Numa altura em que vai sendo cada vez mais frequente ver, criar e ligar imagens em movimento praticamente desde o berço— seja para as redes sociais, as selfies, o citizen journalism, os pequenos vídeos YouTube, os manuais escolares em formato digital e animado, etc. — torna-se imperativo repensar as metodologias de uma certa educação, iniciação, formação a esses utensílios. Naturalmente que, neste contexto do trabalho com a imagem em movimento, o cinema é a “mãe de todas as artes” e, como tal, aquela sobre a qual mais se trabalhou e reflectiu até hoje. É por isso que ocupa hoje uma posição vital, de ponto de partida para pensar as virtualidades de uma pedagogia do olhar e da criação a partir das imagens em movimento. A reflectir este estado de coisas está também o interesse crescente da União Europeia por projectos que potenciem a colaboração entre países, num apoio à educação cinematográfica das crianças e jovens. Teresa Garcia, directora da associação portuguesa, Os Filhos de Lumière, é umas das pessoas em Portugal que mais têm trabalhado em torna da educação para o cinema, dirigida aos mais novos. É neste contexto que fui conversar com ela, saber mais do historial da sua actividade e dos desafios que permanecem para esse cruzamento de infâncias: a nossa e aquela que se vai renovamento e perpetuando, a do cinema.
Quando é que surgiu a associação Os Filhos de Lumière?
Eu e o Pierre-Marie Goulet, por altura do Porto 2001 — Capital Europeia da Cultura, foi-nos proposto fazer uma programação de filmes e o Jorge Campos pediu-nos também para organizar oficinas de cinema, no fundo para as universidades. Fazíamos parte do Departamento de Cinema dessa iniciativa, tendo também programado o ciclo “O Olhar de Ulisses” com a Cinemateca Portuguesa. Esse ciclo teve quatro edições, duas por ano (2000 e 2001). E é em 2000, perante estas actividades, que nos juntámos com outras pessoas do Porto e decidimos formar a associação Os Filhos de Lumière. O objectivo era ter uma associação que trabalhasse o cinema com os jovens pela prática, não havia muitas na altura. E começámos de imediato a organizar oficinas de cinema. Convidámos vários profissionais de cinema, realizadores, directores de fotografia, etc., que vinham de Lisboa para o Porto, para acompanhar os miúdos a uma actividade prática, para fazer filmes.
Quais as faixas etárias com que trabalhavam?
Todas as idades. Várias crianças de bairros carenciados, comunidades ciganas, muitos grupos diferentes.
Como é que se processavam essas oficinas?
Eram as oficinas O Primeiro Olhar. Começámos por fazer planos de um minuto (dois no máximo) feitos por cada criança individualmente e no fim eles faziam um filme-ensaio, colectivo, de 10/12 minutos. E isto num total de cinquenta horas, em duas semanas! Era puxado. (risos) Há imensos filmes desses incríveis. O nosso site tem muitos disponíveis. Este era o nosso método. Eu e o Pierre-Marie, durante dois anos, como estávamos muito ocupados com a programação na Porto 2001, não participámos das oficinas, apenas as organizávamos. Mas a última oficina, lembro-me que fomos nós que a fizemos. Queríamos deixá-la para o Pedro Costa e ele queria muito fazê-la. Mas foi na altura em que ele realizou No Quarto da Vanda (2000) e o filme era muito solicitado. Adiámos um tempo para ver se a agenda dele permitia, mas, entretanto, chegou a Dezembro e ele teve uma grande homenagem, salvo erro na Coreia do Sul. Resultado, eu e o Pierre-Marie dissemos para nós próprios: “vamos fazer nós!”. Trabalhámos com um grupo de miúdos ciganos. E foi uma experiência incrível! Viam filmes e experimentavam. Do ver ao fazer. Esse lado do contacto directo é muito importante.
Isso faz-me lembrar uma ideia do Henri Langlois sobre o cinema dos irmãos Lumière. No Louis Lumière (1968) do Éric Rohmer ele diz que não era nada verdade que os Lumière, ao contrário do Méliès (que nunca havia mexido a câmara), experimentassem travellings ou panorâmicas. Era, no fundo, como a questão do primeiro olhar das crianças: eles serviam-se da câmara para seguir ou captar um assunto da melhor maneira, de forma instintiva. Só mais tarde se soube que nomes tinham as coisas que faziam. Mas no início era esse instinto, esse primeiro olhar. Penso que se pode dizer assim.
Sim, completamente. É isso. Quando se está a criar pela primeira vez não há nomes para as coisas. Há um impulso, uma observação, uma escolha. E é interessante. Nós com os miúdos nunca começamos por falar em termos técnicos, isso porque esperamos sempre por esse impulso inicial. Só mais tarde é que introduzimos a teoria, ao contrário de uma forma mais académica de transmitir o cinema. Primeiro é preciso perceber o cinema, só depois vem a nomenclatura do cinema. Por acaso nós mostrámos esse filme do Rohmer na Porto 2001, com apresentação do João Bénard da Costa. Isto porque uma parte decisiva da nossa metodologia é ligar os filmes que mostramos a esta concepção de educação para o cinema. E claro, trazer pessoas a ver os filmes, criando uma relação pedagógica imediata com eles. Sobre os filmes dos Lumière, lembro-me que à data houve discussões muito interessantes sobre a sua importância. Sobre o facto de neles se poder ver já tudo ou quase tudo: a questão da luz, do enquadramento, da posição da câmara.
A questão da mise-en-scène.
Sim. Por exemplo, nas várias tentativas de La sortie de l’usine Lumière à Lyon (1895) já havia essa noção, percebe-se que foram dadas várias indicações.
E então essas primeiras oficinas deixaram marcas muito importantes para o vosso futuro trabalho.
Sim, completamente. Começámos à procura de material pedagógico e referências e encontrámos o livro L’Hypothèse Cinéma (2002) do Alain Bergala que se tornou uma base importantíssima para o nosso trabalho. E mais tarde fomos ter com ele, e mostrámos-lhe alguns filmes que os miúdos faziam. E foi a partir daí que eles nos convidaram a participar no projecto deles, o Le Cinéma, cent ans de jeunesse. A eles também lhes aconteceu como a nós, ficaram fascinados por aquilo que era suposto acontecer apenas por ocasião do centenário do cinema e decidiram continuar. Nós em 2005 começámos a assistir e no ano seguinte integrámos o projecto. Ainda hoje continuamos a aprender e vejo a dificuldade das pessoas que entram agora. A relação pedagógica é muito difícil de apreender só assim, abstractamente, é algo que se experimenta. Não é nada evidente. Estamos sempre a perceber essa dinâmica, que resiste a um programa muito fechado, temos de nos adaptar a cada grupo, às diferentes pessoas e meios…
Podes descrever um pouco mais esse início de relação entre Os Filhos de Lumière e o projecto Le Cinéma, cent ans de jeunesse?
O início de relação, não oficial, os primeiros contactos, surgem com a projecção do filme Les Jeunes Lumières (1995), de Nathalie Bourgeois e Valérie Loiseleux, salvo erro em 2006, na Cinemateca Portuguesa. Este foi o primeiro filme feito no contexto do projecto Le Cinéma, cent ans de jeunesse em França, um filme que seleccionava vários “planos Lumière” (um minuto, em Super 8, sonoro), realizados por crianças e jovens com o apoio de cineastas e professores, que decorreram em 94/95 em diferentes regiões francesas, por ocasião do centenário do cinema e dos primeiros filmes dos irmãos Lumière. A ideia era pôr as crianças em contacto com o cinema destes, a ver os seus filmes, a discutir, a inspirar-se e depois ir para a rua filmar, e “reiniciar” o cinema cem anos depois do seu surgimento. O filme final era uma selecção de 60 planos de centenas que foram filmados em França. O filme estreou-se em Cannes e depois foi mostrado em todo o lado, vários festivais de cinema e Cinematecas pelo mundo.
Viste o filme nessa altura?
Vi aqui na Cinemateca em 2006 e fiquei muito impressionada. Uma obra de uma grande simplicidade, mas que, ao mesmo tempo, continha tudo daquilo que é o cinema. Lembro-me de ter tido uma conversa com o João César Monteiro na altura, que já tinha visto o filme em Dunquerque e que me disse: “Teresa, o segredo da continuação do cinema são as crianças. Se isso não se fizer, o cinema vai morrer.” Na minha cabeça aquilo ficou como uma possibilidade a desenvolver, mas claro, não havia condições por cá.
Por vezes, a reacção é muito instintiva.
Sim. E depois cada criança tem o seu olhar e vê algo diferente. Isso é uma coisa que me toca imenso. Uma maneira muito sensível, de quem ainda não conhece, que se propõe imaginar…
Antes de integrarem o Le Cinéma, cent ans de jeunesse, como é que funcionavam como associação?
No primeiro ano, no Porto, houve um apoio do departamento em que estávamos a trabalhar na Porto 2001 (departamento do Cinema e do Audiovisual) e outra parte de outro departamento dedicado ao Envolvimento da População para as oficinas que integraram nesse ano o programa da Porto 2001. E logo no primeiro ano em que começaram a ser preparadas as primeiras oficinas, tivemos imensa sorte pois o ICA abriu uma coisa chamada Programa Ver, que eu creio foi aberta para o cinema de animação. Nessa altura, a pessoa que coordenava esse programa no ICA, Lurdes Camacho, uma pessoa que tinha imensas ideias na área do cinema e educação, disse-nos que o programa parecia ter sido feito para nós. E começamos a ter um apoio. Esse primeiro ano correu muito bem, o apoio era pequeno mas ela queria aumentar, desenvolver essa actividade nascente, mas depois foi embora com a mudança de governo. Acho até que o ICA mantém o mesmo valor para esta actividade desde essa altura, nunca ninguém se interessou muito por ir mais longe. E continuamos a receber o apoio do ICA mas para fazer o que fazemos precisamos de um forte apoio complementar, e vivemos um pouco sempre assim, ao sabor de algumas entidades mais sensíveis para esta questão do cinema na educação (a Fundação Gulbenkian, Câmaras Municipais etc)
E a seguir a 2001?
Quando acabou o Porto 2001 ainda lá ficámos por um tempo. Mas depois fecharam vários Departamentos ligados à Cultura e à Educação, com a vinda do Rui Rio para a Câmara Municipal do Porto. Em 2002, a associação ainda fez coisas com o Porto, mas depois tivemos que a trazer para Lisboa. Senão teria acabado. Foi um tempo mau para a cultura no Porto após o crescimento enorme que a Porto 2001 proporcionou. Começámos depois por contactar as câmaras de várias zonas do país e nessa altura existiam vários programas de apoio local. E assim, conseguíamos ir a várias cidades ou vilas, realizar as oficinas em colaboração sobretudo com as câmaras municipais. Estilo dez dias de seguida e fazíamos o nosso trabalho com os miúdos.
Mas no vosso site vocês têm muitos projectos com vários nomes. Por exemplo, existe o Olhar À Volta…
O Olhar À Volta é um programa que fizémos com a Fundação Gulbenkian, com o apoio EMA – Estímulo à Melhoria das Aprendizagens. Teve lugar no Alentejo, em Serpa, e era feito com a Escola Secundária de Serpa em colaboração com as diferentes disciplinas escolares.
E há no vosso site também um outro projecto, tem um nome bastante longo: Descobrindo e construindo o património local e europeu através da criação audiovisual. Um modelo de cooperação entre a escola e o município pela cultura, o conhecimento e a coesão social.
Sim, esse é um projecto europeu que realizámos juntamente com a associação espanhola A Bao A Qu entre 2012 e 2014. Trabalhamos aqui com um agrupamento de escolas da Moita e lá a A Bao A Qu com uma escola em Bordils na Catalunha. Ambos com os respectivos apoios das Câmaras Municipais. Era um programa que tinha o apoio Europeu Comenius Régio e desenvolvia um fortíssimo trabalho de cooperação entre as seis entidades (associação, escola e câmara de uma região em cada país). Tínhamos um blogue comum, de viagens a ambos os lados, de realização e partilha de fotografias e de filmes e com uma exposição em cada região no termo dos dois anos de trabalho. Até chegámos a publicar um livro sobre esse projecto: A Nossa Terra é um Mundo.
Como é que trabalham a vossa metodologia ao longo destes projectos que se vão sucedendo?
Nós, no fundo, adaptamos a oficina O Primeiro Olhar às necessidades específicas de cada projecto, de cada grupo. Por exemplo, havia outro projecto em que a Gulbenkian nos convidou para trabalhar com os Centros Educativos de Lisboa. E aquilo tem um nome específico, Tecer a Cidade. E adaptamos a nossa oficina a esse projecto. E assim o nome ficou O Primeiro Olhar – Tecer a Cidade.
Têm também o projecto O Mundo à Nossa Volta.
O Mundo à Nossa Volta nasceu quando começámos com o projecto da Gulbenkian chamado Partis – Práticas Artísticas para a Inclusão Social. E aí criámos um programa que ligava o Le Cinéma, cent ans de jeunesse ao Primeiro Olhar. Um era no meio escolar e o outro era fora dele. Já trabalhávamos com meios muito carenciados. E foi com esta dupla vertente que nasceu esse O Mundo à Nossa Volta, apoiado pelo Partis. Desse projecto também faziam parte diversos encontros, conversas e projecções de filmes, estas últimas organizadas pelas crianças.
E as vossas oficinas pode dizer-se têm uma mesma estrutura?
A estrutura base que é criar uma ligação entre ver e analisar filmes (ou excertos de filmes) e ir depois para a rua, olhar à volta, imaginar pequenas histórias, e realizar com o apoio de cineastas (e professores quando estamos no meio escolar) é comum a todas as oficinas. Depois trabalhamos algumas questões de cinema ou temas consoante o projecto e a quem é dirigido.
Há uma outra oficina chamada Filmar. É com adultos, não é?
Sim. A estrutura é semelhante. Ultimamente fazemos ateliers com professores também, nesse contexto, mas não necessariamente só com eles.
E a relação com os professores surge apenas com a vossa participação no projecto CinEd -European Cinema Education For Youth, ou é anterior?
O Filmar existe desde o primeiro ano. Nós na altura do Porto 2001 tivemos a possibilidade de fazer muitas formações diferentes. Mas na altura era com alunos universitários. Pois esses alunos queriam muito filmar, mais do que qualquer outra coisa. Mas não tinham essa experiência nem o contacto com os profissionais de cinema. Portanto, os mesmos formadores, os mesmos cineastas, orientavam O Primeiro Olhar e o Filmar. Nas universidades às vezes tínhamos centenas de inscrições. Mais tarde começámos a fazer com jovens adultos e com alguns professores. Mas uma formação mais orientada para os professores nasce de facto com o CinEd e tem vindo a desenvolver um programa mais particular para dar a conhecer uma metodologia e as imensas ferramentas pedagógicas para que os professores possam ter uma base de apoio e consigam ser autónomos no trabalho com os seus alunos.
Como organizam essa vossa oficina tipo?
No caso das crianças? Começa tudo por mostrar e discutir filmes que achamos interessantes. De uma forma um pouco livre. Isto antes de começar a pensar em filmar. Por vezes, lançamos nós um tema ou pedimos-lhe que lancem ideias. Depois, na rua, é observar, olhar à volta, procurar… E isso é muito desafiante. Uma vez, em Leiria, pedimos às crianças que procurassem lugares que gostassem. A ideia era cada um fazer o seu filme. E eles diziam: “não há nada de giro… isto não interessa nada…” (risos). E nós respondíamos: “então vamos dar uma volta, vamos passear, e vocês olham e vêem se encontram algo que tenham vontade de filmar”. E, claro, depois começaram a ver logo imensos sítios fascinantes, era fim de tarde e a luz trazia um lado mágico às casas, ruas, jardins, ao lago recentemente arranjado e eles estavam muito entusiasmados pois nunca tinham de facto olhado para aquilo que os rodeava, com um olhar sensível.
Como fazem com o material técnico?
Somos nós, associação, que levamos o material técnico, sempre. Nunca encontramos escolas ou instituições que disponibilizassem material técnico de filmagem. Nós arriscamos, e deixamos que as crianças se apoderem do equipamento, aprendam a utilizá-lo (de forma básica) e sejam responsáveis por ele. Todos, desde os mais pequenos de seis anos. Para eles é fundamental essa relação física com o equipamento técnico, cria neles uma relação mais orgânica com o filme que estão a fazer. Claro que nem sempre é fácil, mas é essencial e faz parte desta pedagogia. Mas fazemos sempre uma repérage antes. Nunca vamos logo com material sem saber o que filmar. E depois, quando os locais onde vamos filmar estão escolhidos (e um pouco pensados), aí sim, levamos uma câmara digital, tripé, gravador, perche, etc. E depois, o normal: organizamos os diferentes filmes consoante a proximidade dos locais.
E organizam a rodagem como uma equipa de cinema, mas com crianças?
Sim, completamente. Tentamos sempre integrar todos. Três na realização — realizador, assistente de realização e anotador —, dois para o som, dois, às vezes três, para a imagem. Outros são actores, um maneja a claquete, etc. Quando estão todos ocupados, sentem-se mais envolvidos. E são sempre eles que decidem o que cada um faz. Mas passam todos por cada uma das funções num ou noutro momento.
Como se passa a pós-produção?
Depois da rodagem eles veem tudo o que filmaram, todas as takes dos planos e escolhem. Por vezes, grandes discussões! (risos).
Quem montava?
No início, para a parte da manipulação técnica, o Pierre-Marie montou muitos, mas era sempre em diálogo com os jovens. Não tomava decisões, ajudava a ver o que havia realmente no material filmado e fazia propostas. A decisão final era sempre dos miúdos. Mas, outras vezes, havia um montador. As conversas eram incríveis e tinhas as crianças a tentar escolher os planos por questões de luz, de som, de representação… Era uma maneira de exercitar o olhar, e na montagem eles davam-se conta do que tinham feito de bem ou mal. Isto porque, por vezes, no local não tens consciência de certas coisas. Assim havia um primeiro dia (inteiro) de escolha de takes e, no dia seguinte, começávamos a trabalhar a ligação dos planos, discutindo a ordem, os tempos, os ritmos. Experimentando, procurando, descobrindo…
É muito importante a aprendizagem pela tentativa e erro. Por exemplo, hoje em dia um miúdo pega num telemóvel e filma. Mas se não existir um contexto pelo qual vá de facto ver as imagens que criou e pensar um pouco sobre elas, sobre o que correu bem e correu mal, quais é que servem melhor o seu propósito, a coisa tem tendência a perder-se. Sem esta parte, a relação com a técnica do cinema surge um tanto incompleta, pois as crianças (e com os adultos é igual) não têm noção de que entre o on da câmara ou do telemóvel e o output das imagens que saem do dispositivo há um caminho e um conjunto de decisões que importa tomar. Nem que seja para que aumente essa “sincronização” entre aquilo que eu me propus filmar e o que consegui filmar. Esse voltar a ver (e a discutir) as imagens pressupõe esta aprendizagem por tentativa e erro.
Sim. Nós quando chegamos a um lugar (já escolhido) eu pergunto ao realizador: “onde é que vais pôr a câmara?” E muitas vezes, eles não têm noção de que é necessário procurar e respondem: “ela está bem ali”. “Está bem ali? Então vai ver o que é que se vê dali.” Ele olha e, não sabe muito bem mas não está muito contente, perguntamos por exemplo: “e tu queres aqueles carros, no teu plano? Não? Então o que fazes para os tirar?…” E eles percebem e começam a procurar outro eixo ou outra posição da câmara. Pedimos-lhes para antes de olhar pelo visor da câmara olharem à volta, tentarem perceber o que é que querem ter nas suas imagens, procurar um espaço. Isso é muito importante. Perceber que é preciso escolher um lugar, procurar. Mesmo jovens mais velhos. Eu e o Pierre-Marie demos vários ateliers em escolas superiores de comunicação em Bruxelas — jovens que estão a estudar para ser jornalistas —, e mesmo nesse contexto e nessa faixa etária, a reacção mais recorrente é pegar na câmara imediatamente, mesmo antes de olhar à volta. E esse olhar preliminar é fundamental. E a razão porque pegam logo na câmara é porque não estão habituados a observar e muitas vezes o fundo do que filmam é indiferente. E a importância de ver filmes e exemplos antes é para que comecem a perceber, no fundo, do que é que andam à procura. Começar a perceber que um filme não é só actores, que é também a relação entre os actores e o lugar onde estão, a sua relação com os objectos, com o fundo, as formas, as cores, etc. Só quando se apercebem destas questões é que começam a procurar um bocadinho mais para lá do que simplesmente tentar apressadamente contar uma história. Começam a sentir que há uma matéria.
E nestes contextos: trabalham mais a ficção ou o documentário?
Para te dizer a verdade, eu sinto-me mais atraída pela ficção, mas isso vale para mim, outros formadores vão trabalhar mais o lado do documentário. Quando os miúdos vão fazer os filmes de um minuto, à partida, é um documentário. Mas eu reparei que os miúdos gostam de contar qualquer coisa. Por vezes têm uma ideia de personagem, ou alguém que passa só, e eu alimento um bocado isso. Eu gosto disso, da possibilidade de criar uma pequena situação.
Mas vão escrever uma história antes?
Depende, geralmente não, procura-se ali, no lugar que foi escolhido uma pequena situação. Não há propriamente uma história. Mas depois, quando estamos a falar de um filme-ensaio, claro que sim. Escrevemos uma história. Escrevem eles, aliás.
E esses filmes-ensaio surgem em que contexto?
No atelier O Primeiro Olhar começava-se logo por pensar nesses filmes maiores. Era assim que terminava a oficina. Primeiro viam-se e analisavam-se filmes, depois faziam-se os tais “planos Lumière” (individuais) e, no fim, um filme-ensaio, colectivo, que envolvia todo o grupo.
Alguma vez tentaram pôr os miúdos a montar directamente os próprios filmes?
Não. A questão é que a montagem é um trabalho que exige muito tempo. E é difícil, com o tempo que tens com eles. Além disso, se pões um a montar, ele vai demorar horas e os outros ficam sem fazer nada. E também porque o nosso objectivo não é que eles dominem tecnicamente a montagem, mas que percebam o seu sentido. Interessa-nos mais que eles estejam na decisão da montagem, do que dominem propriamente os gestos técnicos. Claro que se tivesses mais tempo, dava para fazer. Mas talvez apenas com um ou dois de cada vez. Com um grupo não.
Já alguma vez tiveram a ideia de trabalhar sobre a montagem, mas sem filmar? Isto é, montando imagens alheias? Criar um pequeno filme a partir de outros filmes. Como o Godard, por exemplo. Pergunto isto porque penso que é vital hoje tentar fazer com que a pedagogia do cinemático seja reactivada por estes gestos, por estes circuitos que ligam duas realidades hoje distintas. Que vão da herança do Godard — do seu pensamento sobre as imagens e a forma como tem de as pensar e fragmentar em pedaços e histórias —, até ao primitivo gesto da criança que começa o cinema a partir daí. O destino do cinema, creio, cumpre-se nessa passagem de testemunho, nessa transmissão de um legado não só reflexivo, mas também do fazer.
Isso é um desafio muito interessante, mas nunca o tentámos. Os miúdos precisam de experimentar, de trabalhar com o seu próprio corpo. De ir para a rua. De ver, de ouvir. Como base inicial parece-nos fundamental. A montagem como exercício do olhar é uma coisa, como experiência técnica requer outro tempo…
O projecto CinEd faz um pouco isso através dos filmes pedagógicos, embora actualmente eles ainda sejam apenas feitos por formadores e especialistas.
Sim, é verdade. Há um importante trabalho de montagem que ajuda a perceber uma relação entre os filmes e a trabalhar questões de cinema. Mas há outras experiências a fazer, cada um dos filmes da colecção tem cerca de 100 fotogramas disponíveis (num espaço chamado Jovem Espectador que irá abrir muito em breve na plataforma CinEd). Os jovens podem remontar uma cena e acrescentar textos, música. Repensar e recriar outras cenas para um determinado filme. Se eles quiserem e tiverem ideias, podem fazer diferentes montagens a partir daí.
Sei que fazes distinção entre ensino e educação para o cinema. Aliás, o Bergala usa o termo iniciação ao cinema. Como vês estas diferenças?
Nós estamos na área da educação, não do ensino. Aquela, ao contrário do ensino, funciona mais como sensibilização/iniciação. Não tem um objectivo específico. O objectivo, a haver, é muito aberto: é descobrir, conhecer, experimentar, fazer. Mas não há aqueles conteúdos pré-estabelecidos, nem fazer com que as crianças queiram ser realizadores ou orientar para uma profissão específica. O nosso objecto é ver. E o fazer ajuda a perceber, a conhecer, a ver.
Hoje em dia as crianças quando estão ao computador, estão sempre a ligar imagens umas às outras, experiências umas às outras. Por isso, a montagem já não surge apenas só nesse contexto do ver-filmar-montar um filme, mas é uma experiência muito mais vasta, que implica inclusive poder escolher para onde queremos olhar.
Sim. E essa coisa de estar rodeados de imagens muitas vezes não quer dizer que se saiba filmar ou discernir bem umas das outras. Um bom exemplo vê-se na forma de abordar o tempo. Muitos jovens, por vezes, quando fazem de actores pede-se para olhar para uma direcção e ver qualquer coisa. E eles viram a cabeça mecanicamente e o espectador daquele plano percebe logo que se trata de um olhar sem ver. E isso tem a ver com uma certa dimensão do tempo, do ritmo, de que é preciso ter consciência. A falta de tempo revela que essa criança/pessoa não está a ver nada. Se depois, na montagem, não repararem nessa questão entre olhar sem tempo e olhar com tempo, não se apercebem bem da diferença.
A diferença entre representar um olhar e um virar de cabeça…
Sim, é a compreensão de que existe um tempo e um gesto cinematográfico. E que isso não é o tempo real, nem o movimento real. Assim como com o espaço. O espaço cinematográfico também não é o espaço real. Perceber que o espaço/lugar no cinema é possível reconstruir, transfigurar mesmo.
Tem também a ver com uma ideia de intencionalidade, de contexto para “atacar” um espaço. De ter a noção de que o tempo/o espaço a ser captado terá de ser mostrado a outrem e que isso passará determinadas ideias, emoções, etc. E a mesma questão com os olhares. Se não deres a um gesto mecânico uma intencionalidade, ele parece uma outra coisa, meio despida, sem interioridade.
Uma vez estávamos a filmar em frente à escola Marquesa da Alorna (nossa parceira há muitos anos). Era um plano um bocado complexo, com a saída da escola. E havia uma pessoa de fora que começou a assistir àquilo, muito intrigada com todo o tempo que estava a demorar e no final perguntou ao realizador: “mas isso para filmar não basta carregar no botão?” Era um “plano Lumière” de um minuto e o tema era a meteorologia no cinema. E os miúdos tinham estado a escolher um lugar para a câmara que permitia ver vários elementos meteorológicos e ficaram à espera do momento-chave para começar a filmar aquele minuto. Olhavam com imensa atenção até decidirem atacar… Estávamos a comentar essa história, quando regressávamos de táxi, e o taxista comentou: “sim, filmar, é como quando se tem uma pistola na mão, também não é só carregar no botão…”
Sim, mesmo uma pistola é preciso saber para onde e quando se dispara.
Creio que tinha estado na guerra o senhor. Mas o interessante foi a relação que ele fez com o tempo, a espera, o rigor do que era preciso fazer, através de uma experiência que ele podia compreender.
Podes falar um bocadinho mais detalhadamente da vossa relação com o projecto Le Cinéma, cent ans de jeunesse?
Nós somos parceiros pedagógicos do projecto desde 2006, há 12 anos. Como tal, apoderamo-nos de uma metodologia que é experimentada em conjunto. Parte da criação cinematográfica e a chave é a colaboração e partilha. Em Portugal, transmitimos essa metodologia e implementamo-la nas escolas. Também há uma formação de professores associada ao projecto, que é acreditada para eles ao longo do ano.
Como se passa essa formação? É assegurada por vocês, em que local?
Esta formação é dada pelos cineastas formadores de Os Filhos de Lumière, em parceria com um centro de formação. No fundo os encontros de formação em Portugal procuram replicar os que são realizados em Paris com os parceiros dos 15 países que integram o projecto e em que a associação Os Filhos de Lumière está sempre presente. Como não conseguimos levar a Paris todos os participantes portugueses, procuramos fazer em Portugal com todos das várias regiões em que trabalhamos, também porque um dos objectivos é partilhar ideias, processos, experiências entre todos. Alguns desses encontros fazemos em Lisboa, em grande parte na Cinemateca Portuguesa (inclusive aqueles encontros em que exibimos e trabalhamos os filmes com todos os participantes, professores e seus alunos). E por vezes temos os encontros também noutras cidades, como aconteceu neste ultimo ano com Serpa onde os filmes finais foram todos apresentados no Cine-Teatro Municipal de Serpa com a presença dos grupos participantes no projecto.
Mas Le Cinéma, cent ans de jeunesse estrutura-se em três partes distintas.
Sim, aí em Setembro/Outubro há uma formação inicial, no início do ano, na Cinemateca Francesa, em Paris. Esta depois também acontece em cada país envolvido. Nesta altura, estão presentes todos os professores, cineastas e participantes adultos. Depois há um segundo encontro intermédio em Paris, aí em Março, em que são mostrados os exercícios individuais, lançados no início do ano e para reflectir sobre a questão de cinema a trabalhar. Depois, os exercícios portugueses voltam a ser mostrados cá para serem discutidos por todos os participantes nacionais. No final do ano lectivo, há uma apresentação em Paris de alguns dos filmes-ensaio feitos pelos parceiros de todo o mundo. E nesse encontro levamos sempre uma representação portuguesa que inclui três escolas participantes com o maior número possível de alunos. Os outros filmes são mostrados apenas nos seus países
Neste momento quantas escolas portuguesas participam nesse projecto?
Este ano foram sete. Em Lisboa (2), Odivelas, Sintra, Mértola, Serpa e Vila Nova de São Bento.
E os professores intervêm mais neste contexto do Le Cinéma, cent ans de jeunesse ou noutras oficinas que fazem?
Mais no Cinéma, cent ans de jeunesse, porque nós vamos apenas às escolas quinzenalmente. Excepto no final do ano, em que vamos todas as semanas. E quando nós não estamos lá é o professor que trabalha com eles. No início são lançadas as premissas do ano—as famosas regras do jogo —, que valem para todos os participantes. E todos fazem os mesmos exercícios, trabalhando sobre o mesmo tema. Este ano o tema era “lugares, histórias”. O primeiro exercício pedia que cada um escolhesse um lugar, com o qual tivesse uma relação especial e o filmasse. Individualmente, sem personagens. O segundo exercício era filmar a passagem de um lugar para outro (a ideia de transpor algo ou entrar num lugar específico), ou passar de um espaço para um lugar (o espaço como algo indefinido e um lugar como algo circunscrito com que se estabelece uma relação). O terceiro era trabalhar à volta de um lugar no qual pudessem coexistir várias temporalidades. Por exemplo, uma situação em que num dado espaço já aconteceu alguma coisa, mas que só nos apercebemos disso mais tarde, através do som ou da imagem. No início, são mostrados filmes e excertos que permitem trabalhar estas questões. Por exemplo, o Dracula (Drácula, 1931) do Tod Browning, com a chegada do criado ao castelo. O que nos permite logo ver a entrada num novo espaço estranho e a passagem do exterior, ao hall e à entrada até a uma outra sala muito arrumadinha. Vários lugares envolvidos. Sobre as diferentes temporalidades mostrámos o Smultronstället (Morangos Silvestres, 1957) do Ingmar Bergman, em que o professor vai visitar a casa e vê a prima novinha no passado. O Partie de campagne (Passeio ao Campo, 1936) do Jean Renoir também. Havia ainda o Moonfleet (O Tesouro do Barba Ruiva, 1955) de Fritz Lang que dava para todas as situações ou o Rebecca (1940) de Alfred Hitchcock com aquela casa incrível onde a Rebecca viveu.
Os momentos de rodagem são sempre com vocês?
Estamos sempre com eles, mas são eles que fazem tudo. E assim que percebemos que começam a desenrascar-se sozinhos, vamos afastando-nos um pouco mas continuamos com eles. Há mil coisas a estar atento e nós temos que estar muito atentos à atenção deles…
Mas no caso do CinEd é um pouco diferente: formam-se os professores para que estes possam transmitir uma forma de olhar para o cinema. Isso é algo que as oficinas práticas não trabalham tão directamente.
Sim, mas nós também estamos nas projecções de filmes com os professores e os miúdos. Normalmente, os professores têm uma tendência a teorizar de mais e nós ajudamo-los a compreender que, mesmo sem ser a filmar, podes trabalhar a partir da matéria do cinema. É preciso exercitar o olhar e pensar e imaginar a partir do que vemos e ouvimos.
Isso é muito relevante, pois com a proliferação das imagens também o cinema se tornou mero receptáculo de conteúdo. Já não se é muito sensível à forma, quer nas escolas, quer no dia-a-dia. E proliferam os clichés, os violinos para chorar, as montagens de esguelha, os automatismos. Por isso, pergunto-te: como vês esta relação conteúdo-forma?
Bom, no trabalho cinematográfico há uma matéria específica que joga com as emoções, com os sentidos. Nesse jogo, o conteúdo faz parte da forma. A ligação conteúdo/forma faz-se por via da matéria. Uma história não se conta com texto ou mensagem, mas sim via essa matéria cinematográfica. No fundo, é a ligação entre tudo: entre a luz, as personagens, os objectos, o enquadramento, o tempo, o movimento, os sons, etc. Tudo isso é que nos conta algo, não é tanto a informação. Não faz por isso muito sentido falar em forma e conteúdo como uma dualidade. O problema é que a forma geralmente é ignorada e as pessoas só estão atentas ao conteúdo, esquecendo que ele está sobretudo na forma, na maneira de filmar através de sons e imagens.
Sim, mas a pedagogia do cinema trabalha muito sobre esta questão de nos voltar a tornar sensíveis a um conjunto de elementos que, fazendo parte da história da construção de cada imagem, nos são totalmente invisíveis hoje. Falo da posição e do movimento de câmara, cores, texturas, sons, etc. No fundo, porque as imagens hoje são apenas sinónimo de narrativas instantâneas, muito pouco polidas, como se fosse short cuts para uma versão já muito digerida e formatada de uma certa noção construída de “realidade”.
Uma coisa que nós fazemos é pedir aos miúdos para descrever um plano. Só descrever. Porque mais do que emitir opiniões, é importante ver tudo o que lá está e a análise daquela imagem em movimento, daquele plano, a partir de uma descrição. Isso ajuda imenso a perceber os sentidos, só através do que estão a ver, não é preciso dizer nada, eles próprios o fazem e isso é o início de quem começa a ver. E abre janelas para imensa coisa desconhecida, podemos dizer que é uma nova forma de olhar o mundo, a vida, os outros.
Nesse aspecto, a pedagogia é muito semelhante. Muda a faixa etária mas a sensibilização é a mesma.
Sim, mas as crianças são mais sensíveis, mais receptivas. A adolescência é o período mais complicado, ainda não se é adulto, mas já se rejeita a infância, a sua infância. Mas também existe, embora por vezes escondida, a grande curiosidade sobre esse mistério que é crescer e isso é vital para o encontro com o cinema que dá a descobrir novos mundos e maneiras de ver e de sentir. Por isso, o cinema pode ser uma boa maneira de pensar e partilhar ideias e sonhos de se projectar no futuro com os outros. Além de que uma criança vê logo à partida imensa coisa, ela sempre tem também uma forte intuição, uma abertura, uma curiosidade, uma capacidade enorme de imaginar, de criar…
Sim, o encastramento de um certo modo civilizacional depois vai tentar apagar essa sensibilização ao único, à irregularidade que cada olhar pode (e deve) captar. É uma questão de eficiência, mais tarde o que se quer é que a mensagem — lá está, rápida, polida, sem grandes polémicas — passe de um sítio para outro. Seja de pai para filho, de professor para aluno, ou ainda do dinossauro televisão para o ser que se encontra em frente ao ecrã a ouvir tudo. E com a internet os processos encontram-se mais camuflados, mas não variam muito, creio. É por isso que me parece estarmos a desaproveitar aquilo que uma civilização das imagens tem de singular, que é a capacidade de construção dos olhares únicos, da construção das imagens como espelhos para a nossa própria individuação (ao invés de uma certa domesticação do olhar).
Sim, o cinema resiste completamente a essa domesticação. Fazendo apelo à nossa imaginação e criatividade, à subjectividade e singularidade de cada um de nós. Mostra-nos imagens e sons que nos transportam para outros universos, para o lado do desconhecido, do mistério inclusivamente. E esse mistério faz-te entrar num lugar mágico que te deixa pensar e ver as coisas de outra maneira.
É muitas vezes uma questão prática. Um professor, vinte alunos. Como abordar um mistério? Mais fácil partir dos tais short cuts que simplificam abusivamente, que arredondam o cinema… Com eles, vem “a moral da história”, o utilitarismo: “a imagem X serve para Y, a imagem A tem o propósito B”…
Sim, o complicado é saber que há sempre muitos caminhos a seguir. Tantos quantos os olhares presentes. É esse espaço aberto e subjectivo que queremos dar às crianças e jovens: que estas se exprimam sobre um filme que viram sem medo de dizer asneiras, que descubram coisas em que nunca tinham pensado. E na verdade estamos todos constantemente a descobrir coisas em que nunca tínhamos pensado quando entramos em diálogo com os outros. Aprende-se em conjunto.
Já com as crianças, como elas não têm ainda essas codificações ou simplificações enraizadas, torna-se mais fácil abordar o cinema a partir da sua liberdade, da sua componente artística. E depois tudo vale, o que é maravilhoso: o sinal na cara do actor pode ser tão importante como aquilo que este acabou de dizer. As crianças ainda não têm formado este muro implacável, esta fronteira cultural que põe, de um lado, o que é “relevante” ou “importante” e deixa, do lado de fora (do “lado mexicano”), o sem valor, o que não é para ser visto ou notado. O que não figurará nos manuais.
Sim, é verdade.
Queres falar um pouco da relação teoria-prática? Sobretudo neste ponto de vista que creio que é comum aos vossos ateliers e também a projectos como o CinEd ou ao Le Cinéma, cent ans de jeunesse, que é acreditar que “há um ver que faz e um fazer que vê”.
É muito comum pessoas que dão formação ou orientam oficinas de cinema abordá-las de uma perspectiva mais teórica. Aquelas ideias que se encontram em qualquer livro e que, nós, n’Os Filhos de Lumière consideramos que não são essenciais, pelo menos antes da experiência prática. No fundo, quando falo em matéria cinematográfica refiro-me a olhá-lo através da perspectiva do seu processo de criação. O que é que o realizador pensou? Como é que um miúdo pensaria fazer tal ou tal cena, se quisesse mudar aquilo que o realizador decidiu? Portanto, é um conceito e um processo ao mesmo tempo. Não é fácil trabalhar isto com os professores, pois é para eles uma descoberta muito importante, pelo menos pelo que nos têm dito, inclusive dos relatórios que lhes pedimos após cada formação.
Mas há uma forma prática de olhar para a teoria, não? Por exemplo, podemos dizer que o Edwin S. Porter “inventou” uma forma de criar narrativa através da ligação de imagens em movimento. Mas, outra coisa bastante diferente é tentar perceber através do filme o que é que isso significa. Isto é, que implica pôr a câmara em diferentes locais do espaço, encenar pedaços de narrativa, etc. Ou seja, a própria teoria e história do cinema também podem ser abordadas por via dessa criação prática, e menos salientando conceitos, histórias, biografias, fórmulas…
Sim, mas se fizeres isso estás a experimentar e depois a reflectir sobre essa experiência. Nós procuramos fazer algo próximo disso ao começar pela prática, que é a experimentação na verdade, para chegar depois à reflexão. Claro que a teoria, enquanto forma de reflectir sobre o cinema também me interessa. Mas este começo é mais estimulante para uma criança ou um jovem, olhar para a realidade e agir sobre ela para tentar estimular a curiosidade. A mim interessa-me mais a teoria não como forma de conhecimento, mas sim de descoberta.
Completamente de acordo. Onde eu quero chegar é que, em meu entender, é vital despertar uma forma prática, criativa, concisa, coerente de aceder a uma dimensão mais teórica e informativa da existência. Saber sempre, por exemplo, quem é o sujeito da frase que diz “Eu estou a ler X”. Ou seja, sou eu que estou a ler X (para um caminho coerente, prático, nesse sentido de uma construção pessoal)? Ou é X que me está a pedir que seja lido por mim? Há uma grande diferença, creio, nestas duas atitudes. Para usar uma metáfora: “ou tu surfas a onda ou quando o mar vem já não consegues distinguir sequer uma onda da outra. É mais água, apenas.” E isto, para mim, é aquilo que fazem os cineastas — tomadas de pontos de vista, escolhas de um olhar, trabalhar uma consistência por tecelagem de pedaços de tempo e de experiência —, e que quer crianças, quer adultos podem aprender para a sua vida, o quanto mais cedo melhor.
Sim, no fundo liga-se a uma forma de olhar para o mundo. Nós queremos imenso que os professores aprendam isso. E que depois ajudem as crianças a entrar numa determinada forma livre, criativa, imaginativa de olhar para os filmes (na sua relação com a vida).
Para mim, trata-se aqui de procurar um entrelaçamento mais eficaz entre os conteúdos livremente acessíveis (ou quase) e uma forma coerente e individual de lhes aceder, de os transformar em “material de trabalho” para si. E passa muito por perceber a passagem entre momentos. Havia um momento em que o conhecimento estava sobretudo nos livros e depois era transmitido de professores para alunos, mas havia no sistema de ensino uma inadequação que dizia: “lá fora é que vais ver, lá fora é que vais aprender!” Creio que agora se trata de perceber verdadeiramente — e penso que só o começamos a fazer com esta acessibilidade mais democrática aos conteúdos —, de que mais importante do que transmitir esses conteúdos, é trabalhar na construção de um olhar individual, um ponto de vista que saiba atacar/aceder a esses conteúdos de uma forma eminentemente mais útil para si, para cada um. Essa inadequação entre um sistema de educação à volta de conteúdos e o “lá fora” esbate-se se pensarmos numa forma de acesso a esses conteúdos, a uma “teoria” a partir de um fazer. Isto porque nós, em última análise, não somos mais do que o nosso próprio case study e é só daí que podemos partir. Penso que esse é o grande desafio: quando temos acesso a tudo, potencialmente, virtualmente, é isso que temos de aprender. Aprender a dominar formas de entrar no mar de conteúdos, por forma a melhor servir a nossa “construção”. E a capacidade de vislumbrar todo o mar e tomar a opção de escolher/seleccionar é algo que aprendemos muito a partir do cinema, da atitude de construir qualquer coisa em movimento, com pedaços de tempo, chamados imagens em movimento.
Sim, tens razão. Uma vez um miúdo (de sete anos e de um bairro da Fonte da Prata) disse uma coisa incrível. Perguntámos-lhe o que era o cinema e ele disse: “o cinema é uma espécie de sonho”. E mais à frente: “Ele mostra-nos o que vai ser o futuro. Ensina-nos o que é a vida.”