É um dos cineastas mais estimulantes da actualidade. Não há nada nos filmes de José Luis Guerín que não traduza uma qualquer forma de desafio aos lugares de conforto do cinema e da cinefilia. Tudo, até certo ponto, é pensado e planeado para que uma grande revelação aconteça. O seu mais recente filme, La academia de las musas (A Academia das Musas, 2015), é uma tessitura teórica urdida na vertigem da realidade. Ao mesmo tempo, o jogo com a ficção é o jogo com o documental. Guerín veio a Lisboa apresentar e discutir o seu mais recente filme, pretexto ideal para uma conversa “de cinéfilo para cinéfilo”. Se é de musas que falamos, pois então apontemos as da sua/nossa cinefilia. Quais? Por exemplo, o português Pedro Costa.
Em que medida o Professor Raffaele Pinto pode ser visto como um alter ego seu?
Talvez na medida em que um professor se parece um pouco com um metteur en scène. Uma aula é uma mise en scène. O professor é um contador de histórias, tal como um cineasta. E é alguém que gera coisas à sua volta. Só nessa medida. O professor do filme chama-se Raffaele Pinto, mas é na realidade uma personagem de ficção. Ele existe, mas nunca diria as coisas que diz no filme. Não é um filme que reproduza uma realidade, mas um que cria uma realidade nova. O professor é efectivamente professor, a sua mulher é a sua mulher, os seus alunos são os seus alunos, mas a partir daí tudo é uma criação. Em relação à tua questão, a minha moral não corresponde à da personagem do professor. Mas ele tem essa função de gerar coisas à sua volta, o que o aproxima de mim como cineasta. Não necessariamente de mim, mas de qualquer cineasta.
Pergunto isto porque sensivelmente desde Unas fotos en la ciudad de Sylvia (2007) que encontramos no seu cinema uma obsessão por esta procura por uma imagem idealizada de mulher. É Raffaele Pinto o último avatar dessa procura?
Sim, e curiosamente o primeiro. Porque em Unas fotos en la ciudad de Sylvia aparece uma edição de La Vita Nuova de Dante anotada por ele. Esta edição é que me motivou a realizar estes filmes. Gosto que haja este motivo e de olhar esse motivo de diferentes perspectivas. Um pouco como variações de música. Em certa maneira, não é consciente durante o processo de trabalho, mas La academia de las musas funciona quase como um contra-campo de Dans la ville de Sylvia (2007). Este último é um filme com poucos diálogos, ao passo que aqui há bastante. Nesse filme não havia personagens, há imagens, enigmas. Em contrapartida, aqui há personagens.
Usa o termo “personagens” e não “pessoas”. Porquê?
Todas as pessoas filmadas são, para mim, personagens. Interessa-me o abismo que há entre uma personagem e uma pessoa; quando filmas uma pessoa de uma maneira e não de outra, cortas umas frases e não outra na montagem. Tudo isto faz parte de um processo de criação de uma personagem, por mais que seja uma pessoa real. Podemos identificar grandes documentaristas com sentido para a criação de personagens e outros que não sabiam fazê-lo. Danièle Huillet e Jean-Marie Straub no filme de Pedro Costa [Onde Jaz o Teu Sorriso? (2001)] são duas personagens extraordinárias. Uma pessoa é um poço sem fundo. Uma personagem é um trabalho de síntese que o cineasta faz. A diferença é muito grande se se trata de ficção ou documentário. Se calhar para os espectadores não é evidente o que os meus filmes são. Mas é importante definir as regras do jogo. A nossa relação com a personagem muda se estamos numa ficção ou num documentário. Se eu visse La academia de las musas como um documentário seria algo feio. É uma construção imaginária com as pessoas que foram filmadas.
Aceitaria se eu dissesse que o José Luis Guerín é um metteur en scène no domínio do cinema documental?
Acho que serás a pessoa mais indicada para o dizer, porque tens uma perspectiva melhor sobre o meu trabalho. Mas ficaria surpreendido se o dissesses, porque, para mim, Tren de sombras (O Comboio de Sombras, 1997) é um filme de fantasmas. Ganhou um prémio de melhor filme fantástico no Fantasporto. É uma criação fictícia de tudo. Um trabalho de iluminação que vem do expressionismo alemão, de Jacques Tourneur, que tem pouco que ver com o documentário. La academia de las musas e Dans la ville de Sylvia também sinto como ficções. É muito diferente, porque se estamos num filme documental e eu disser que tu és um criminoso é muito grave – e teria consequências penais e morais – mas numa ficção não é grave. Interessa-me determinar o espaço de cada filme.
De um ponto de vista político, tem algum receio que o discurso de Raffaele Pinto no filme seja confundido com o discurso do filme, podendo este ser acusado de machismo ou misoginia como é o próprio Professor na sala de aula?
Creio que não, mas cada espectador poderá julgar. Penso que, provavelmente, o possível mal-entendido se deve ao facto de eu não ser um moralista. Não gosto de julgar ou condenar as minhas personagens. Crio um dispositivo, uma lógica e não quero estar a impor teses morais por cima das minhas personagens. Não quero tomar partido. O meu trabalho como cineasta consiste em problematizar as coisas, apresentá-las de determinada maneira. Filmei as aulas e, depois, senti a necessidade de filmar fora das aulas, porque elas são este espaço de poder para o Professor, um espaço da voz autorizada. Por vezes, as alunas sublevam-se, mas a voz é, sobretudo, unidireccional. Tinha de problematizar isso, pelo que passei para o âmbito privado. E aí surgem os matizes, as contradições… o mais importante é a vivência. Não queria construir um filme só sobre ideias teóricas. Surpreende-me porque no filme a personagem mais patética é a do Professor. É-me difícil pensar que alguém possa encontrar uma identificação entre o Professor e eu.
É importante para si a provocação como meio para a reflexão?
Não creio. Mas às vezes é muito doloroso o esquematismo do politicamente correcto. Acho que a correcção é uma mordaça muito grande. Os filmes empobrecem-se muito. La academia de las musas é um filme que não construí a priori. Eu fui construindo o filme com a evolução das personagens. A minha posição ética era não estar por cima das personagens. Nem moralizar sobre elas ou não atender à sua evolução. Por vezes, era surpreendido pelo rumo que as cenas tomavam. Recordo-me da fórmula do cinema da revelação de Rossellini. Eu assisto à revelação do meu próprio filme. Descubro-o. Às vezes com preocupação, assustado. Eu não faço filmes para fazer denúncias. Não faço filmes para melhorar o mundo. Faço filmes para descobrir algo e para partilhar essa revelação com o público.
Há uma palavra no seu cinema que, para mim, resume boa parte – e a parte boa – do seu cinema: construção. Tem mesmo uma obra chamada En construcción (2001). Temos falado aqui sobre o que é construído e o que não é construído. O que é que lhe dá mais gozo: a parte construída, planificada, dos filmes ou essa margem de indeterminação rosselliniana, esse espaço aberto à “revelação”?
É verdade. En construcción chama-se assim porque é sobre a construção de uma casa, de um bairro novo, mas também porque vemos o filme no movimento da sua própria construção. Esse é um sentimento que, a meu ver, também está muito presente em La academia de las musas. Quando estou a filmar uma cena, não sei até onde esta me vai levar exactamente. Os espectadores também sentirão isso, provavelmente. Desde Tren de sombras, os meus filmes são ficções documentais que buscam formas que me permitem filmar descontinuamente, pelo menos, em duas partes. De tal modo que posso ir alternando entre rodagem e montagem. É algo que levei ao extremo em En construcción e La academia de las musas. Isto permite-me encontrar uma outra forma de narrativa. O que me interessa é esse espaço de poder montar, entre uma rodagem e outra, que me permite avaliar coisas valiosas que capturei, dar um valor especial a uma palavra que sentes que é importante e preparar uma segunda filmagem para desenvolver esses motivos. Esta construção é fruto de um pensamento em alternância.
Existe uma dialéctica entre o espaço imprevisível da rodagem e o espaço mais logocrático e reflexivo da montagem?
São os dois pólos, as duas almas do cinema. O cinema do cálculo e do controlo e o cinema da vida de improviso. Os meus filmes têm o desejo de unir os dois pólos opostos do cinema. Aprendi a amar o cinema com os grandes controladores do universo, com Ophuls, Mizoguchi, Ozu.
O José Luis Guerín pertence à categoria de cineastas da história do cinema que são intensamente cinéfilos. Qual a importância para si dessa cinefilia?
Eu gosto muito de cinema, mas não estou certo de ser um cinéfilo. É verdade que a minha experiência como espectador é muito importante. Nunca deixei de ver cinema. Penso que comecei a fazer cinema quase como um gesto de agradecimento por aquilo que ele me deu. No caso dos cineastas clássicos foi diferente. John Ford terá começado a fazer cinema como uma forma de vida. Mas a partir da geração da Nouvelle Vague isto muda. Fazemos cinema porque temos gosto por uma escrita, o cinema. A escolha da profissão é uma consequência disso. Esta relação entre escrita e profissão era inversa entre os cineastas clássicos. Mas… é verdade: tenho amigos cineastas que quando começam a fazer filmes deixam de lado a sua experiência como espectadores. Não é o meu caso. Gosto muito de ver cinema.
Aproveitava essa sua deixa para lhe lançar um pequeno jogo cinéfilo. Vou dizer um título de um filme seu e associar a cada um o nome de um realizador. Gostava que completasse este jogo. Portanto:
Innisfree (1990) – John Ford
En construcción – Howard Hawks
Tren de sombras – Louis Lumière
Dans la ville de Sylvia – Robert Bresson
La academia de las musas – quem?
Je ne sais pas [risos]. Podia mudar o que tu disseste. Em En construcción é Rossellini. Em Tren de sombras é Tourneur ou Duras. Mas está bem Louis Lumière. Eu sei que tenho um imaginário muito construído de filmes. Também de literatura e pintura, apesar de ter sido o cinema que me “vertebrou” a vida como forma de educação. Posso-te dizer que não teria feito da mesma maneira La academia de las musas se não tivessem existido filmes como La pyramide humaine (A Pirâmide Humana, 1961) de Jean Rouch, Stromboli (1960) de Roberto Rossellini e Close-Up (1990) de Abbas Kiarostami. Mas em nenhum momento exacto pensei nisto. A minha cabeça está povoada por estes filmes. Por exemplo, as cenas com os pastores da Sardenha, com os seus cantos, são quase um material etnográfico, documental, que lembra Rossellini quando filmava os pescadores em Stromboli. A pesca do atum. É um material documental, em primeira instância. Mas depois há o contra-campo de Ingrid Bergman. É uma apropriação da ficção, isto é, por um olhar vindo da ficção.
Houve alguns críticos que associaram La academia de las musas ao cinema screwball de George Cukor, sobretudo devido à dinâmica do casal de professores no filme. Falou do filme de Pedro Costa com Straub-Huillet, que, por sinal, foi também visto por alguma crítica como uma screwball comedy.
As tomadas de consciência acontecem na montagem. Não as procurei nem forcei. Mas os teus gostos sentem-se no trabalho de montagem. Pedro Costa, um cineasta quase da minha idade, creio. Vejo os seus filmes e consigo reconhecer os filmes que ele gosta. É na montagem que vejo: “olha, isto lembra-me aquela personagem”. Em La academia de las musas, a rapariga loira, na violenta discussão final com a mulher do Professor, fez-me pensar na “má consciência” de Jean Seberg, em Bonjour tristesse (Bom Dia, Tristeza, 1958) de Preminger. Mas jamais imponho estas associações mentais. Da mesma maneira que se fores passeando pela rua estabeleces associações, isso pode acontecer com as imagens que capturaste. Mas sim, é verdade: por exemplo, no cinema documental ou do real, posso distinguir um cineasta que conhece o cinema clássico de outro que não conhece. O gosto pelo diálogo, o trabalho sobre as palavras e a selecção das frases mostra-me se um realizador gosta ou não gosta de Lubitsch.
Para esta entrevista foi fundamental todo o apoio prestado pelo colega walshiano Carlos Natálio. Também a walshiana Sabrina D. Marques foi uma ajuda importante. Um obrigado muito especial a eles.