Se tiver o poder de vos influenciar a irem ver um filme em sala este ano, esse filme seria Mommy (Mamã, 2014), do canadiano Xavier Dolan, que apesar dos seus vinte e poucos anos leva cinco longas-metragens no currículo, das quais só conheço a última. Irei tentar fazer deste meu desconhecimento força. O texto não terá qualquer preparação, não vou ler críticas ou entrevistas, dir-vos-ei aquilo que senti nas quase duas horas e meia de duração, e impressões que se foram depositando depois.
Aquilo que mais gostei em Mommy foi o facto de ser uma clara declaração de amor ao cinema e também a sensação de que Xavier Dolan se está nas tintas para o ridículo. Ele ousa, a obra nasce, e a opinião dos outros não influenciará o atrevimento seguinte. Isto já sou eu a especular, pois se o tom da sua quinta longa-metragem incorre tantas vezes num lado excessivo, ao nível das formas e das emoções, só posso imaginar que o que veio antes não teria mordaça. A questão do amor ao cinema é categórica. Alguém que faz um filme que tira proveito exclusivo em 90% do tempo da parte central do ecrã, e que a mesma corresponde a cerca de dois terços de um enquadramento de 1:1.65 (na prática um 1:1), torna “impraticável” a sua fruição televisiva. Porque ou se adultera radicalmente a natureza do objecto ou o espectador em casa sentir-se-á defraudado na imagem que lhe servem, emparedada por dois significativos rectângulos na vertical a negro.
Mommy é um melodrama travestido, nos sentidos literal e metafórico. A insinuação dá-se logo com a caracterização da actriz que é a mãe do título, Anne Dorval, que não me admiraria nada, e até acrescentaria um elemento de interesse suplementar embora exterior ao filme, que fosse um transexual. Não quis saber mais. A suspeita basta(-me). O lado travestido do filme nasce do imperativo “opoperático” que Xavier Dolan faz prevalecer sobre a verosimilhança das personagens e situações. A acção tem lugar num futuro tangencial, ano 2015, em que uma lei é aprovada no sentido dos pais poderem hospitalizar por tempo indeterminado crianças ou jovens com os quais não consigam coabitar dada a sua natureza hiperactiva e violenta. Steve (impressionante Antoine-Olivier Pilon) é um jovem assim e uma possível projecção personificada do cinema de Xavier Dolan, de quem ouvi dizer repetidas vezes ser Mommy a sua obra mais madura e “controlada”.
Os conflitos sucedem-se na ficção por serem, mãe e filho, duas naturezas sob pressão prontas a explodir. A linguagem é bastante expressiva, com o colorido próprio do calão quebequês (“tabarnak!”, que equivale ao nosso “foda-se!”, é talvez a palavra mais utilizada). Nota-se ainda o prazer que a música acrescenta ao cinema de Dolan, que não se coíbe de gerar pequenos videoclips no interior da história (ao som dos Oasis ou dos Counting Crows), e também coreografias privadas (recorrendo a Céline Dion…), que é a sua outra forma de sublinhar que interiormente aquelas personagens não cabem no espaço do filme, e aqui já não é dos próprios limites do enquadramento que se trata, que o realizador estreita com riscos assumidos, para os poder libertar em dois momentos significativos, onde a música tem maior relevo: como se fosse necessário enclausurar a ficção e aquelas figuras numa dimensão claustrofóbica quando comparada com o aspecto canónico da tela, para depois poder mostrar que o espaço do cinema continua a ser maior que a vida.
O amor que Xavier Dolan manifesta ao cinema tem mais ou menos claras ramificações dirigidas a realizadores que o precederam. Lembrei-me do Kubrick de The Shining (1980) nos momentos de terror doméstico quando Steve se revolta com a mãe e chega a assustá-la de verdade: ela que é o seu maior semelhante, alguém que possui a mesma ferocidade, apenas mais acomodada à vida em sociedade (mas não demasiado…) e com os exuberantes instintos conduzidos para o guarda-roupa de tacões muito altos (vide Almodóvar) e o consumo compulsivo de álcool e cigarros: trata-se de uma mulher sujeita a várias influências (como num Cassavetes elevado à potência das hormonas de um jovem e acelerado criador como é o caso de Dolan). Lembrei-me por mais tempo do Spike Lee de 25th Hour (A Última Hora, 2002) no momento em que Mommy se abre para um futuro alternativo na vida de Steve, quando este vai na estrada com a mãe e a vizinha Kyla, a outra mamã que ajudará a fazer canalizar as energias edipianas (um édipo embora sem adversário para lá dos tabus do sangue ou da idade, uma vez que as personagens masculinas ou estão desaparecidas/mortas – o pai – ou são fracas), ao longo de uma viagem que terá desfecho semelhante ao que esperava o Monty Brogan do filme de Lee.
Sobre a questão da maior ou menor sinceridade de um filme só podemos suspeitar e em vários casos especular. Avaliando esta que é a única obra de Dolan que vi, reconheço um conjunto de pulsões, referências e instintos tão díspares que não consigo encaixá-la em nenhuma tendência a não ser a que ela própria vai criando entre gritos, piruetas e ralentis, que consoante os tipos de estômago assim será diferente a digestão. Não é filme que me agrade por inteiro, mas ao enfado do acumular de maneirismos oponho o desassombramento do gesto e o filme sai sempre vitorioso. Xavier Dolan poderá até ganhar a vida a fazer cinema, algo muito natural ao quinto filme de uma sucessão de obras estreadas, reconhecidas e premiadas em festivais importantes, mas parece-me mais relevante, enquanto cinéfilo, que ele se tenha entregado ao cinema para ir mais além em algo que nenhuma vida consegue fazer cumprir no plano concreto da realidade: uma vida imaginária, musical e coreografada, uma vida organizada para corresponder aos desejos do seu criador. Uma vida de cinema que apelando ferozmente aos nossos sentidos nos faz sentir mais vivos enquanto assistimos a essa mesma projecção.