Encontrei a definição do Belo – do meu Belo.
É algo ardente e triste, algo um pouco vago,
deixando caminho à conjectura.
Charles Baudelaire, in O Meu Coração a Nu precedido de Fogachos
É com os cinco dedos de uma mão que Jean-Luc Godard se lança – nos lança – no folhear deste Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018). Vamos pensar com a mão. Vamos abrir com uma aleatoriedade reflectida as páginas de um arquivo em ebulição, imagens em contacto com a lava de uma secreta atividade vulcânica. A que é que nos podemos agarrar? A um discurso febril, palavras inteiras ou retalhadas, frases reunidas num cortejo sincopado, umas roubadas outras consubstanciadas na voz quebrantada do próprio Godard. São senhas para entrar na performance onírica do filme-livro, onde filmes (seus e dos outros), pinturas, guerra, sangue, Oriente/Ocidente, o mundo árabe e outras arqueologias materiais e imateriais, nos ferem o olhar com uma beleza ardente e triste.
Aliás, não sei se há imagem melhor para traduzir a ideia desta experiência senão aquela famosíssima do corte do olho em Un chien andalou (Um Cão Andaluz, 1929), de Buñuel, que surge neste Le livre d’image como um comentário pungente. Godard corta-nos o olho com imagens-lâmina, fragmentos de uma oração profana que seduz pela sua energia peculiar. Como diz o cineasta a certa altura, citando Brecht, “só o fragmento tem a marca da autenticidade”. E é de pedaço em pedaço que se tacteia a verdade desta montagem, trespassada por um sentimento de pesadelo em noite de trovoada.
Pensamentos que queimam a ponta dos dedos.
Ainda sobre o “pensar com a mão”, apetece contar, na primeira pessoa, o que aconteceu após o segundo visionamento do filme, como consequência de quem tenta domesticar esse animal selvagem numa folha em branco (entenda-se: incumbi os meus cinco dedos da mão direita de tentarem apanhar alguns dos fragmentos de Le livre d’image, método a que muito raramente recorro). Quando, fora da sala escura, observei o que seria o material de apoio para trabalho, não me restou senão fazer um esgar solitário, na medida em que aquilo que tinha diante dos olhos poderia ser um objeto de arte godardiano.
Escrevi palavras em cima de palavras, outras cruzadas como um jogo do galo, e outras ainda com uma caligrafia ilegível. Digamos que há qualquer coisa de muito formalmente semelhante entre esta folha solta, inaudito fragmento, e o próprio “livro audiovisual”. Uma magnificência nascida da poesia bruta, como aquela que compõe os diários íntimos, Fogachos e O Meu Coração a Nu, de Baudelaire. Pensamentos que queimam a ponta dos dedos.
Bécassine? Johnny Guitar? Le testament d’Orphée? Le plaisir? Malraux? Hölderlin? Los Olvidados? Salò o le 120 giornate di Sodoma?… O que vem antes, o que vem depois? Onde fica o princípio, meio e fim? Já se sabe que, em Godard, não é necessariamente esta a ordem. E escusamos de a procurar. A única hipótese é deixarmo-nos envolver na interna dança rodopiante, e na fervura das imagens e sons que se dizem.