Le diable probablement (1977) é o penúltimo filme de Robert Bresson e, se permite observar o método e a forma minimalista a que Bresson se dedicou, ao longo dos anos, para reduzir o cinema aos elementos que considerava essenciais, o tom que utiliza é particularmente desolador e pessimista, ao idealizar aqui como o cinema pode traduzir a vida em arte. O filme está programado no âmbito do próximo ciclo Harvard na Gulbenkian, com curadoria de Haden Guest, sob o tema “uma luz diferente”, contando com a presença dos cineastas Joaquim Sapinho e Nathaniel Dorsky que, além de obras próprias, vão apresentar respectivamente Ana (1982), de António Reis e Margarida Cordeiro, e Le diable probablement, no dia 23 de Novembro. No caso do filme de Bresson, a luz é dominada pela escuridão, quer pela abordagem visual sombria e distante, quer pela desesperança do tema tratado. Em Le diable probablement, a luz é ténue e essa escassez torna-a preciosa. “O meu mal é ver com demasiada clareza”, proclama o protagonista do filme, perto do fim.
Le diable probablement começa exactamente na escuridão, apenas interrompida pelos faróis de um barco que percorre o rio, enquanto passam os créditos iniciais. Logo a seguir, o filme revela-nos o seu fim, ou pelo menos assim parece: uma capa de um jornal anuncia o suicídio de um jovem no cemitério, mas outra capa logo revela que afinal pode ter sido um caso de homicídio, e recuamos seis meses. Com esta pista dupla, Bresson delimita os dois caminhos possíveis para a história do filme e para o rapaz da capa do jornal, de destino desde logo traçado, que acompanhamos juntamente com os amigos à sua volta, que o tentam salvar. Esta intuição de começar pelo fim parece ser recorrente nos filmes de Bresson, como se pretendesse influenciar, ou avisar, o espectador desde o início. Quer aqui, quer em Une femme douce (Uma Mulher Meiga, 1969), as primeiras imagens anunciam o suicídio da personagem principal; Mouchette (Amor e Morte, 1967) começa com uma mulher a chorar sobre o que irá acontecer; o desfecho de Procès de Jeanne d’Arc (O Processo de Joana d’Arc, 1962) é conhecido à partida pelo espectador, mas mesmo assim um guarda lembra constantemente que Joana d’Arc irá morrer; e Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut (Fugiu Um Condenado à Morte, 1956) proclama o desfecho no próprio título – ainda assim, sem que nenhum destes filmes perca tensão dramática, porque em Bresson essa tensão tem outra origem.
O nosso protagonista é Charles, um jovem rapaz parisiense, um prodígio da matemática aborrecido com tudo à sua volta, desiludido com a vida e as suas promessas vazias de sentido. Nas primeiras sequências do filme, assistimos a uma série de discussões de cariz político, que trazem à superfície a influência pós-Maio de 68, e o sentimento de incapacidade das personagens recordando um filme anterior, La chinoise (O Maoísta, 1967), de Jean-Luc Godard, como se dez anos depois tudo estivesse igual. O envolvimento político das personagens apenas serve para sublinhar um distanciamento em relação ao destino do mundo, confirmado numa confissão hedonista de Charles. Este afirma que não ambiciona a nada, a não ser o prazer próprio, porque o resto não tem salvação, é já tarde de mais para qualquer revolução e vamos acabar a acenar os braços enquanto tudo se desmorona.
Este sentimento de desespero é acentuado pelas imagens documentais que pontuam o filme, de desastres ambientais e agressões sobre a natureza, de paisagens destruídas pelo avanço do Homem. Bresson adequa as imagens do filme à visão própria do seu protagonista, como que conformando o filme à visão dele. É um diagnóstico que parece inferir a perda de fé na humanidade em prosseguir – alguém fala a certo ponto na destruição de espécies inteiras pelo lucro e Bresson parece apontar para a nossa: a Humanidade, essa doença. As imagens de destruição ambiental sucedem-se por entre os debates ideólogos, como se Bresson trabalhasse aqui um campo/contra-campo entre duas cenas, onde as imagens desoladoras respondem aos diálogos vazios de solução. De facto, as imagens das árvores que tombam parecem emocionar mais do que qualquer interacção humana presente no filme, pelo menos até a história do filme avançar.
No centro do grupo de amigos está a relação de Charles com duas raparigas, enamoradas por ele, e a relação de outros rapazes com essas mesmas raparigas. Charles parece incapaz de decidir como prosseguir, mesmo que que não encontre algo de significante nos seus encontros com ambas além do prazer que procura, que revela-se sempre temporário, insuficiente. Encontra porém a validação de que é superior aos restantes, e aí descobre a consequente desilusão, que apenas confirma o seu ponto de vista em relação ao mundo, de que é o único que vê as coisas com claridade. É também através destas relações que Bresson vai deixando pistas sobre o caminho de Charles – primeiro, uma das raparigas encontra uma cápsula de cianeto na bolsa dele; depois, a outra, encontra-o na casa de banho depois de tentar afogar-se na banheira. Enquanto os seus amigos próximos se preocupam com ele, Charles ameaça desaparecer, e é apenas quando decide ajudar um outro amigo toxicodependente que parece ganhar claridade na sua escuridão, como se encontrasse finalmente um aliado para a apatia. Numa das cenas mais icónicas do filme, Charles e este amigo procuram refúgio dentro de uma igreja e, deitados no escuro, ouvem a música de um gravador, numa última paragem antes do acto final do filme.
Nada é mais falso num filme que esse tom natural do teatro copiando a vida e decalcado sobre sentimentos estudados.
Robert Bresson in Notas sobre o Cinematógrafo
No minimalismo formal de Bresson, há um elemento que sobressai, pelo confronto com a regra instituída, que é a utilização de actores nos seus filmes. Ao não dissociar o trabalho de um actor dos maneirismos clássicos do teatro, procura evitar esta forma de representação artificial no cinema. A sua noção de cinema passa por recorrer não a actores, mas ao que Bresson apelida de modelos, “vindos da própria vida”, corpos e caras que não estão ainda formatados e não são conhecidos do público, que podem, desta forma, ajudar o filme a atingir um estado mais puro. É a diferença entre “ser (modelos) e parecer (actores) ”, entre “o movimento de fora para dentro (modelos) e o movimento de dentro para fora (actores) ”. O seu método passa por obrigar os modelos a repetirem a mesma cena até à exaustão, até diluírem qualquer personalidade própria nas personagens que encarnam, até desaparecer qualquer traço de performance. O resultado é uma entrega estéril e autómata dos diálogos, e comportamentos anémicos e passivos, longe da emotividade trabalhada a que estamos habituados noutras obras, mas cujo efeito pode ser sublime, como em Un condamné à mort s’est échappé, que se aproxima do documentário, como se estivéssemos a ver uma pessoa comum e não um actor.
Esta opção permite a Bresson focar a atenção nos gestos e movimentos dos modelos, nas acções dos seus corpos, que ganham assim proeminência sobre o resto – muitas vezes Bresson segue em plano aproximado os movimentos das mãos, os gestos que enunciam a acção e desta forma os sentimentos, ao invés da emotividade expressa nos seus rostos ou na entoação. Na sua fisicalidade, nestes corpos feitos em peças, os modelos dos filmes de Bresson acabam por tornarem-se veículos para as personagens, e as personagens acabam como veículos para as acções e gestos, através dos quais as emoções são construídas. Em Le diable probablement isto é particularmente visível, nos corpos que se arrastam e nos gestos indefinidos, e a apatia ganha literalmente corpo, numa representação física – a distância emocional, a incapacidade de sentir de Charles, e a sua alienação em relação ao mundo tornam-se tangíveis. L’argent (O Dinheiro, 1983), o derradeiro filme de Bresson, é onde este leva ainda mais longe esta opção, onde as pessoas são quase acessórios dos objectos filmados, apêndices enquanto o filme persegue os feitos das personagens à volta do dinheiro. Em Le diable probablement, os objectos são também os amigos que circundam à volta do protagonista, ele próprio no fim reduzido a um objecto, um ícone dentro do filme, para demonstrar uma ideia.
Se uma imagem, vista separadamente, exprime com nitidez qualquer coisa, se ela comporta uma interpretação, não se transformará em contacto com outras imagens. As outras imagens não terão nenhum poder sobre ela e ela não terá nenhum poder sobre as outras imagens. Nem acção, nem reacção. Ela é definitiva e inutilizável no sistema do Cinematógrafo.
Robert Bresson in Notas sobre o Cinematógrafo
A entrega de Bresson a uma unidade formal é inabalável, é a sua fé no cinema como religião. No posfácio a Notas sobre o Cinematógrafo de Robert Bresson, Pedro Mexia escreve mesmo que “é de um mundo à parte que se trata. Bresson tem uma visão tão própria do cinema que chega ao extremo de recusar a palavra cinema para lhe preferir Cinematógrafo“. Bresson recusa a utilização dos elementos de um filme como artifícios, recusa o espectáculo: não há movimentos expressivos de câmara, mas uma composição simples, apenas um ângulo por enquadramento e, assim, todos os planos são importantes; não há música ambiente para embelezar a acção, e através desta redução o que ouvimos ganha maior importância. Nesta economia de meios usados, não por escassez mas por escolha, ao reduzir o impacto de cada elemento utilizado, Bresson chega às tais imagens não-significantes. Ao seguir os gestos das personagens, dá relevância ao mundano, ao banal, e retira simbolismo às imagens, apresentando o seu significado dentro delas, sem especulação. Assim, deixam de existir imagens mais importantes e outras subjugadas, e nessa opção por continuidade o espectador sentirá uma maior aproximação à sua realidade.
Para Bresson, o tema do filme é apenas um pretexto, e a forma sobrepõe-se ao conteúdo, é a maneira de chegar perto dos espectadores – Susan Sontag escreve mesmo que a forma dos filmes de Bresson constitui a verdadeira mensagem que este pretende passar – já vimos que Bresson não se importa de mostrar logo o fim, porque não interessa a história, mas sim a forma como esta é contada. Paul Schrader, no seu livro Transcendental style in film: Ozu, Bresson, Dreyer, defende que a forma é o elemento operativo na transcendência dos filmes de Bresson, na sua universalidade, já que se a história depende de aspectos específicos a cada diferente cultura, a forma pode tornar-se imediatamente reconhecível para o espectador. Nesta fórmula para uma maior comunhão entre o espectador e o filme, eliminando barreiras que julga desnecessárias, Bresson consegue atingir uma maior pureza de mensagem, e assim a transcendência na sua obra. Mas em Le diable probablement é possível também observar a intemporalidade do seu método e a actualidade e urgência do desespero das suas personagens. Se nos filmes mais antigos de Bresson, o sofrimento e a redenção são temas indissociáveis, nos últimos, como Le diable probablement e L’argent, não há redenção e, mais alarmante do que isso, não há sequer a procura da mesma – apenas as imagens como testemunho, e a verdade nelas contidas.
Le diable probablement será exibido sábado, dia 23 de Novembro, às 15h30, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito do ciclo Harvard em Gulbenkian. Estamos a oferecer bilhetes para todas as sessões, incluindo esta de Bresson, na nossa página de Facebook. Participe aqui.