O jovem sorriu, mostrando dentes brilhantes. Do bolso da camisa, tirou a fotografia de Hatsue e estendeu-a à namorada. Hatsue tocou ao de leve no retrato e tornou a entregar-lho. O orgulho reluzia no seu olhar. Pensava que fora a foto que protegera Shinji. Mas, neste momento, o rapaz ergueu as sobrancelhas. Sabia que fora a sua força que lhe permitira levar a melhor sobre o perigo naquela noite memorável.
Yukio Mishima, O Tumulto das Ondas
Joan Crawford
A aproximação entre Joan Crawford e a ideia de monstro não soará demasiado descabida a quem estiver familiarizado com o trabalho desta actriz norte-americana, e a relativa facilidade com que se poderá aceitar esta associação terá duas origens de ordem distinta. Em primeiro lugar, o trabalho que Crawford desenvolveu na fase final da sua vida, no seio de um cinema de série B, pseudo-gore, cujo título mais paradigmático é certamente What Ever Happened to Baby Jane (Que Teria Acontecido a Baby Jane?), filme de 1962, de Robert Aldrich, em que a personagem de Crawford se digladia com a irmã, interpretada pela suposta rival de Crawford em vida, Bette Davis; podendo ainda destacar-se, no âmbito deste trabalho na série B, os dois filmes feitos com William Castle, Strait-Jacket (Volúpia do Crime, 1964) e I Saw What You Did (Telefone Fatal, 1965). Em segundo lugar, e através de um ângulo porventura mais importante, a normalização de Joan Crawford enquanto monstro tem especialmente origem na fortuna que o nome da actriz obteve após a sua morte em 1977, e que foi – e ainda é, em certa medida – maculado por Mommie Dearest, o livro de memórias publicado em 1978 pela filha adoptiva Christina Crawford, no qual esta denuncia a actriz enquanto uma pessoa abusiva e perigosamente neurótica.
Na verdade, parece ter-se tornado difícil desvincular a figura de Crawford da imagem de Faye Dunaway no filme de 1981, Mommie Dearest (Querida Mãezinha, de Frank Perry), que adapta o livro homónimo, e em particular da célebre sequência que termina com a protagonista a fustigar a filha criança com um cabide de arame. O princípio de ordem doméstica “no wire hangers!”, gritado por Dunaway em estado de histeria, tornou-se um lugar-comum de um determinado universo camp.
Mas, ignorando este factor mais imediato, é de notar que a sequência a que me refiro trabalha, justamente, a ideia de Joan Crawford enquanto monstro, em termos visuais, através de diferentes elementos: 1. o rosto de Faye Dunaway está reduzido a uma máscara de beleza, que, despersonalizando a figura, atenua a humanidade do rosto e aproxima-o da esfera do monstro e do informe; 2. o overacting da actriz enfatiza esta mesma ideia, através dos gestos e das expressões faciais exagerados, bem como da modulação da voz, que perde a colocação e a prosódia características de Crawford e adquire uma dimensão quase gutural; 3. a mise en scène, e em particular o trabalho sobre a luz, produz um universo de ameaça e sombras que convoca manifestamente o universo do horror. Em suma, nesta sequência de Mommie Dearest – porventura, e tristemente, a sequência mais célebre em que uma Crawford participa –, Christina (a heroína do filme) é alvo da violência de um monstro chamado Joan Crawford.
Refiro, por fim, dois produtos da cultura popular recentes, que, aparentemente pretendendo rectificar o estatuto camp-monstruoso de Crawford tal como ele se cristalizou no imaginário popular (através da aposta no girl power, no primeiro caso, e na humanidade maculada e vulnerável, no segundo), parecem funcionar, pelo contrário, enquanto factores de consolidação desse mesmo estatuto: uma série de seis episódios do podcast You Must Remember This, intitulada Six Degrees of Joan Crawford, e a primeira temporada da série televisiva Feud, centrada nos anos de Baby Jane e, especialmente, na rivalidade entre Crawford e Davis.
Posto isto, este texto incidirá na única instância em que Craword protagonizou de facto um monstro. Contrariamente ao que talvez fosse de esperar, não se trata de um filme pertencente à fase final da sua carreira, mas sim à fase intermédia, os anos 40, durante os quais Crawford se aproximou do estatuto de grande actriz, menos por responsabilidade sua (uma vez que o seu trabalho foi sempre igualmente interessante, tanto nos anos 20 e 30, como dos 50 em diante) e mais devido ao interesse particular das personagens que interpretou nessa década.
Um monstro
A Woman’s Face (1941) oferece, então, uma resposta literal ao problema do monstro. O filme de George Cukor começa com o plano de um anúncio em que se lê que Anna Holm – a protagonista – está a ser julgada por homicídio. Seguidamente estamos em tribunal, e Joan Crawford entra em campo, sempre com o rosto total ou parcialmente oculto. São chamadas uma série de testemunhas e, após o seu juramento, uma delas começa a narrar os factos. É importante que nesta cena se mencione o erro de Pôncio Pilatos, chamando-se a atenção para a responsabilidade que comporta, ou que deve comportar, a deliberação sobre os destinos dos outros. Em suma, o juiz sublinha a ideia de que das narrativas destas testemunhas derivará a determinação do destino daquela mulher. No entanto, o que é importante avançar, desde já, é que aquilo que está em causa, desde o início do filme, não é apenas a verdade dos factos (isto é, se Anna Holm matou ou não), mas, essencialmente, a verdade do seu carácter: ou seja, no caso de Holm, se ela é boa ou má, uma heroína ou uma vilã, uma mulher ou um monstro. Em suma, este é um filme que parece ser sobre uma série de circunstâncias narrativas (ie., os eventos que têm lugar – paixões, homicídios, traições, etc.), mas que é, na verdade, sobre a interioridade das personagens: os seus medos, os seus complexos, as suas feridas (ferida que, neste filme em particular, é ainda visível sob a forma de cicatriz).
Gostaria, portanto, de chamar a atenção para o facto de, por debaixo do plot, estar, na verdade, uma escavação ontológica – o que é, aliás, também característico de algum cinema de Cukor, em especial de A Double Life, que surgiria em 1947, e que A Woman’s Face prenuncia na sua dimensão de estudo de uma personagem que se encontra perante a ameaça da desintegração. Por conseguinte, é relevante compreender que, se o filme começa por formular, desde a sua primeira imagem, a questão “Anna é ou não culpada de matar alguém?”, a pergunta que realmente passará a importar, para aqueles sensíveis a essa dimensão mais subterrânea da obra, é: “quem é realmente a mulher oculta por debaixo desta woman’s face?”
Na formulação e no desenvolvimento desta questão, o trabalho operado sobre a imagem de Crawford é fulcral. É por isto que importa chamar a atenção para o modo como a sua personagem aparece de viés, ou mesmo de costas, ao longo de toda a primeira sequência, sendo forçoso notar que este trabalho de figuração concretiza simbolicamente a dúvida identitária no centro do filme.
A narrativa arranca com a narração da primeira testemunha, que espoleta uma analepse. A partir de então, a malha do filme constrói-se através de pedaços narrados por cada uma das testemunhas, e também pela acusada. No primeiro flashback, o mais recuado no tempo, ficamos a conhecer Anna Holm, proprietária de um restaurante, que, sabemos logo depois, usa este negócio apenas como uma fachada para encobrir formas de lucro mais obscuras, entre as quais o crime de extorsão. Sabemos também, desde o início, que ela será julgada por um homicídio cuja vítima é, por enquanto, desconhecida.
O modo como o filme trabalha a imagem da personagem nesta primeira sequência em flashback é particularmente significativo. No escritório mal iluminado, anexo ao restaurante de Holm, vemos, antes do corpo da mulher, a sua sombra projectada na parede. Só depois ela aparece, entre sombras, com apenas parte do rosto visível. Torsten Barring, interpretado por Conrad Veidt, trava conhecimento com ela naquele mesmo momento – à semelhança do espectador –, e repara que ela esconde parte da cara. Aproxima-se gradualmente dela, e um grande plano sobre o rosto até então obscurecido permite-nos perceber a razão pela qual ela se esconde: o seu rosto está parcialmente desfigurado.
A sequência é fulcral por duas razões. Num nível mais elementar do entendimento da narrativa, ela é matricial na medida em que remonta ao momento em que Anna e Torsten se encontram pela primeira vez, o que acaba por ser relevante – no âmbito de um filme com uma estrutura em flashback que pretende iluminar o ponto presente da narrativa (o julgamento) – porque o crime pelo qual ela é julgada é o homicídio desse mesmo Torsten (algo que, no entanto, o espectador só fica a saber no final). Em segundo lugar, é importante perceber que Joan Crawford constrói a sua personagem como uma mulher fria e dura, não só através das coisas que diz, mas também, e essencialmente, dos gestos mecânicos ou do ritmo entrecortado da voz. Em terceiro lugar, é absolutamente fulcral reparar ainda na pequena brecha de vulnerabilidade que Crawford expõe no momento em que a personagem de Veidt não demonstra repulsa perante o seu rosto deformado.
Num plano mais imediato, temos uma mulher dura, que, saberemos pouco depois, maltrata os que a rodeiam e pratica o pequeno crime (chantagem e extorsão). No entanto – e este é o território em que Crawford, enquanto actriz, se revelou especialista (basta lembrar, por exemplo, o bem conhecido trabalho de construção de Vienna em Johnny Guitar [Nicholas Ray, 1954]) –, há outra mulher por debaixo desta primeira que, vulnerável e receptiva, emerge ao mínimo sinal de empatia. A natureza da personagem de Crawford discute-se no jogo entre estes dois polos – que têm que ver não só com um binarismo interior (o bem e o mal) como também com uma duplicidade externa (a mulher e o monstro), numa espécie de actualização de The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson.
À semelhança do que tem lugar na obra de Stevenson, havendo duas Anna Holm, a exterior parece constituir uma espécie de imagem deformada na qual – em efeito de espelho – a interior é obrigada a ver-se. E, no entanto, tal como em Stevenson (embora em termos distintos), elas coexistem no mesmo corpo: isto aponta para uma esquizofrenia identitária (que cobre tanto a alma como o corpo) que o filme terá de resolver: uma das duas Annas será extinta quando a Anna verdadeira vencer a outra.
No entanto, para afinar o entendimento desta dicotomia de aparência porventura demasiado simplista, é necessário tomar em consideração que, antes de as duas Anna Holm se revelarem nesta primeira sequência, aparece a sua sombra, sugerindo-se que, no fundo da equação ontológica que o filme nos apresenta (ser uma ou ser outra, ou, ainda, ser duas), há a ameaça de se vir poder a ser nenhuma/nada. No seu seguimento, o filme desenvolverá um convencionalismo moralizante que não lhe permitirá trabalhar esta terceira via; no entanto, Cukor deixará aqui a porta bem aberta para este mesmo trabalho em A Double Life.
Uma mulher
Na verdade, as dicotomias sobre as quais A Woman’s Face trabalha são efectivamente simplistas, o que não deve ser entendido necessariamente como uma simples redução a esquemas binários do domínio do melodrama menos sofisticado, mas sim como o reenvio para um quadro de conceitos essenciais que tem muito que ver com o mito e, especificamente, com os contos de fadas.
Na primeira parte do filme, assistimos à vida de crime de Anna Holm, ao mesmo tempo que a vemos sofrer uma aparente transformação anímica perante uma situação de vida absolutamente nova para si: ser o alvo da atenção de um homem, Torsten. Se antes procurara esconder-se, anulando-se enquanto figura corpórea e visível no mundo (visível no sentido de ser passível de ser vista), agora ela compra blusas de rendas, e substitui o chapéu que usava continuamente há anos, e o qual, nas suas palavras, já nem as traças suportavam. Ficamos a saber também que, no fundo (e esta é uma expressão que uso deliberadamente, uma vez que falo de um filme que é, justamente, sobre relações entre forma e fundo), ela é uma romântica que leu todas as cartas de amor de autores célebres, é uma profunda conhecedora de música erudita, toca piano e violino, e, para além de tudo isto, ainda pinta e escreve poesia.
Em suma, aquilo a que se assiste é a apresentação de uma série de características próprias de uma senhora educada (uma lady), plena de qualidades, que não parece condizer com a mulher que contextualmente (no contexto da sua vida – a vida de uma mulher que foi transformada num monstro em criança) ela é, ou seja, uma mulher de baixa estirpe, que ganha a vida a gerir um grupo de criminosos com os quais chantageia mulheres adúlteras a troco de dinheiro que, depois, ela nem pode gastar sequer, porque não tem propriamente uma vida a que possa chamar sua. Isto é, uma mulher que age por pura vileza, que personifica – ou pretende personificar, porque passa a acreditar que é um monstro, e que, como monstro, tem de cumprir o destino monstruoso que lhe está votado –, como uma espécie de Nosferatu, o mal. Portanto, uma mulher que não é, na verdade, uma mulher, mas sim uma criatura abominável, de contornos míticos, quase arquetípicos.
Muito rapidamente, o filme começa a trabalhar a duplicidade desta personagem, expondo uma certa inconsistência ontológica. Não precisamos de estar demasiado atentos para perceber as pistas que nos levam a crer que, na verdade, Anna Holm só se tornou uma criminosa misantropa porque a sua deformidade, adquirida em criança num incêndio, a votou à recusa e ao escárnio do mundo – portanto, à solidão, a um lugar fora do mundo e longe da humanidade. Assim, Anna transforma-se num monstro não tanto porque a sua deformidade implica sê-lo automaticamente (é importante perceber este aspecto, para não cairmos na tentação de considerar que o filme desenvolve equivalências simples entre fealdade e vileza, e entre beleza e virtude), mas porque a sua monstruosidade física nunca chegou a ser aceite pela sociedade. A propósito disto, a certa altura durante o interrogatório, ela conta ao juiz que, aos dezasseis anos, decidiu o seguinte: “o mundo estava contra mim? Muito bem, então eu estava contra ele”.
Quando antes mencionei o género dos contos de fadas, aliás, pensava justamente num parentesco entre o monstro de Crawford e o monstro arquetípico do conto A Bela e o Monstro, que seria levado ao cinema alguns anos depois por Cocteau, e em que, em termos simples mas operativos, a criatura se divorcia do mundo porque o mundo se recusa a incluí-la na sua ordem. De alguma forma, estas são narrativas que nos dizem que os seres não se tornam necessariamente monstros no momento em que a sua aparência passa a coincidir com a do monstro, mas sim quando os humanos os expulsam do seu jardim, votando-os a uma existência à margem da humanidade. Neste momento, estes seres têm duas opções: tornarem-se santos ou monstros, sendo a segunda alternativa, evidentemente, a menos dolorosa, e, portanto, aquela que eles primeiramente acolhem.
Na progressão de A Woman’s Face, depois de uma série de cirurgias plásticas, o monstro transforma-se numa bela mulher – Joan Crawford, a actriz que, segundo Mirna Loy na sua autobigrafia Being and Becoming, “had such a beautiful body that they were all after her” – e, a partir de então, passa a discutir-se a sua verdadeira essência, para além da imagem, isto é, da aparência. Ou seja, tendo em conta que rapidamente se percebe que Anna foi transformada um monstro pelo mundo que a recusou, torna-se importante saber quem é ela realmente, e em particular depois das cirurgias, pois se o rosto monstruoso era uma máscara que escondia (e na qual se escondia) a Anna Holm subterrânea, uma vez que a aparência já não seja a do monstro deixa de haver razões, à partida, para essa identidade subterrânea não emergir.
No entanto, este processo não é imediatamente dado no filme, trabalhando-se a dúvida em relação ao verdadeiro carácter da protagonista. Depois das doze cirurgias, e antes de lhe serem retiradas as ligaduras do rosto – ou seja, num momento em que ainda não se sabe sequer se a operação será bem-sucedida ou se, pelo contrário, deixará o rosto num estado mais arruinado do que anteriormente –, Anna Holm começa a agradecer ao cirurgião tudo o que este fizera por ela. Aqui, ele interrompe-a, avisando-a de que a gratidão não se coaduna com uma mulher de sangue frio como ela é, ou, pelo menos, como ela se apresenta perante os outros. Nessa ocasião, ele afirma significativamente: “Now I unveil my Galatea or my Frankenstein”, explicitando o receio de que, caso a operação se revele um sucesso, ele possa ter criado um monstro: “a beautiful face with no heart”.
A segunda parte do filme pretende dar resposta à dúvida do cirurgião, investigando-se a que ordem de criaturas míticas pertence, afinal, Anna Holm. Para tal, Cukor continua a trabalhar uma série diversa de pares dicotómicos, dos quais o mais emblemático é aquele composto pelos dois homens na vida de Holm. Por um lado, há Torsten Barring, um vilão, que seduz Anna (que se submete às cirurgias por amor a ele, porque quer ser bela para poder ser amada de volta pelo único homem que não sente repulsa ao encarar o seu rosto) e se aproveita do afecto que a protagonista lhe tem para a usar em seu benefício, instrumentalizando-a num plano que visa eliminar o neto de um tio rico, na ausência do qual o próprio Barring herdará a fortuna do ancião. Por outro lado, o cirurgião, Gustaf Segert, desenvolve por ela uma paixão aparentemente desinteressada – o que, na verdade, pode não ser bem assim, uma vez que esta paixão surge apenas a partir do momento em que ele a transforma numa mulher extremamente bela, ou seja, a partir do momento em que, desempenhando o papel de uma espécie de deus, ou de artista, ele cria algo de radicalmente sublime e disruptivo da ordem natural.
Paralelamente, Anna vai sendo trabalhada pelo filme, de forma alternada, como Galateia e como Frankenstein – o que, é claro, se liga com a indecisão quanto ao seu verdadeiro carácter: agora bela, Anna continuará a ser o monstro anímico que era antes (tornando-se, porventura, um monstro maior, pois já não terá os motivos da dor e da rejeição do mundo), ou corrigirá esse acidente de percurso? Quando o cirurgião a reencontra algum tempo depois da cirurgia, no início do que se tornará uma paixão recíproca, diz-lhe: “My cold-blooded, ruthless, little Galatea”, apenas para, poucos segundos depois, afirmar, contraditoriamente: “My Frankenstein”, derivando a esquizofrenia na nomeação, evidentemente, da esquizofrenia identitária que o filme está a trabalhar nesse momento em que a questão em cima da mesa é: “vai Anna assassinar a criança, de modo a que Barring possa herdar o património do tio?”
No desenvolvimento do filme, porém, torna-se evidente que ela caminha no sentido de se assumir mais como Galateia do que como Frankenstein. No final, prova-se a bondade e a inocência inquestionáveis desta mulher, ficando-se a saber que ela matou o vilão para evitar que este assassinasse o sobrinho. Ou seja, que o crime pelo qual está a ser julgada foi, afinal, um acto de justiça, da eliminação do mal (o velho e vicioso Barring) para que o bem (a criança inocente) possa subsistir. O filme termina com o conveniente happy ending: a promessa de ilibação do homicídio e o prenúncio do casamento entre Galateia e o seu Pigmalião.
Contudo, importa aperfeiçoar um pouco a leitura pigmaliónica que o próprio filme desenvolve e acaba, aparentemente, por concretizar no final. Se, de acordo com Ovídio, Pigmalião esculpe Galateia a partir de um bloco de pedra informe – ou seja, a partir do nada (não um nada material, é evidente, mas um nada identitário, digamos, algo que não é, à partida, do domínio do humano) –, o cirurgião Gustaf Segert não cria a sua Galateia a partir de matéria puramente informe, desprovida de humanidade. Ele não é, na verdade, o seu criador, porque a Anna plena (a heroína) que temos no final do filme já existia no início, tal como argumentei a propósito da cena em que o seu rosto é analisado pela personagem de Veidt numa das sequências iniciais. Essa era a verdadeira Anna que estava oculta sob a máscara – o rosto desfigurado – que, por via da insegurança, da vergonha, do medo, contaminara temporariamente o interior.
A metamorfose, de monstro destrutivo em anjo salvador, é, na verdade, uma anamorfose. Operando sobre o rosto desta mulher, Segert devolveu-lhe a forma original, oferecendo a Anna Holm a oportunidade de poder coincidir exteriormente com o seu interior, a sua forma com o seu fundo. E assim sendo, Anna nunca é a Galateia com a qual Segert acredita casar, nem tão pouco o Frankenstein que Barring deseja fazer dela. A certa altura, na cena em que este último conta à sua parceira no crime a intenção de, herdando o património inimaginável do tio, acabar por criar um império (ecos do nazismo), ele diz-lhe, procurando convencê-la de que ela tem, por uma espécie de desígnio ontológico, de o auxiliar nesta missão: “tu és mais do que uma mulher”. Nessa ocasião, ela diz, apenas: “eu sou uma mulher”. E sempre fora, desde o início do filme: apenas precisara de um “rosto de mulher” para poder sê-lo em absoluto, retornar a uma forma e a um fundo que sempre contivera em si em potência. Este regresso – anamórfico, como propus atrás, ou annamórfico, como particularizarei em seguida – estava já contido no seu próprio nome, que tanto remete para a etimologia de anamorfose (ana que, em grego antigo, pode significar regresso [à morphē, forma]) como é, em si, um palíndromo, que concretiza simbolicamente (ao nível da linguagem – e, em particular, e significativamente, na palavra pertencente à categoria mais intimamente ligada à identidade – o nome próprio) o espelho em que Anna está condenada a ver-se e a fazer-se. Porque, não obstante os dois homens da sua vida contribuírem efectivamente para criar as condições necessárias à anamorfose, Anna revela-se, no final, aquela que desempenha o papel fulcral no seu processo de recriação, especialmente no momento em que decide salvar a criança, elevando-se moralmente acima dos restantes (à semelhança de Helen Banning, no final de Interlude [Os Amantes de Salzburgo], de Douglas Sirk, 1957), isto é, tornando-se aquela que sempre fora em potência: acima de tudo, mulher no plano físico, mas, também, anjo no plano mítico, e heroína na lógica do filme.
A Woman’s Face, no fim de contas, é acerca de uma mulher levada a aprender a humanidade no encontro consigo mesma. Esta ideia é economicamente veiculada em duas breves, silenciosas e paradigmáticas cenas do filme, que se espelham entre si, reflectindo também a carga simbólica do especular palíndromo Anna. Numa primeira ocasião, ao visitar Barring pela primeira vez, a protagonista percorre um corredor decorado com uma série de espelhos. Ao passar por eles, interpõe o chapéu entre o reflexo e a sua cara, impedindo não só que o rosto seja reflectido no espelho mas também, simultaneamente, que ela possa sequer ter acesso à própria imagem, indiciando a sua inabilidade de se encontrar consigo e o seu consequente inacabamento identitário. Após a cirurgia, Anna regressa ao mesmo corredor, e detém-se então perante um espelho, olhando-se. Num inteligente golpe de mise en scène, Cukor coloca outro espelho atrás dela, que é reflectido na superfície espelhada onde ela se vê, originando uma multiplicação à partida infinita da imagem de Joan Crawford. No contraponto com a sequência anterior, em que a figura se esconde, somos forçados a deter-nos no modo como, desta vez, ela se vê, orgulhosamente, ao espelho, incluída num pretenso efeito droste que sublinha a potência do seu ser, o qual está então, finalmente, a ingressar no processo de becoming que está, afinal, no centro de A Woman’s Face.