Tenho Rebecca de Daphne du Maurier numa mão e a outra no teclado, o que faz que escreva muito mais devagar, e sinto-me tentado a transcrever as duas famosas primeiras linhas do livro, nesta edição da Livros do Brasil: “Sonhei, a noite passada, que voltava a Manderley. Pareceu-me ter ficado algum tempo diante do portão de ferro, fechado a cadeado”. Hitchcock começava com esta voice over pelos lábios de Joan Fontaine e a câmara atravessava as barra metálicas (vários anos antes de Antonioni) e percorria em travellings espectrais os caminhos que levavam à ruína que Manderley se tornara. Guillermo del Toro demora uns largos minutos a levar-nos à ruína de Crimson Peak (Crimson Peak: A Colina Vermelha, 2015), mas é certo que uma vez lá não mais a abandonamos.
É já um lugar comum escrever sobre as casas como personagem [ao ponto de essa leitura se ter literalizado, veja-se Hausu (1977) ou Monster House (A Casa Fantasma, 2006)], mas é certo que há uma série de momentos inescapáveis em qualquer história gótica e o casarão é um deles: a heroína inocente com vontade de emancipação (normalmente gorada, mas nem sempre), o homem mais velho sedutor mas perturbado, o casamento apressado, a casa de família desolada, um casamento anterior, uma tensão lésbica entre a heróina e a figura feminina da casa, o incêndio final que apaga todo o passado e de onde tudo renasce. E se refiro Rebecca, também podia referir Jane Eyre (e respectivas adaptações cinematográficas) ou todo o universo das histórias góticas que a literatura originou e o cinema absorveu. O filme de del Toro é, pois, um delicado pot-pourri de referências que não se limitam aos filmes góticos de prestígio (ingleses) das décadas de 1930 e 1940, mas também necessariamente à sua serialização nos anos 1950 e 1960 quer por Corman quer pela Hammer, e igualmente à mastigação italiana dos contos góticos pelos mestres do giallo, especialmente no trabalho de iluminação à Bava ou Argento. Mas se suspeita de tão complexa confecção é porque não conhece o consistente trabalho do realizador mexicano que teima em nunca queimar o refugado.
Crimson Peak afirma que só a câmara e o olhar do crente podem encontrar os espíritos do passado
Há a este respeito dois diálogos que são particularmente expressivos das intenções do filme e dos seus argumentistas (del Toro e Matthew Robbins, cujo trabalho é por vezes sofrível), um referente às questões narrativas, ou outro às formais. O primeiro opõe a nossa heroína, Mia Wasikowska – que já foi Jane Eyre -, e a mãe de um dos dos seus pretendentes quando a primeira se dirige a um editor com vista a publicar o seu romance. A mulher de sociedade pergunta-lhe se quer ser como a Jane Austen que alegadamente morrera virgem, ao que ela responde: “quero ser como a Mary Shelley que morreu viúva”. Nesta pequena troca de palavras coloca-se em cima da mesa uma série de oposições, as histórias amorosas por oposição às fantásticas, a virgindade por oposição à viuvez (que é como quem diz, o sexo por oposição à morte) e todo o filme vai tratar de mostrar que nem tanto à terra nem tanto ao mar (listen to the sea): o sobrenatural como expressão emocional, os mortos como conselheiros dos vivos. A outra linha de diálogo trata do momento em que o tal pretendente da mão da menina lhe explica que da mesma forma que os daltónicos não vêem o verde e o encarnado apesar de saberem da sua existência, algumas pessoas não vêem as almas penadas mas sabem que elas permanecem com os vivos (e a fotografia nos seus primórdios, cheia de sombras quiméricas, funciona como prova dessa presença). O que o filme nos apresenta, nesta alegoria meta-fílmica, é que só a câmara e o olhar do crente podem encontrar os espíritos do passado e isso ser-nos-á provado adiante quando tudo vira verde e encarnado no casarão de Allerdale Hall e os fantasmas se arrastam pelos soalhos pingando sangue e gemendo horrores.
Estes são dois aspectos que o cinema de Guillermo del Toro sempre manifesta, uma adoração decorativa pela construção de ambientes reflexos (que neste caso é muito evidente, com a cave cheia de cadáveres, os pisos intermédios da acção e o sótão cheio de borboletas e espaço do romance incestuoso – mais evidente da trindade freudiana no Ego, Super-Ego e Id era difícil, talvez o maior problema do filme seja mesmo a obviedade dos símbolos) ao ponto de sentirmos que não foi capaz de incendiar o edifício (como seria expectável, e conclusão natural da história em causa) por amor ao que ele representa do seu cinema, e uma honesta crença no poder transfigurador do cinema, a saber, o filme como brincadeira de criança, como aparato de espanto e deleite onde as rodas dentadas que o fazem mover-se em nada retiram à magia do movimento, pelo contrário. De novo, de modo reflexivo a presença de engenhocas é recorrente, aqui uma máquina a vapor da época industrial, mas antes haviam sido os bisontes mecânicos de Pacific Rim (Batalha do Pacífico, 2013), a relojoaria de Cronos (1993) e Hellboy II: The Golden Army (Hellboy II: O Exército Dourado, 2008) e tantos mais bricabraques de tic-tac. Um maravilhamento infantil pelos mecanismos do cinema que se exibe orgulhosamente a cada instante é no mínimo enternecedor.