É verdade que o seu mais recente filme foi lançado há dias em França, Que le diable nous emporte (2018), mas por cá Jean-Claude Brisseau tem estado nas notícias por outros motivos. O À pala de Walsh decidiu marcar o lançamento do seu livro O Cinema Não Morreu: Crítica e Cinefilia À pala de Walsh no Espaço Nimas com a projecção da penúltima longa-metragem do realizador francês, vencedora do Leopardo de Ouro de 2012, La fille de nulle part (A Rapariga de Parte Nenhuma, 2012). Esta projecção será acompanhada de um debate, moderado por mim, com Cíntia Gil (directora do Doclisboa) e Vasco Câmara (director do suplemento cultural do Público, Ípsilon). Procuraremos dar resposta à grande questão: “como separar a obra do seu criador?” Não quero aqui, neste artigo afecto à rubrica Recortes do Cinema, adiantar respostas, mas expor, com mais minúcia, o famigerado “caso Brisseau” e o modo, tão violento – muito mais que em Woody Allen, aviso -, como vida e obra se fundem. Para tal, socorri-me de alguns recortes (traduzidos livremente por mim do francês, salvo referência em contrário), de artigos, entrevistas, notícias, críticas. A maioria deste recortes foi recolhida na Biblioteca da Cinemateca Portuguesa, o lugar onde sempre privilegio a minha pesquisa.
Comecemos pelas características singulares do caso julgado em tribunal. Brisseau, um cineasta algo obscuro da cinematografia francesa, com uma obra consistente que merece outro foco, tem recebido uma atenção indesejada. Não tanto o cineasta Brisseau, mas o homem Brisseau. Qual a diferença entre os dois? Já lá vamos.
Os holofotes mediáticos incidem cada vez menos sobre o seu cinema e mais sobre o que está atrás dele – as suas “coisas secretas”. Quatro actrizes acusaram o realizador de assédio sexual cometido durante supostos castings para filmes em preparação que tinham como tema central “o desejo feminino”. Não haja dúvidas de que este é o tema número um da sua obra: os mistérios insondáveis do prazer feminino. Até onde levou Brisseau o desejo de perseguir este desejo? No início do processo, a Les Inrocks reportava, sem esconder a sua afición por este “anjo exterminador” do cinema francês, o seguinte:
Relato de um processo que não se pode esquivar da questão do cinema.
(…)
Jean-Claude Brisseau compareceu no dia 3 de Novembro ante um tribunal correccional de Paris acusado de agressão e de assédio sexual, fraude e abuso de poder por quatro actrizes. Estão em causa testes, na sua maioria eróticos, que o realizador de Noce blanche, De bruit et de fureur e L’Ange noir fez a duas dessas actrizes entre 1994 e 2001, com vista a um papel em Choses secrètes – que elas não obtiveram -, e os ensaios posteriores que preteriram as duas outras actrizes para um casting de um filme que acabou por não se fazer [referência a Portraits nus, projecto então em pré-produção por Paulo Branco]. As actrizes dizem ter-se deixado abusar pela aura de um cineasta reputado e exigente, que as fez interpretar um papel enquanto ele as intimava a se masturbarem e a se acariciarem mutuamente à sua frente, em hotéis, por vezes em locais públicos. Estes factos, ninguém os contestou, sobretudo Brisseau, que afirmou a necessidade imperiosa no processo criativo dos seus filmes, e lembra que cada actriz consentiu e estava avisada. (…) Brisseau defendeu-se durante seis horas sem lançar às acusadoras outro olhar sem ser o de artista.
(…)
É com grande dificuldade que as diferentes partes dissimulam atrás da indiferença exigida pela lei a ignorância profunda que elas têm do que é o cinema, como indústria e como arte
Julien Gester, Les Inrockuptibles, Novembro, p. 45
É nesta última frase que as dimensões do processo judicial e do processo artísitco se confundem, tornando este um caso de estudo das relações entre lei, sociedade e arte. De facto, Brisseau sempre assumiu que o sexo ocupava um papel central na sua obra. Assumiu, mas não precisava, porque os seus filmes atestam este desejo de penetrar no espírito e na carne, exaltando uma espécie de metafísica do desejo. O próprio falou sobre esta problemática num livro de entrevistas realizadas por um dos seus mais incansáveis defensores, Antoine de Baecque, e que a revista brasileira Foco contemplou parcialmente num número (obrigatório) sobre a obra de Brisseau. Transcrevemos a seguinte passagem da tradução da autoria do crítico brasileiro Bruno de Andrade:
Quando e como você aprendeu a trabalhar o sexo com atrizes?
Um clique. Foi o encontro com uma garota que, vinda para ensaios eróticos, durante a preparação de Anjo Negro, disse-me: “Antes destes ensaios eu tive a vontade de fugir, eu tinha medo, e, no entanto, eu experimentei ao fazê-los diante de você um prazer inesperado.” Para encurtar a história, era a primeira vez que ela havia gozado. Ao passo que eu, enquanto metteur en scène, não havia lhe pedido isso! Eu queria apenas que as garotas fossem um pouco excitantes, não que elas gozassem na minha frente. Dito isto, eu a deixei prosseguir, e foi uma experiência incômoda, interessante, não muito evidente porque havia um verdadeiro mal-estar, mas que acabou por me persuadir que se tratava de um bom tema cinematográfico.
Jean-Claude Brisseau a Antoine de Baecque, L’Ange exterminateur: Entretiens avec Antoine de Baecque, pp. 110-112
Esse livro contém várias passagens mais pessoais em que Brisseau fala sobre o seu processo judicial. Citamos algumas passagens do livro tal como foram pré-publicadas pela Les Inrocks.
Este é um julgamento perverso que me fizeram, quiseram enviar-me para a prisão a priori, considerando que os meus filmes são falsos, apenas pretextos para encontros com raparigas e para as saltar para cima. É feio, parece-se com uma caça às bruxas.
(…)
De facto, o que a juíza recusou, foi considerar-me como um cineasta. Desde o início, ela considerou-me sempre como um pervertido, um voyeur, um maníaco, nunca como um cineasta.
Dá a sua versão dos acontecimentos mais à frente, referindo:
O contacto físico [com as actrizes] é a linha vermelha que eu nunca ultrapasso. Não as toco, dirijo-as pela palavra, pelo gesto, mas à distância. E não me masturbo. (…) [As actrizes] são para mim intocáveis.
Jean-Claude Brisseau a Antoine de Baecque, Les Inrockuptibles, 1.º de Agosto, p. 32
Em 15 de Dezembro de 2005 Brisseau foi condenado pelo tribunal francês a um ano de prisão (pena suspensa) e a uma multa de 15 000 euros por assédio sexual praticado contra duas actrizes. O processo não terminou aqui. Na sequência de um recurso, Brisseau foi condenado ao pagamento de 5 000 euros por atentado sexual cometido contra uma terceira actriz. Esta segunda condenação passou estranhamente ao lado da opinião publicada. Esse facto foi notado, de modo crítico, pelo jornalista do Libération Didier Jacob:
Não houve nenhum artigo na imprensa para confirmar a culpabilidade de Brisseau, neste caso como nos outros dois. A sua culpabilidade a cem por cento. Nenhum artigo, para dar conta de que Brisseau acaba de ser novamente condenado.
Didier Jacob reproduz, no fim deste seu artigo, a decisão do tribunal:
Ao contrário dos primeiros juízes, [o Tribunal] considerou que os factos das agressões sexuais imputadas a BRISSEAU Jean-Claude sobre a pessoa de Julie foram verificados. O Tribunal acrescenta que [ficam provados] os elementos constitutivos de delito de atentado sexual com ameaça, violência, constrangimento ou surpresa sobre a pessoa de Julie, com a circunstância de que os factos foram cometidos por uma pessoa que abusou da sua autoridade conferida pelas suas funções (…)
Didier Jacob, «Brisseau, fin de partie», post do blogue do Libération Les grands livres
Depois de Choses secrètes (Coisas Secretas, 2002), e desta sua dupla condenação, Brisseau filmou Les anges exterminateurs (Os Anjos Exterminadores, 2006), filme que reconstitui factos constantes do processo judicial. Seguiu-se À l’aventure (À Aventura, 2008), que concluiu a chamada “trilogia dos tabus sexuais”. Destruídos os tabus, surge Brisseau inteiro, protagonizando pela primeira vez um filme seu, em La fille de nulle part. Num texto de Frabrice Revault publicado na revista Trafic pode ler-se perto do fim:
Desde então, ele me parece como um sinistrado, que passa por um período de recuperação; um velho leão ferido que, tal como um (grande) gato escaldado ou traumatizado, se restabelece serenamente no seu canto – é isto que atesta o seu último filme, La fille de nulle part.
Fabrice Revault, «Beautés transgressives», Trafic 83, Outono, p. 64
A ferida está à vista, em carne viva… onde mesmo? Desde logo, nos filmes. O “caso Brisseau” dificilmente pode ser entendido como qualquer coisa fora do cinema. Ele é indissociavelmente – como vimos, já o era na sala de julgamento – uma questão do cinema. Mas como podemos amar e aceder ao insondável desta maneira? O jogo é brutal, mas o debate está lançado.
Gostava de endereçar um agradecimento especial a toda a inexcedível equipa da Biblioteca da Cinemateca Portuguesa, pelo apoio prestado, e ao António M. Costa, por tornar possível a sessão que acontece hoje no Espaço Nimas, às 19h30.