O Porto/Post/Doc tem início já no próximo sábado, dia 24 de Novembro, e decorre até ao dia 2 de Dezembro, domingo. É a quinta edição e uma marca já assinalável para um festival que foi conquistando aos poucos o seu espaço próprio, de forma a afirmar-se como um evento já incontornável no panorama cultural nacional, sem esquecer a relação importante que o festival tem mantido com a cidade do Porto, quer com os filmes sobre a região, quer com a ocupação de vários espaços: este ano o Porto/Post/Doc estende-se ao Teatro Municipal do Porto – Rivoli, Cinema Passos Manuel, Cinema Trindade, Planetário do Porto, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e Escola das Artes – UCP. Mantendo o seu lema “as nossas histórias são reais”, acrescentando o tema “ficções do real” do seminário Fórum do Real, este é um festival que continua a explorar a fronteira entre o documentário e a ficção e os terrenos onde os dois se confundem.
O principal destaque das várias iniciativas que decorrem durante os nove dias do festival é a retrospectiva integral dedicada a António Reis e Margarida Cordeiro, cineastas absolutamente marcantes na definição de uma nova linguagem cinemática em Portugal, precursores do género docuficção e cuja obra influenciou autores como Pedro Costa. O ciclo integrará a projecção de todos os filmes dos cineastas e representa uma oportunidade rara para ver obras como Jaime (1974), Trás-os-Montes (1976) e Ana (1985), apresentados agora em versões restauradas e digitalizadas. Além disso, a curta-metragem Painéis do Porto (1963), o primeiro filme realizado por António Reis (aqui em colaboração com César Guerra Leal) e uma raridade da cinematografia nacional, integra também este ciclo. A retrospectiva será acompanhada da exposição colectiva “Como o sol/ Como a noite” na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Dois outros cineastas serão também alvo de ciclos: Chris Petit, realizador britânico do filme de culto Radio On (1979) sobre o movimento pós-punk vê aqui a sua obra contextualizada, tal como Matías Piñeiro, singular autor argentino que combina adaptações livres de Shakespeare com o quotidiano dos tempos modernos.
A primeira nota de destaque sobre a Competição Internacional é a presença de duas obras portuguesas a concurso, depois de Salomé Lamas ter vencido o Grande Prémio do festival em 2016 com Eldorado XXI (2016): Sobre Tudo Sobre Nada (2018) de Dídio Pestana é um filme-diário em tom pessoal e confessional sobre momentos íntimos da vida do autor, que se estreia aqui no documentário depois de uma longa parceria criativa – na área do som – com Gonçalo Tocha; em Hálito Azul (2018), Rodrigo Areias leva-nos até à comunidade piscatória da Ribeira Quente nos Açores para um retrato enternecedor sobre os habitantes e a sua relação com o mar. Na quinta edição, o festival começa já a apresentar alguns nomes que são apostas próprias e nomes familiares: Vitaly Mansky, depois da menção honrosa para Under The Sun (2016) em 2016, filme sobre o regime norte-coreano, regressa com Putin’s Witnesses (As Testemunhas de Putin, 2018), construído a partir de um arquivo de imagens do trabalho de Mansky na televisão duas décadas antes, quando acompanhou de perto a ascensão do líder Russo; Sergei Loznitsa volta a marcar presença no festival com Donbass (2018), um novo olhar sobre a guerra na Ucrânia; depois de ter sido alvo de uma retrospectiva no ano passado, o cineasta dos filmes-meditação Peter Mettler regressa com Becoming Animal (Ser Animal, 2018), em co-realização com Emma Davie, numa obra que explora a ligação entre o humano e o animal; e depois de ter apresentado Nebel (Nevoeiro, 2014) na primeira edição do festival, Nicole Vögele volta com a sua segunda obra, Closing Time (Encurtar o Tempo, 2018), uma espécie de meditação cinematográfica e sensorial filmada na cidade de Taipé; Obscuro Barroco (2018) de Evangelia Kranioti, segue as pisadas da activista dos direitos humanos e ícone trans-género Luana Muniz, e marca outro regresso de uma cineasta ao festival, depois de ter recebido uma Menção Honrosa na segunda edição do festival por Exotica Erotica, Etc.(2015).
Uma das imagens de marca do festival tem sido a apresentação de novos autores emergentes. Este ano a competição apresenta Hamada (2018), segunda longa-metragem de Eloy Domínguez Serén, um retrato melancólico sobre uma comunidade esquecida que vive no noroeste do deserto Saara; do Japão chega Tsukiyonokamagassen (A Guerra do Caldeirão de Kamagasaki, 2018) de Leo Sato, sobre uma espécie de subúrbio-ghetto da cidade de Osaka, onde os mais desamparados da sociedade tentam sobreviver; Central Airport (Aeroporto Central, 2018) de Karim Aïnouz, premiado no Festival de Berlin, é sobre uma mini-cidade no antigo Aeroporto de Tempelhof transformado agora em parque público e que nos últimos anos tem também servido de abrigo para refugiados; Bisbee’17 (2017) de Robert Greene, apresenta a recriação de um evento histórico numa cidade mineira situada na zona de fronteira do Arizona com o México; em A Family Tour (Férias em Família, 2018) de Ying Liang, o realizador expõe a sua experiência pessoal de exílio perante a perseguição das autoridades chinesas; Tremor – Es ist immer Krieg (Tremor – É a guerra, 2017) de Annik Leroy é uma reflexão próxima do registo experimental, num ensaio sobre as experiências da guerra e da violência; finalmente, Faust (Fausto, 2018) de Andrea Bussmann, premiado no Festival de Locarno, é um filme sobre as histórias e mitologia da região de Oaxaca no México, num registo antropológico.
Além da competição e das retrospectivas, é importante também referir alguns dos filmes que serão exibidos: Terra Franca (2018) é a aguardada primeira longa-metragem de Leonor Teles, que olha novamente para as suas origens, para uma comunidade piscatória junto ao Tejo, perto de onde cresceu; de Salomé Lamas será possível assistir a Extinção (2018), rodado em pleno conflito durante a anexação da península ucraniana da Crimeia pela Rússia; A Volta Ao Mundo Quando Tinhas 30 Anos (2018) de Aya Koretzky, um retrato do pai pelo olhar da filha, completa este trio de filmes estreados na competição nacional do Doclisboa. Do multi-premiado realizador de L’image manquante (A Imagem Que Falta, 2013), chega Graves Without a Name (Sepulturas Sem Nome, 2018), o novo documentário em que Rithy Panh continua a documentar o genocídio cambojano perpetrado pelos Khmer; Laura Mulvey estará presente no festival com um workshop e para apresentar o seu filme Riddles of the Sphinx (Enigmas da Esfinge, 1997), co-realizado com Peter Wollen. A secção Transmission apresenta Sign ‘O’ The Times (1987), concerto filmado de Prince e que fecha o festival.
Finalmente, destaque para 2 filmes que serão exibidos no primeiro e último dia do festival. A sessão de abertura fica a cargo de Kaiser: The Greatest Footballer Never To Play Football (Kaiser: O Grande Jogador que Nunca Jogou Futebol, 2018), de Louis Myles. Esta é a história de um não-jogador, de um futebolista que apenas tinha um problema: a bola. Se olharmos para além da abordagem simplista, de um esquema básico de entrevistas e recriações exageradas e um voice-over de tom duvidoso e paternalista, ficam as histórias incríveis e mirabolantes deste avançado que nunca marcou um golo mas que manteve uma carreira extensa e das personagens à sua volta, que acabam por tornar este filme imperdível. As imagens de arquivo e as descrições vívidas dos intervenientes a olharem para o passado, constroem um retrato nostálgico de um período muito particular. Porém, o filme redime-se perto do fim, ao desmontar as histórias contadas por Kaiser e ao questionar alguns traços da sua personalidade. Os laivos de machismo e hedonismo escondiam afinal uma história mais complexa e uma personagem trágica: enquanto pensava enganar os outros, enganava-se a si próprio. Fica uma frase, em forma de teaser, pelo próprio Kaiser: “os clubes onde joguei tinham dois momentos de felicidade: o dia em que eu chegava, e o dia em que ia embora”.
Muito mais complexo e recompensador, e nisso uma imagem-espelho do seu tema, é MATANGI / MAYA / M.I.A (2018) de Steve Loveridge. O filme acompanha uma tendência recente de documentários que traçam o percurso de músicos, neste caso da cantora mais conhecida por M.I.A., e da qual Loveridge foi colega na faculdade, e tem acesso a um enorme arquivo de imagens da própria – uma das primeiras revelações é que esta queria ser uma realizadora de documentários experimentais, e cedo ganhou o hábito de filmar tudo. M.I.A é uma das mais distintas vozes da sua geração, situa-se sempre na vanguarda na forma como se afirmava igualmente artista e activista, como é dado a ver neste olhar íntimo sobre a sua vida. A proximidade do realizador com o seu sujeito levantou acusações de auto-promoção, mas o filme é na verdade mais uma vindicação pessoal de M.I.A, aqui contextualizada e descodificada: por um lado, a sua sonoridade inovadora é agora apropriada por inúmeros hits comerciais mas sem qualquer ideia política; por outro, o filme é uma reacção ao tratamento pelos media, especialmente norte-americanos, que menorizavam a cantora, insinuando que seu activismo era algo inconsequente e ostentoso, uma afirmação desmontada pelo historial familiar e pessoal que o filme apresenta. O que fica no entanto, são as imagens de uma visita ao Sri Lanka à procura das origens da artista, e os momentos ternurentos partilhados com a sua avó, a aconselhar uma jovem à procura de rumo que tente encontrar a sua voz para ser feliz, e que tornam este filme um dos mais apelativos do festival.
O programa completo do festival pode ser consultado aqui.