Os walshianos reúnem-se para dizerem de sua justiça em relação ao mais recente título – diz-se que o penúltimo antes da reforma – de Quentin Tarantino: Once Upon a Time … in Hollywood (Era Uma Vez em… Hollywood, 2019).
Aviso: os textos que se seguem contêm alguns spoilers. Recomendamos que leia as apreciações depois de ver o filme.
Tarantino nunca foi, de todo, um dos “meus” cineastas. A sua tendência para construir momentos de inacção por uma verborreia adolescente (por vezes ao ponto de um profundo aborrecimento), interrompidos por gratuitas erupções de violência gráfica para fins humorísticos, salvo raras excepções, sempre me levaram a encarar cepticamente (quando não cinicamente) a constante aclamação que cada novo filme dele suscitou. É por isso que Once Upon a Time … in Hollywood me entusiasma tanto. Pois no lugar da prolixidade, surge uma atmosfera nostálgica e contemplativa, fascinada com os adereços, o guarda-roupa, os automóveis, os edifícios, enfim, a essência da época que o realizador viveu na sua juventude e que transforma agora em matéria-prima de uma comovente elegia. É admirável como alguns dos melhores momentos do filme são aqueles sem diálogos em que a personagem de Pitt, cheia daquela masculinidade cool e estoica dos anos 60 (a de McQueen, Eastwood ou Bronson), conduz por uma Los Angeles nocturna ou em contra-luz, acompanhado apenas pelo vento no rosto, o ranger dos pneus no asfalto, a confiança que advém com a velocidade, enfim, pela sensação de liberdade física e espiritual da estrada. Não só isso, como Tarantino resolve uma cena inteira entre duas personagens (a de Pitt e a rapariga que procura boleia) exclusivamente com trocas de olhares amistosos, gestos manuais e expressões do rosto. Tarantino encontra na personagem de Pitt algo próximo ao laconismo, e com ela ar fresco no seu cinema.
Ao mesmo tempo, a violência é maioritariamente abnegada para surdir um sentimento genuíno de ternura e paixão pelas personagens até aqui nele desconhecido. Olhe-se para o que o cineasta faz com Sharon Tate, com a câmara totalmente apaixonada pela vida, alegria e jovialidade que ela emana em danças e sorrisos. É uma ninfa entre os homens, uma deusa entre os mortais, uma princesa amada por tudo e todos, e Tarantino acredita (e faz-nos acreditar) que o mundo poderia ter sido, de facto, um lugar melhor se a sua morte prematura não tivesse acontecido, partilhando connosco este encantamento por alguém que lhe marcou a infância. Usei o termo “princesa”, e não foi por acaso. Once Upon a Time … in Hollywood é o conto de fadas de Tarantino (é daí, mais do que a memória de algum cinema, que advém aquele “era uma vez”), o seu filme mais doce, bonito, melancólico e apaixonado, aquele que navega rumo à luz e não ao sangue, na jornada de aprendizagem e realização pessoal dos seus heróis num meio fantástico onde o mal não triunfa. Jornada terminada, como nas histórias de encantar, com um verdadeiro final feliz, ou então não, e aquilo que vemos, como as sequências com De Niro envelhecido em Once Upon a Time in America (Era uma Vez na América, 1984), pode não passar apenas de uma longa alucinação de uma personagem provocada pela droga. Cada um vê-lo-á sob uma destas duas perspectivas. Eu escolho acreditar em contos de fadas.
Duarte Mata
O que, aos meus olhos, mais releva desta experiência longa, por vezes indecisa, mas ulteriormente extasiante e enternecedora, é a sua dimensão de grande fábula sobre o fim de uma era – a do flower power e dos easy riders (ou, parafraseando o filme, dos “Dennis Hoppers”) – que vai embebendo um rigorosíssimo e langoroso retrato de uma cidade, a Los Angeles do final dos anos 60. Comecemos pelo início – em Tarantino é sempre arriscado fazê-lo, mas vamos a isso. O que o filme nos oferece logo nos minutos iniciais? A entrada sumptuosa numa paisagem do passado, pintada pelo choque de gerações – a Velha e a Nova Hollywood – e de maneiras de ver o mundo – o velho establishment e o já decadente (e desnorteado) movimento hippie. O filme oferece-nos os ares do tempo, qual longo panorama que se desenrola à nossa frente, à medida que as personagens se vão perdendo no milieu. Ao contrário de muito cinema de época, Once Upon a Time … in Hollywood transforma as fachadas, as roupas, os carros, toda a memorabilia e referências culturais da época (televisão, cinema e anúncios) em motivo quase fetichista que a câmara nos vai servindo até ao embriagamento. O “histórico” é aqui puxado para primeiro plano – não é, portanto, remetido para uma posição de background ao serviço de uma qualquer história mais ou menos extraordinária que se vai contar. Já sabemos como é com (o melhor) Tarantino: o que é rodapé para a maioria, é texto principal na sua escrita.
Este filme de época fetichista e voluptuoso congrega também, à boa maneira de Tarantino, um extenso role de situações “uneventful”. Não é de facto acidental, ou fruto de um mero capricho cinéfilo, que Tarantino tenha programado Model Shop (Modelos de Aluguer, 1969) de Jacques Demy num ciclo de cinema que passou recentemente na televisão (em Portugal, foi acolhido pelo canal AXN Black). Como esse magnífico e subestimado filme americano de Demy, ou como outros filmes dos sixties e seventies desenrolados na cidade dos sonhos, tais como The Long Goodbye (O Imenso Adeus, 1973) ou Shampoo (1975), Once Upon a Time … in Hollywood é uma obra deambulatória que vai circulando pelas estradas e grandes avenidas da cidade sem saber ao certo aonde nos quer e pode levar. O que seduz é o percurso ou, como diz a petiza que protagoniza o filme-dentro-do-filme, uma espécie de True Grit (A Velha Raposa, 1969) de segunda categoria, o que interessa é o processo. E é ele que fascina (n)este filme: de situação em situação, a câmara vai escrevendo, em imagens e sons – em (por esta ordem de importância) passeios, gestos e palavras – a sua narrativa. Este interesse pelo medium acaba por ser traiçoeiro – o mais inspirado Tarantino é sempre traiçoeiro. A grande traição – a mais bela e enternecedora – marca o desenlace deste filme, não aquele em que o delirante (“Preston Sturges style”) massacre do gangue mandado por Charles Manson confirma a trapaça histórica, mas aquele em que este Sunset Boulevard (O Crepúsculo dos Deuses, 1950) dos sixties conhece uma das mais belas e redentoras cartas de amor ao cinema alguma vez escritas. Falo daquele derradeiro plano em que o filme histórico, ora lânguido, ora furioso, se transforma num conto de fadas que só podia ter sido imaginado por alguém que verdadeiramente ama o cinema. E por alguém que acredita – ainda acredita – no seu poder. Viva o cinema!
Luís Mendonça
Olhado em modo panorâmico, Once Upon a Time … in Hollywood é uma carta de amor à Los Angeles de finais da década de 1960 e ao cinema de série B enquanto repositório de actores que se perderam nos caminhos do estrelato. Neste sentido, a Hollywood de Quentin Tarantino é uma espécie de Off-Hollywood. Mas o coração do filme também se situa em algo de mais particular, a relação entre Rick Dalton (DiCaprio) e o seu duplo de cinema, Cliff Booth (Pitt). O cinema já arranjou a designação de bromance para caracterizar uma relação de dois homens que existe entre o amor e a amizade, e que na prática se traduz por uma cumplicidade que nunca questiona a natureza dos sentimentos de que é feita. Isto é muito bonito e pode até passar despercebido enquanto olhamos embevecidos para o prazer com que o realizador evoca um tempo e uma geografia, recorrendo aos elementos culturais que lhe deram vida. E neste sentido ainda, Once Upon a Time … in Hollywood é uma memória pessoal que através do cinema se torna ampla e viva.
Tarantino organiza o seu filme-carta-mixtape por pistas de imagem e sons que convergem para a noite em que Sharon Tate (grávida), mulher de Roman Polanski, e os amigos que tinha em casa foram brutalmente assassinados por elementos do clã satânico de Charles Manson. Um pouco à semelhança do que acontecia em Inglourious Basterds (2009), o realizador cria uma versão alternativa dos acontecimentos com um apoteótico banho de fogo e sangue a fechar. Pelo meio da celebração do poder ilusório do cinema para corrigir o lado negro da história, somos presenteados com uma parada de pés descalços, com solas em diferentes estados de asseio – como compete a um fetichista que se preze –, que parece ser o único aspecto redentor que Tarantino encontra na contracultura hippie, e na versão exclusivamente feminina desta. Tratando-se de um filme saudavelmente incorrecto num mundo cada vez mais policiado e asséptico, corria o risco de sair de Cannes pela porta discreta. Aconteceu assim, mas ainda vamos a tempo de ver corrigida tamanha injustiça.
Ricardo Gross