Em todas as antevisões de festivais que vou fazendo procuro respeitar aquela velha regra do futebol traduzida na proverbial explicação: “Só me interessa falar dos que cá estão.” Mas não estaria a ser inteiramente justo com o espírito do festival se seguisse à letra essa regra. Entre os dias 10 e 14 de Setembro no cinema São Jorge, independentemente da qualidade geral das “acomodações”, decerto que se falará bem mais sobre a fortuna dos que cá já não estão que daqueles que se arrastam nesta triste existência, física e temporalmente linear. Aliás, nesta edição, o quebra-cabeças Coherence (2013) perfila-se como o filme que mais cérebros irá estorricar, porque nele nada parece estar no seu devido lugar, física e temporalmente. Não digo que seja esse o caso da programação do festival, mas, embalado pela maldade que há em mim, sinto-me impelido a citar os que cá não estão, ainda que tudo indicasse que viessem a estar.
O primeiro nome que me assalta como uma ausência é o de Joe Dante. Estou menos a falar da sua presença propriamente dita que do seu mais recente filme mostrado há dias em Veneza, Buying the Ex (2014), comédia romântica de horror (rawmantic comedy?) sobre um homem e a sua namorada zombie – sinopse não muito distante da do filme que abre esta edição do festival, Life After Beth (2013), do argumentista de I Heart Huckabees (Os Psico-Detectives, 2004), Jeff Baena, e com John C. Reilly. Passo a explicar a origem desta “decepção”. Para falar daqueles que não estão, é preciso ler os sinais. Se há um ano o MOTELx abria as hostilidades com uma projecção no Largo S. Carlos de Poltergeist (1982) e contava com a presença física e temporalmente linear de Tobe Hooper – já agora, se não no MOTELx, quando e como conseguiremos ver o seu mais recente filme, Djinn (2013)? – , esperava este ano que o mesmo acontecesse após equivalente projecção de abertura de Gremlins (Gremlins – O Pequeno Monstro, 1984). A ausência é notada, mas atenção: isso de modo algum desmerece o peso específico que os dois homenageados desta edição têm ou tiveram na história do cinema de terror. A vinda do realizador e produtor Brian Yuzna, um dos homens por trás do nascimento de Re-Animator (O Soro Maléfico, 1985), como que complementa a presença em 2009 de Stuart Gordon, nomeadamente com a exibição no festival da sequela Bride of Re-Animator (O Soro Maléfico 2, 1989). Seria ainda mais interessante (ou coerente) que, na desejada vinda de Joe Dante, se passasse Innerspace (O Micro-Herói, 1987) com Honey, I Shrunk the Kids (Querida Eu Encolhi os Miúdos, 1989), o clássico de domingo à tarde que Yuzna escreveu de novo em colaboração com Stuart Gordon. Mas, pelo menos por momentos, deixemos os que cá não estão de lado. O espanhol Álex de la Iglesia é o outro cineasta objecto de uma retrospectiva, que permitirá, acima de tudo, a descoberta ou redescoberta do seu clássico cult El día de la bestia (O Dia da Besta, 1995), filme feito num estado de graça que dificilmente o voltará a bafejar.
Na programação corrente, chato que devo ser, volta a saltar-me à vista uma ausência tonitruante. É que não há hoje cineasta que melhor pense conceptualmente o cinema de terror – na digestão dos seus tempos mortos, na sua justeza dramática às personagens – que o norte-americano Ti West. Se este se tinha feito representar no festival através do magnífico The House of the Devil (2009) e das suas curtas nos filmes omnibus V/H/S (2012) e The ABCs of Death (2012), era de esperar encontrar agora, na “carta” desta edição do MOTELx, o sacramental The Sacrament (2013). Fala quem tem alimentado a expectativa de respeitar, como um bom menino, o pedido que o realizador fez em carta aberta: “(…) Demorámos um ano a meticulosamente conceber o filme com o intuito de que este fosse projectado em 35mm num grande ecrã com som surround alto. Isto foi feito para o seu benefício. Foi feito para ser visto numa sala – é afinal… um filme.” Pois parece que não iremos ter a oportunidade de ver The Sacrament em sala, até porque o MOTELx 2014 parecia ser o local e a altura mais adequadas para isso. Para compensar, poderemos ver quase em primeira mão um dos mais badalados filmes de terror deste ano, que deu que falar no último Festival de Cannes: It Follows (2014). No site Indiewire, lê-se que este é “um filme de terror adolescente como nunca viu antes”, reminiscente dos slashers dos anos 80 e são citados nomes de peso como John Carpenter, Wes Craven e Jacques Tourneur para dar conta dos temas e atmosfera geral do filme. Uma aparentemente banal história sobre a iniciação sexual na adolescência transforma-se num filme de alucinações e perseguições horríficas. Algures por aqui move-se esta segunda obra de David Robert Mitchell.
Outros dois filmes-sensação que chegam ao festival são The Babadook (2014) e Oculus (2013). Digamos que o segundo caso não faz bem ao primeiro. O trailer de Oculos, com promessas de viagens temporais através de espelhos malditos, prometia chamar Jean Cocteau ao mais embestado mundo do terror contemporâneo. Mas não: o filme propriamente dito é um puzzle psico-analítico sem chama. Aliás, de um ponto de vista conceptual, o anterior filme do realizador Mike Flanagan, Absentia (2011), não sendo espantoso, tem o que de intrigante Oculus tem pouco ou nada. Por isso, limpe devidamente as lunetas, porque The Babadook pode também não ser aquilo que o seu trailer impactante nos dá a ver ou entrever. De qualquer modo, num ano sem James Wan é bom dar de caras com uma história assombrada pelo medo em estado puro e ambientada por (nada) inocentes bedtime stories. O monstro Babadook será quase de certeza o grande papão deste MOTELx. Uma curiosidade: a realização deste filme está a cargo de uma mulher, a australiana Jennifer Kent. Infelizmente, da mesma Austrália o talentoso Greg McLean, autor do excelente Rogue (2007), traz a sequela de Wolf Creek (2005), que é um dos passos em falso do ano. Evite-o.
Com um trailer menos chamativo, The Guest (2014) é hóspede para ter debaixo de olho, já que vem com a chancela Adam Wingard e Simon Barrett, a sociedade que deu à luz o melhor filme do MOTELx 2013, You’re Next (2011). Esta é a história clássica do “estranho intruso”, que vira do avesso a vida de uma família enlutada pelo desaparecimento de um dos seus na guerra. Alegando ter seguido de perto os seus últimos instantes de vida, este homem de intenções dúbias irá impor-se como um novo membro da família. Avaliada pela “precedência”, outra aposta segura será The Raid 2 (O Assalto 2, 2014), a sequela do violentíssimo filme de acção indonésio The Raid (2011), que fez furor na edição do festival há dois anos (Ricardo Vieira Lisboa escreveu sobre ele uma crítica muito elogiosa, que pode ler aqui). Não faço parte dos fãs do filme, mas não sou indiferente às qualidades, nem que potenciais, do seu realizador: o galês Gareth Evans. Este é responsável em V/H/S 2 (2013) por alguns dos mais excitantes minutos de acção e terror de toda a série, que, já agora, tem nova sequela programada para esta edição do festival, V/H/S: Viral (2014), onde se destaca na equipa de realizadores o convidado Nacho Vigalondo, que também apresenta no festival Open Windows (2014), com Elijah Wood e Sasha Grey. Noutras circunstâncias, The Raid 2 seria garantidamente um filme para encher a sala Manoel de Oliveira – Gareth Evans e Manoel Oliveira, dois nomes que poucos julgavam ser possíveis numa mesma frase. Contudo, este título está há demasiado tempo disponível na pirataria e estranhamente, até porque o primeiro nunca chegou a estrear comercialmente, também já está acessível para aluguer on-demand em Portugal. Estes dois factores servem para testar até que ponto o público mais ou menos fã do género é fiel à experiência em sala. Eu não sou fã e guardo-me para ela.
O meu outro destaque, que na realidade encima qualquer outro desta edição, é obviamente o do muito aguardado regresso de Alejandro Jodorowsky, o mago chileno que nos anos 70 assina extravagâncias sensoriais tão inesquecíveis quanto El topo (1970) e The Holy Mountain (A Montanha Sagrada, 1973). Passados 23 anos de inactividade na realização, período que ocupou sobretudo na escrita de livros esotéricos, Jodorowsky regressa a casa, à casa da sua infância, isto é, à casa de um cinema onde a realidade, de facto, dança – o título maravilhoso é explicativo, como um programa, de todo o seu mundo. Brontis Jodorowsky, que faz de pai do seu pai no filme, marcará presença no festival. Por tudo isto, será imperdoável perder La danza de la realidad (2013) na grande tela.
Numa segunda divisão das recomendações, deixo uma nota de alguma curiosidade para o mais recente filme de Lucky McKee, realizador com um gosto particular pela sátira brutal e por uma fria inspecção dos podres da sociedade norte-americana, como o provam os seus The Woman (2011) e May (2002). Co-realizado por Chris Sivertson, All Cheerleaders Die (2013) parece resumir-se à fórmula “sangue e gajas boas”, mas é o nome de McKee que me faz desconfiar das aparências. Outro prato forte é Kuime (Over Your Dead Body, 2014) de Takashi Miike, realizador já algo distante dos sucessos de Ôdishon (Anjo ou Demónio, 1999) e Koroshiya 1 (Ichi the Killer, 2001), que se tem dedicado a produções “mais prestigiantes”, nomeadamente Jûsan-nin no shikaku (13 Assassins, 2010). Agora traz-nos uma adaptação da peça História de Fantasmas de Yotsuya, que já havia merecido uma importante adaptação ao cinema por um dos cineastas homenageados pelo MOTELx, o “clássico japonês” Nobuo Nakagawa (sobre a qual escrevi aqui). Miike não é um cineasta da minha preferência, mas é inegável a sua importância no actual programa do festival. A bizarria escondida desta programação será Bad Milo! (2013), um filme que poderá mudar a sua percepção acerca do vasto mundo dos problemas gastrointestinais. Algures entre David Cronenberg, Joe Dante e James Gunn [o de Slither (Slither – Os Invasores, 2006)], Bad Milo! promete ser o supra-sumo da comédia escatológica, fazendo da história de um “homem sob influência” uma parábola sobre como podemos/devemos lidar com os nosso próprios demónios gástricos. O trailer fala por si.
Em resumo e concluindo, o MOTELx 2014 abre as portas a todos os fãs do terror com uma programação alguns furos abaixo do que nos habituou, mas nem por isso com menos promessas de sustos e diversão. Mesmo que desperte a vontade de falar sobre “os que cá não estão”, este continua a ser o festival mais revigorante de Lisboa. Vamos lá reservar o nosso quarto.