Em jeito de compensação pelo acidente de 2013, em que L’Inconnu du lac (O Desconhecido do Lago) de Alain Guiraudie foi remetido para a secção “Un Certain Regard” onde acabaria por conquistar o prémio de melhor realizador, Cannes 2016 elevou Rester vertical (Na Vertical, 2016), o último filme do cineasta, à competição oficial. Sem a aclamação de L’Inconnu du lac, se a escolha prestigiou ou não a competição é uma questão irrelevante e independente da qualidade do filme pois na história do festival, abundam exemplos de cinema anódino seleccionado para esta secção. Rester vertical chegou a Portugal, via Leffest, já com o logótipo da Alambique, devidamente legendado e pronto a estrear-se. A avaliar pela quantidade de público, sorrisos envergonhados e exclamações de espanto, numa sessão de sexta-feira à noite do Cinema Nimas, o admirável mundo de Alain Guiraudie ainda não conquistou em Portugal uma base sustentável de fãs ou o Leffest não encontrou forma de os filmes chegarem ao seu público potencial. Ainda assim, não se pode concluir que a resposta do público tenha sido semelhante a outros filmes do festival, pois mesmo um quase desconhecido Katsuya Tomita teve uma sala bem composta para assistir às três horas de duração de Bangkok Nites (2016).
Pela ambição em se fixar num género clássico preciso, o thriller, mas também pelo risco tomado na representação explícita da sexualidade, L’Inconnu du lac adquiriu uma posição central na obra de Guiraudie, como se houvesse um antes e um depois. Por conseguinte, em termos comparativos, podemos claramente considerar que Rester vertical representa um passo atrás e dois à frente. A liberdade narrativa aproxima-o de Le roi de l’évasion (O Rei da Evasão, 2009), a história de um homossexual quarentão que decide mudar de vida, considerando um casamento convencional com uma jovem rapariga, apesar da oposição feroz dos pais dela. Sem a sua evidente vertente de comédia – são hilariantes os planos de Ludovic Berthillot, em cuecas, em evasão pelos campos, primeiro da policia e dos pais da jovem, depois da própria pretendente – Rester vertical não prescinde das habituais personagens em fuga ou em movimento, neste caso o realizador Léo (Damien Bonnard) em busca de lobos no sul de França, que se apaixona por uma pastora (India Hair), com a qual tem um filho. Desaparecida a companheira, Léo fica com a responsabilidade de criar o bebé.
Rester Vertical adapta-se mal ao nosso mundo higienicamente compartimentado, regido pela tipificação e por convicções cerradas,
O refreamento do thriller de L’Inconnu du lac dá lugar à peregrinação introspectiva de Rester vertical, que em linguagem cinematográfica é o mesmo que dizer road movie, pois em ambos os casos se trata de uma viagem que busca a transfiguração interior, independentemente de a meta ser Santiago de Compostela, o Cabo de Finisterra ou a toca do lobo. O cenário de fundo é o mesmo campo aberto de Du soleil pour les gueux (2001), evocando a imensidão das paisagens naturais do western, mas plasticamente deixa de lado os filtros de Voici venu le temps (2005), criando uma certa rugosidade que vive bem na tensão com as imagens de dimensão bíblica. Aqui a noite é mesmo escura e medonha, onde tanto um cordeiro como um bebé podem servir de isco para seduzir o lobo.
Posta de lado a escrita de um guião, entre a condução das novas obrigações, Léo faz visitas regulares a uma casa onde vive um idoso (Christian Bouillette) e um adolescente insolente (Basile Meilleurat) que desconcerta o novo pai. Léo transforma-se num foragido por ter cometido o pecado de usar o sexo para ajudar o velho a morrer. É o cinema de Guiraudie a contornar o vício de que sofre muita produção que aborda a homossexualidade masculina: a obsessão pelo corpo jovem e belo. Em Guiraudie, não só são vulgares as relações sexuais entre homens com diferentes idades e corpos obesos, como são transversais à classe e à profissão. De resto, o “suicídio assistido”, com o fundo sonoro de “Away” dos Wall of Dead, afirma-se como candidato ao prémio da melhor cena que vimos no último ano, a concorrer com o gato a olhar para a violada/violadora Isabelle Huppert esparramada no chão, em Elle (Ela, 2016) de Paul Verhoeven, e a chuva dourada do careto, de O Ornitólogo (2016) de João Pedro Rodrigues.
Cada obra de Alain Guiraudie é composta pela acumulação de confortantes falsas chegadas, o que, no caso de Rester Vertical, pode ser inadvertidamente confundido com desorientação ou necessidade de foco. Por isso, Rester Vertical adapta-se mal ao nosso mundo higienicamente compartimentado, regido pela tipificação e por convicções cerradas, que Guiraudie representa através de circuitos fechados em que personagens em trânsito são conduzidas de forma repetida e trágica até aos mesmos lugares: a praça da igreja de Les héros sont immortels (1990) a fábrica, ou mais especificamente o balneário, de Ce vieux rêve qui bouge (2001) e o lago de L’inconnu du lac. Em Rester Vertical o alargamento topográfico é apenas aparente, mantendo-se essa lógica de circuito fechado. O “vai e vem”, lembrando o saudoso João César Monteiro (em paz descanse), entre diferentes paisagens, não figura claramente a extensão do mapa topográfico, e a eliminação das distâncias, em que as personagens se movimentam. Pelo contrário, enquanto essa diversidade aparenta um desenho mais complexo do mundo, também sublinha a asfixia dos seus limites, em que qualquer movimento desemboca nos mesmos lugares.
[Versão longa e revista de texto publicado no À pala de Walsh, a propósito da cobertura do Leffest 2016.]