Cesariny um dia escreveu “ama como a estrada começa”. Poderia ser sobre este signo que o filme se desenrola, porque este é sobretudo marcado pelas estradas, cruzamentos e caminhos que somos impelidos a tomar, pois o Verão não pode suster eternamente o nosso desejo, a nossa vontade de cristalizar momentos. Portanto, há que partir tal como o Verão parte todos os anos para dar lugar ao Inverno, o espaço da decepção, da imagem em branco (neve), da necessidade de um novo princípio e de um novo calor (a fisicalidade da lareira contra as gélidas lágrimas que escorrem do rosto de Elio no fim). Toscamente, esta é a ideia mais bela do filme.
Diríamos que é um resultado inesperado, tal como o tema de de Sufjan Stevens, é “um mistério do amor”. Foi necessário esse grande amor para que Luca Guadagnino se dispusesse a perder os tiques, a necessidade de opulência, a farsa operática à lá Visconti, todas as pretensões insuportáveis do seu anterior filme, Io Sono L’Amore (Eu Sou o Amor, 2009), para que este filme acabe, estranhamente, por resultar.
É certo que a presença Timothée Chalamet (Elio) é fundamental para o filme, pois é ele que nos fica na cabeça, tal como um dia nos ficou Natalie Wood (Deanie) em Splendour in the Grass (Esplendor na Relva, 1961)
É certo que a presença Timothée Chalamet (Elio) é fundamental para o filme, pois é ele que nos fica na cabeça, tal como um dia nos ficou Natalie Wood (Deanie) em Splendour in the Grass (Esplendor na Relva, 1961). A inocência do primeiro amor e a sua crueldade, porque este não possui freios, freios que mais tarde, tal como nas palavras do pai, colocamos a nós mesmos e por isso, somos incapazes de sentir, “porque damos cada vez menos”.
Neste caso ele deu mais e foi claro que ao dar, revelou as suas imensas fragilidades, o seu academismo e até uma certa pobreza das imagens (sempre demonstrativas) e da sua montagem. Mas contra todas as observações adequadas que podemos fazer a este filme, não será ainda assim mais justo dizer que este é melhor do qualquer pose soberba dos seus anteriores filmes, onde Tilda Swinton é a personificação máxima da sua tentativa de sofisticação, onde o filme existe apenas para demonstrar o seu fascínio pela vivência burguesa, pelo desfile das suas roupas e interiores (mais uma vez, a recorrência a Visconti e o seu consequente esvaziamento)?
Eu creio que sim, até porque este é finalmente um filme de um realizador que se conseguiu ver livre (de certa forma) das referências para com o passado cinematográfico italiano. Ao contrário do sempre penoso exercício que é assistir a um filme de Sorrentino e ao ataque sistemático perpetrado por este à memória de Fellini, o que Guadagnino aqui consegue é demonstrar a sua vontade de se inscrever também ele no cinema italiano.
Poderia ter tido a tentação de repisar Pasolini e o seu Teorema (1968) (aquele que entra no seio de uma família para a destabilizar), poderia ter filmado as estátuas gregas tal como Rossellini o fez em Viaggio in Italia (Viagem a Itália, 1954) (não é de todo semelhante, porque o olhar dele é homoerótico e a homofobia de Rossellini nunca o permitiria a tal), poderia ter adoptado pela crise existencial burguesa de Antonioni (existe a villa, as roupas, as próprias personagens e a sua afectação de classe, mas essa nunca foi a questão do filme) ou mesmo dar continuidade à patética encenação operática de Visconti, mas não, desta vez foi ele mesmo que decidiu escrever Itália pela sua própria câmara.
Aquilo que no início aparece como um suplemento desnecessário ao filme – a estátua em memória à I Guerra Mundial, a fotografia do Duce na casa onde param para beber água, a conversa dos dois “típicos” italianos à mesa – são tudo tentativas, pouco subtis, de dizer que também ele faz parte da história do cinema italiano e os seus filmes, serão também eles registo dessa coisa a que chamamos Itália. Diríamos que a par da inteligência emocional, tão visível na cena da conversa entre o pai e filho (a mais bela cena do filme e que contrasta com uma certa insipidez do texto no geral e até de uma presunção de certos diálogos, como a patética divagação de Oliver em torno de Heidegger), é a segunda nota inteligente em Call Be By Your Name (Chama-me Pelo Teu Nome, 2017).
Esperemos então que este não volte ao pastiche que nos tinha habituado até aqui e que continue por esta estrada, que mesmo incerta, dará mais frutos e é sobretudo mais honesta enquanto proposta, do que foi até então o seu cinema.
6 Comentários
O filme anterior de Luca Guadagnino é “A Bigger Splash”, não “Io Sono L’Amore”.
Anterior filme não era para ser lido de forma tão literal, apenas um filme anterior a este. Sim, o Bigger Splash é de 2015 e há ainda um documentário sobre o Bertolucci de 2013. Mas agradeço o reparo e peço desculpa pela “imprecisão”. De qualquer forma, a Tilda é insuportável em qualquer um dos filmes (mas no Io sono Amore é mais ainda)
Ah, nesse caso eu é que peço desculpa pela “piquinhice”. E óptimo texto, já agora.
E a “mais bela cena do filme” só chega a ser feliz até ao ponto onde se cola às pegadas de um Robbin Williams do Clube dos Poetas Mortos. A semelhança (até nos traços físicos do pai!) é desconsoladamente óbvia.
Pobreza das imagens e da montagem? Texto insípido? Farsa? patética encenação?
Na minha opinião nada disto se aplica ao filme nem aos filmes anteriores do mesmo autor.
O filme é um deslumbramento.
Alquimia perfeita com a banda sonora.
10 anos para conseguir financiamento- 6 semanas de rodagem.
Sem vilão, sem antagonista, sem mar nem por do sol ao horizonte que nos distraia da questão radical: “the mysteries of human connection” como Guadanino definiu.
Heraclitus: perpétuo movimento e mudança…”Não poderias entrar duas vezes no mesmo rio” porque o rio não volta a ser o mesmo nem tu serás o mesmo.
E a deliciosa anotação no bloco de Oliver: “the meaning of the river flowing is not that all things changing so that we cannot encounter them twice but that some things stay tge same only by changing”
Ou seja -a efemeridade- é intrínseca aos mistérios da intimidade.
Não percam!
[…] Call Be By Your Name (2017) de Luca Guadagnino […]