandem como filme-bastão de uma crítica política e social contra uma ordem neoliberal (kill the rich, é uma das manchetes de jornal que vemos perto do final); e aqueles que vêem apenas a “ausência de mensagem”, isto é, uma retórica revolucionária vazia e uma esteticização de um anarco-niilismo para efeitos de rápido consumo audiovisual. O interessante em qualquer destas apropriações é que nenhuma delas parece estar complemente certa, nem também inteiramente errada.
Mas o mais genial nesta bomba de Phillips e Phoenix é que ambos constroem a moldura, o contorno do interminável. Isto é, aquele que nunca se deixará definir, entre o espaço da revolução, da loucura, do estertor social. A personagem de Fleck não é apenas o resultado de um character study, entalado entre a podridão moral, casa de um cinema de género urbano dos anos 70 e a leveza acéfala de uma dada cultura fandome. Ele é a proposta, maravilhosamente audaz, de que um super-vilão (ou um super-herói, para o caso vai dar ao mesmo) mais do que poder ter um drama humano na sua génese, se eleva acima da normalidade, se torna super, justamente quando abraça um interminável processo de procura da identidade, por definição estilhaçada. Precisamente quando dá ao cinema a particularidade de revelar cada homem banal na sua indecidibilidade, no seu poço inesgotável de motivações, muitas delas contraditórias, emoções, perdas, lutas sem objectivo. Quando o cinema esburaca a estreiteza de se ser herói, ou super herói, ou anti herói, ou vilão, e transforma o efeito especial em feito banal. Quando mostra a contradição interior do ser humano, inexplicável, somente apropriável a partir das nossas ficções, convicções ideológicas e outras.
Mas Joker representa mais do que um vilão sexy. Ele é o palhaço triste, no qual reverbera a pulsão do caos, um smile envergando um glitch.
Joaquin Phoenix, um actor cujo talento é o semelhante ao de uma besta selvagem e indomável, já havia antes cheirado o problema. A sua carreira está povoada de indigentes, de traumatizados, de uma espécie de santos criminosos, drogados, fragmentados na sua impossibilidade de encontrar um centro. Com o tempo habituámos-nos a compreender que havia uma espécie de vácuo interior para o qual ele levava as personagens dos seus filmes, e que esse vazio se tornava o centro desses mesmos filmes. Um buraco negro que fazia uma obra permanecer como monólito incompreendido, venerado a partir de um fora. Olhem hoje para The Master (The Master – O Mentor, 2012) de Paul Thomas Anderson, e tentem lá perceber se envelheceu ou se está a apurar algures numa barrica aromática fora do tempo. Talvez por isso se compreendam tão bem as palavras do realizador quando disse que o objectivo nunca foi o de trazer o actor para o universo dos super-heróis, mas sim o inverso, era Joker que haveria de entrar no mundo de Phoenix.
Esta entrada não significava somente destilar o habitual filme de acção e aventuras num drama individual de uma pessoa. Podemos aliás dizer que isso já acontecia, e com bons resultados, com um filme como Logan (2017) de James Mangold. O que resolvia, em certa medida, o dilema do universo cinematográfico dos super-heróis que, na maior parte das vezes, privilegia uma falsa complexidade (associada a uma intrincada narrativa sem espessura) e uma dimensão de espectacularidade (em que os efeitos servem a acção), em detrimento de ligações emocionais ou cativantes ideias de mise-en-scène.
Esse drama individual existe contudo e começa a formar-se numa Gotham City decalcada de uma Nova Iorque inóspita – há neóns, vielas escuras, ocasionais ratos gigantes – vinda de obras como Taxi Driver (1976), The French Connection (Os Incorruptíveis Contra a Droga, 1971), Death Wish (O Justiceiro da Noite, 1974) ou Prince of the City (O Príncipe da Cidade, 1981). As inspirações de Scorsese a Lumet são assumidas e pressupõem a tarefa de refazer uma origem pouco clara da personagem da DC, utilizando os policiais e dramas dessa época que reflectiam sobre o isolamento do indivíduo perante uma cidade infestada de crime, de intenções moralmente dúbias e uma corrupção sem rosto. É nesse sentido que Phillips quis ver Joker à luz de um lone wolf como Travis Bickle ou de um comediante com problemas mentais como Rupert Pupkin. Aliás, De Niro que interpretava ambas as personagens volta em Joker para um papel muito semelhante ao de Jerry Lewis em The King of Comedy (O Rei da Comédia, 1982).
Em certo sentido, Arthur Fleck é uma fusão destas duas personagens. Um homem com problemas mentais que procura a todo o custo manter-se à tona de uma sanidade e de uma ligação emocional às pessoas. Um sonho que envolve ser comediante famoso, mas sobretudo não ser rejeitado nem ostracizado por um mundo que o repele ou o ignora. Parte da delicadeza do filme de Todd Phillips vem daí: um homem honesto, educado, paciente que vai levando golpes atrás de golpes até já não conseguir aguentar mais. E é ao ceder que se torna um mártir da loucura, um símbolo de resistência a um mundo social e politicamente opressivo. Mas este é, digamos assim, o superego do filme. No “mundo de Phoenix” o id resiste à mera ideologia de um desmoronamento psíquico e depois social.
Peguemos no exemplo mais evidente: as gargalhadas que Phoenix passou meses a desenvolver para o filme, à medida em que ia reduzindo drasticamente de peso. Estamos perante um catálogo de gargalhadas, graduações abissais do riso, que vão desde a simples alegria à patologia incontrolável. Em vários momentos, Phoenix faz-nos entrar na interioridade de Fleck através desses espasmos histriónicos que possuem uma capa de felicidade formal e de profunda angústia interior. Elas são, naturalmente, sinal mais evidente da frase do início, da passagem operada da tragédia à comédia. Mas são mais do que isso. Em muitos momentos – condenados por muitos de “formalistas” – o corpo de Phoenix, renasce, distende-se, canta, dança como num musical de Astaire. Ou como um gentil Chaplin posto a arder por uma loucura muito mais funda do que as vagas mecânicas da modernidade ou por uma pobreza enfrentada de sorriso nos lábios.
O corpo de Joachin Phoenix vai sendo o intermediário, performativo e resistente, de uma luta contra um destino traçado. Mas também fazendo de Joker não um filme de supers, mas de infra heróis. Ao nível do chão, do momento do esgar e do trauma como encenação do espírito. Joker é um filme que trabalha a construção em tempo real de uma personagem feita pessoa. E, por isso, interminável. Um processo em constante busca e evolução, a fazer passagens entre a vítima e o assassino, entre o anárquico e o demente, o lutador e o derrotado. Heath Ledger, em The Dark Knight (O Cavaleiro das Trevas, 2008) tinha-nos transmitido uma sexyness irreverente para a personagem do Joker. Mas talvez não mais do que isso. A súbita morte do actor adensou o fenómeno, pensou-se em prosseguir o hype e um filão que daria milhões.
Mas Joker representa mais do que um vilão sexy. Ele é o palhaço triste, no qual reverbera a pulsão do caos, um smile envergando um glitch. E Joker engolido pelo buraco negro que é o talento de Phoenix torna-se não apenas a besta selvagem, capaz de fazer rir e chorar, como também aquele que, humilhado e ofendido, não suportou o drama. Aquele que passou a operar na passagem, na ida com volta, da alegria, serena e educada, à violência mortífera. Aquele que, na loucura, trabalha a pulsão da ordem desordenada, que vai além da comédia dramática (do “a rir se dizem as verdades”) e do drama cómico (com o seu “riso forçado”, com o seu “fazer pouco de”, como Murray Franklin que goza em horário nobre da comédia falhada de Fleck).
O que é magnífico em Joker, Leão de Ouro em veneza, é que tudo isto deixa de ser uma alternância. Estamos antes na possibilidade de todo o quotidiano, de todo o drama, ser fonte de riso desesperado, de toda a tragédia habitar a delicadeza do sorriso. E isso é muito mais poderoso – e sobretudo da ordem do cinemático – do que a mera atracção ou repelência pela ordem ou pela revolução.