Aquele que por uma vez percebeu o que é a recordação mantém-se para toda a eternidade prisioneiro de um só e mesmo recordar.
Søren Kierkegaard
Desde sempre que o homem tem necessitado de preservar a sua memória, porque ela lhe falha constantemente, porque ela o engana amiúde e porque ela pura e simplesmente não é de fiar. Mas todos os suportes de memória são falíveis (e alguns mesmo voláteis) – quase tanto como a própria memória -, desde a rocha do neolítico até ao disco externo de vários Terabites. Servimos-nos destes dispositivos para nos permitirmos esquecer. E quando nos falham? Que fazemos se a memória já relaxou?
A entrevista que se segue – se é que se lhe pode chamar assim – foi realizada por Skype e é o resultado dessa memória que se deixou descansar pela suposta fiabilidade à prova de tudo dos aparelhos do novo milénio que sintetizam a voz em ficheiros binários de alta qualidade. Sim, o gravador não gravou como devia e por isso a citação directa, ipsis verbis e à letra, tornou-se impossível. Mais, o que a seguir se escreve é apenas aquilo que a memória conseguiu reter depois de infinitas tentativas de limpar o dito ficheiro dos mais variados ruídos com exercícios de equalização, limpeza de cliques e ademais estratagemas de desbastação sonora – ironia máxima quando se trata de uma entrevista a Joaquim Pinto, um dos mais notáveis técnicos de som do cinema nacional.
“Não somos Proust”
Mas não me parece que a ironia se fique por aqui quando nos deparamos com um objecto como E Agora? Lembra-me (2013) que logo a começar no título trata dessa dúvida que a própria lembrança traz consigo. É que o título do filme mais recente filme de Joaquim Pinto esconde uma série de possíveis leituras das quais só sou capaz de descortinar três, a saber: Lembra-me como aquele que falando consigo pede ajuda à mente para que esta compactue no exercício da lembrança; Lembra-me como aquele que na hora da despedida pede a alguém para não o esquecer; Lembra-me como aquele que olhando para o futuro pede a quem o acompanha que o (re)lembre de qual a direcção a seguir. Joaquim admite que talvez o título do filme queira significar um pouco de cada uma destas três possibilidades de leitura. Mas a história do título é curiosa, avisa-nos. Originalmente o filme era para se chamar simplesmente E Agora? [aliás, é por esse nome que é identificado em alguns dos primeiros artigos escritos sobre o filme, nomeadamente este por Augusto M. Seabra] mas depois de o terem ido registar ao IGAC receberam uma carta, semanas mais tarde, informando que algures nos anos noventa esse nome já havia sido registado (ainda que o filme nunca tivesse sido produzido). Tentaram, ingloriamente, encontrar o dono dos direitos para uma possível compra dos mesmos, mas o instituto não podia fornecer os dados do detentor. Posto isto, enviaram um conjunto de títulos alternativo, isto é, acrescentos aos original “E Agora?”, um deles o actual “Lembra-me”. Só há pouco dias perceberam que a inscrição no instituto tinha ficado simplesmente como “Lembra-me”, o que levantou um problema burocrático não despiciendo a Pedro Borges, o distribuidor que agora estreia o filme nas salas comerciais, dada a incompatibilidade do nome oficial com o nome de facto. Por isso, só há poucos dias é que o nome oficial e o nome oficioso condizem.
Percebemos assim que por mero acaso burocrático tem o filme o título que tem e no entanto o título é possivelmente a peça chave do próprio filme. Mas voltando a Joaquim: “gosto que seja um título que permite várias leituras. Em inglês perde-se essa nuance já que se teve que optar entre o remember e o remind” [o título em Inglês é What Now? Remind me].
Não fugindo ainda à questão do título demoremo-nos um pouco mais sobre ela e sobre as questões da memória. Pergunto se não houve o receio de, na feitura deste filme, obrigar a memória a olhar para o período entre 2011 e 2012 (o tempo que durou o tratamento experimental em Madrid para o HVC a que o realizador se submeteu e que é o leitmotiv para o filme) pelo olhar que a câmara preservou, se não teme manter-se “para toda a eternidade prisioneiro de um só e mesmo recordar”. Joaquim explica que, antes de mais, o período do tratamento está no passado e ao passado diz respeito. “O filme está fechado”, não há voltar atrás, houve um ponto final e não se lhe mexe mais. É curioso, diz-nos, mas no outro dia estava a assistir à Q&A do Pedro Costa em Locarno pela Internet e ele dizia algo como “Eu faço filmes para esquecer” mas nem de propósito fez uma das curtas do filme Memories (2007) há poucos anos – The Rabbit Hunters. Quanto à citação e a Kirkegaard, Joaquim admite que de facto não é desprovida de sentido, Proust escreve no À la recherche du temps perdu a mesma coisa uma e outra vez, “mas nós gostando muito do Proust, não somos Proust…”
Activismo íntimo
Em E Agora? Lembra-me há uma enorme variedade de registos, do ensaio religioso ao ciné-diário, passando pelo ensaio politico-intimista e pelo documentário informativo. Pergunto se essa faceta política (mostrar como um casal de homens pode viver junto, mostrar como se pode viver com o vírus do HIV e do HVC, mostrar como estas não são de longe infecções crónicas e que a vida com a doença não é de perto nem de longe uma vida tranquila – como erradamente se vem tornando comum pensar) era procurada ou aconteceu pela natureza pessoal do projecto. Joaquim revela que na verdade esta era a ideia original, pelo menos a sua, das poucas coisas que tinha como objectivo a priori antes de começar a filmar. “Tinha algumas coisas que queria dizer (e que acabaram quase todas fora da montagem final [risos])”. Era importante mostrar às pessoas que a SIDA e o HVC são doenças com que não se vive bem, muito pelo contrário, mas talvez mais importante que isso era falar de um tema que de novo não se fala. Nos anos 90 houve vários filmes pessoais que retratam a síndrome mas nos últimos anos – “e nós procurámos!” – não houve nada. Fizeram-se vários documentários sobre pessoas infectadas (muitos bastante bem intencionados) mas pelas próprias… nada.
É importante trazer o tema de novo para cima da mesa, porque, segundo nos informa, começa a acontecer um efeito inverso: começam a surgir movimentos negacionistas do VIH que vêem tudo como um complot fabricado pela industria farmacêutica ou simplesmente como um vírus inofensivo. Uma série televisiva “asquerosa” fazia essa releitura dos factos mas pelo véu da verdade, convidaram uma série de cientistas de renome e depois de os entrevistarem remontaram tudo de modo a os colocarem a dizer falsidades. “Foi por isso que desistimos de fazer entrevistas, como era a nossa ideia original”, chegaram mesmo a fazer algumas antes mesmo da rodagem do filme, até iam entrevistar a Françoise Barré-Sinoussi – uma cientista francesa que venceu juntamente com Luc Montagnier o prémio Nobel da ciência pela descodificação do VIH, mas que é quase sempre preterida em relação ao colega em parte também por ser mulher – mas foi aí que descobriram a tal série.
Joaquim confessa que até teve sorte, já que dos seus amigos que souberam que estavam infectados na mesma altura que ele já nenhum vive ainda. Ele teve a sorte de apanhar os tratamentos da transição que eram menos tóxicos. “Mas as coisas mudaram muito, estávamos a falar disso no outro dia, de como eu ao início tomava 30 comprimidos por dia e havia uns que até rebentavam na lata de tão reactivos que eram”. Hoje os tratamentos novos já são de apenas 3 meses e os efeitos secundários são muitíssimo menores, mas em Portugal ninguém tem ainda acesso por questões orçamentais” – se fosse hoje Joaquim não teria podido receber o tratamento experimental em Espanha como aconteceu dado que uma das medidas de austeridade do nosso país vizinho foi impedir tratamentos prolongados a cidadãos estrangeiros, mesmo que da união europeia (e só fecharam os olhos ao término do tratamento por ser algo experimental). “É ridículo quando se começa a fazer hierarquias de doenças ”, mas acontece. Uns lobbies fazem pressão para que a prioridade seja o VIH, outros lutam pelo HVC. Qual é melhor?, pergunta com ironia. E depois ninguém liga ao ébola que é uma doença que sempre existiu e, embora seja de difícil transmissão, mata milhares de pessoas, mas como só acontece em África não há grande financiamento para a investigação – mas depois ficamos todos preocupados quando há uma nova epidemia.
Neste sentido há um interesse no cinema de Joaquim Pinto de filmar o invisível. Por um lado em O Novo Testamento Segundo São João (2013) tudo anda à volta da fé, que é por definição a crença no que não é explicável e portanto também ausente de imagem – o texto termina como a louvação daqueles que, ao contrário de São Tomé, creram na santidade de Jesus mesmo sem verem as chagas (ver para crer dizia o santo e Joaquim diz querer para querer) e o filme mais do que uma vez se torna todo negro deixando-nos só com a voz de Luís Miguel Cintra. Por outro lado, em E Agora? tenta-se dar imagem a algo que não é visível (nem sequer tem cor): um vírus. Questiono Joaquim sobre a forma como lida um realizador com o dilema de ter como objecto de trabalho algo que não se pode sequer filmar. Responde que talvez ao início tenha sido um pouco naife ao ir para um laboratório com esperança de conseguir encontrar alguma imagem. Na realidade o que existem são modelos (alguns muito correctos) criados por animação 3D. Quanto ao Evangelho o projecto inicial não era para ser filmado, era para ser apenas mais uma das gravações de textos que têm feito com o Luís Miguel Cintra para a Gulbenkian. Éramos para gravar em dois dias mas depois de uns teste de manhã fizemos tudo de uma assentada e acabámos ao pôr do sol. Por causa também do texto e enquanto eu gravava o som o Nuno foi filmando. “Ele não está agora aqui por isso não posso responder por ele, mas imagino que ele só tenha filmado os excertos que lhe interessaram” e quando achava que não valia a pena deambulava pelo campo ou simplesmente desligava a máquina. Além disso, o evangelho é um texto que originalmente se destinava à oralidade – numa altura em que não havia igrejas – e por isso deixar o filme a negro dá um outro peso à palavra dita. Joaquim confessa que houve certos excertos aos quais só deu verdadeira importância depois de os ouvir gravados. Além disso, “percebo que seja um filme exigente para o espectador, mas se formos a ver hoje em dia os filme são todos iguais”, toda a gente segue fórmulas que já foram mais do que experimentadas.
Uma história de amor
Mantendo-nos nesta questão mas recentrando na pluralidade dos registos o meu colega Luís Mendonça questionou-se sobre um risco que sentiu no filme: o possível conflito entre o diário filmado e o filme religioso, já que a combinação dos dois podia levar a que a personagem Joaquim Pinto surgisse ao espectador como um santo. “É algo que nunca tinha pensado”, por isso, não senti esse risco, “além disso nem me considero uma pessoa crente…”. Esclarece que o debate filosófico que surge no filme é algo que advém da relação com Nuno Leonel e das discussões que tinham sobre esses temas. “É engraçado porque o filme mudou a nossa relação”, antes por vezes discutiam e não eram capazes de resolver bem os conflitos, mas desde que fizeram o filme isso nunca mais aconteceu.
Sobre esta relação que é tanto um casamento como uma parceria artística – “os filmes são feitos a dois, pouco importa quem assina a realização” – Joaquim conta que E Agora? está repleto de pequenos presentes que ele e o Nuno Leonel oferecem um ao outro. Desde o início, antes mesmo de iniciarmos a rodagem, o Nuno prometeu fazer uma sequência de animação para o filme, mas depois com a rodagem o Joaquim até se esqueceu (já que a sequência de animação que surge de facto no filme só foi terminada já muito perto do final da rodagem). Aliás, há duas sequências de animação, uma em stop-motion com o peluche e outra em que se fundem imagens do próprio Joaquim com silhuetas negras de pássaros e árvores. Mas havia mais, explica, que acabaram por não entrar na montagem final, apesar de estarem completamente terminadas. Embora filmassem quase todos os dias, havia momentos em que Joaquim não conseguiu filmar devido aos efeitos secundários do tratamento. Nesses períodos, o Nuno aproveitava para avançar nesses trabalhos. Joaquim acabou por conhecer essas animações apenas quando estavam completamente prontas e foi uma total surpresa. Uma dessas cenas era “muito engraçada, uns ananases e uns melões de uma caixa de frutas começavam a dançar à minha volta e eu estava envolvido por um turbilhão de frutas que acelerava cada vez mais”. Pergunto se serve então a animação para retocar de algum modo a realidade. “Nem por isso”, é apenas mais um forma de manifestar uma ideia visualmente. Aliás, o filme teve muito poucos retoques. Hoje em dia há filmes que sofrem aturados processos de correcção de cor, o deles praticamente não passou por isso, a correcção de cor que fizeram foi toda caseira, no computador. O que se vê no ecrã difere muito pouco da imagem em bruto.
Se me é permitido acrescento algo que Joaquim não explicita e que acabei por não perguntar, também por receio de quebrar alguma barreira ou por simples pudor (não é fácil falar sobre o íntimo de alguém mesmo se no caso presente esse íntimo seja explícito e desejado pelo realizador e pelo público): E Agora? Lembra-me é uma das mais belas cartas de amor que o cinema produziu. Quantos são os filmes (e nessa ordem, quantos são os realizadores, os artistas ou até os homens e mulheres) que são capazes de olhar para a história da criação do mundo por Francisco de Holanda, aetatibus mundi imagines, e encontrar entre as palavras que originam o universo “Nuno” e “Amor”? Como se a sua história de amor já estivesse escrita antes mesmo de existir matéria e luz e o que quer se seja. Se isto não é a mais genuína manifestação de amor que alguém pode fazer, então é porque não sei o que seja isso de amar alguém.
A lição de César Monteiro e o menino Joaquim
O cinema de Joaquim Pinto (não só o filme que agora se estreia) e Nuno Leonel está cheio de citações: Ruy Belo abre E Agora?, Mário Cesariny dá o mote a Sol Menor (2007), Dario Fo oferece o título a Archangels Don’t Play Pinball (2014) – filme composto de citações entre eles Alberto Caeiro e Gottfried Wilhelm Leibniz- para não falar de Fim de Citação (2013), filme/peça filmada composta por excertos das várias peças que a Cornucópia levou a palco durante mais de 40 anos ou o próprio Evangelho de São João (e não são só citações literárias, também musicais e visuais com pinturas – de Francisco de Holanda – e filmes). Questiono se funcionam estes elementos como blocos de construção, espinhas dorsais para os filmes. Joaquim começa por esclarecer que a citação é um recurso antigo nos filmes de ambos, por exemplo, Santa Maria (1992), a primeira curta de animação do Nuno está pejada de citações e é um filme já com bastantes anos. Não é pois algo só visível nos filmes mais recentes. Acrescenta, “se há uma coisa que aprendi com o João César Monteiro (só uma? [ri-se]) é que não devemos ter medo das citações, devemos assumi-las”. O João César gostava muito de fazer citações. Em conversa conseguia introduzir discretamente grande citações e ficava à espera que as pessoas as descobrissem e identificassem. No caso E Agora? com o poema do Ruy Belo, Joaquim explica que este só surgiu na montagem, não era algo planeado. Foi algo de que gostou muito e que dizia algo com que o realizador se identificava bastante e “melhor do que eu alguma vez poderia escrever”. E Agora? foi um filme construído sem qualquer tipo de estrutura pré-determinada. Mas, por exemplo, a imagem que o Joaquim refere no início do filme, uma cabeça cortada de O Território (1981) de Raúl Ruiz, foi uma que de facto o assaltou uma noite. Mas quando estavam a montar o filme ninguém conseguia encontrar a imagem de que Joaquim se tinha lembrado. Contactaram a mulher do realizador, Valeria Sarmento, para saber se recordava essa imagem e ela de facto conseguiu identificá-la: fazia parte de um poster internacional do filme. Pediram-lhe que lhes enviasse uma fotografia e por isso surge a imagem no filme. Nesse caso a citação visual foi procurada.
Há uma cena em E Agora? que me parece ser das mais belas para qualquer cinéfilo: Joaquim está no seu quarto em quase total escuridão e a sua voz conta-nos que quando era menino, depois de um dia de aulas, o pequeno Joaquim decidiu que deveria morrer. Deitou-se na cama, fechou os olhos e imaginou-se a abandonar o seu corpo e partir. Mas talvez por desígnio superior, talvez porque um ruído no exterior se fez sentir de forma mais evidente, os olhos do pequeno Joaquim abriram-se e, devido a uma pequeníssimo orifício no estore, uma imagem do exterior projectava-se na parede, uma câmara escura acidental tinha-se criado, uma espécie de proto-cinema. E o pequeno Joaquim nunca mais quis morrer. Pergunto se o cinema é a única razão para continuar, logo me arrependo do “única”. “Não é certamente a única razão, mas que é uma delas não há dúvida”. Joaquim conta que esta história tinha-a contado a Nuno havia vários anos e já nem se lembrava dela, foi ele quem o lembrou do episódio. Quando o reproduziram no filme o que mais surpreendeu Joaquim foi o facto de aquilo ser de facto a cores, porque a sua memória dizia-lhe que a projecção era a preto e branco. Questiono-me se não se trata de mais uma citação, desta vez a Prima della rivoluzione (Antes da Revolução, 1964) de Bernardo Bertolucci, onde a única cena a cores do filme é aquela em que as personagens observam o mundo numa câmara escura. Joaquim não se recorda do filme, já o viu há muitos anos. Não foi com certeza uma citação, pelo menos não consciente, mas “uma pessoa vê tantos filmes que acaba por reter partes deles apenas de forma inconsciente”.
Uma obra
Por vezes cede-se à facilidade de fazer uma distinção entre a primeira fase da carreira de Joaquim Pinto realizador, com as longas metragens de ficção, e a fase posterior, com os vários documentários e objectos mais dificilmente classificáveis. Joaquim percebe porque se faz por vezes essa distinção: “os dois primeiros filmes foram objectos muito pessoais, filmes muito pequenos que coincidiram com o início da minha carreira de produtor. Depois de Onde Bate o Sol (1989) achei que era melhor dirigir as minhas forças para que os filmes dos outros acontecessem”. Para mais, há uma diferença substancial entre os primeiros filmes e os mais recentes: estes são filmes feitos a dois, ao passo que os primeiros envolviam uma equipa de várias pessoas e actores e tudo o que um filme de ficção necessita. Mas, por exemplo, “para mim é muito evidente, e talvez seja da minha cabeça, mas há um Godard antes de 67 e um depois e essa linha é muito evidente para mim. É normal que se tenham estes raciocínios quando se avaliam as obras de realizadores”.
Proponho então outra divisão, se nos quisermos obrigar ao sistema binária de compreensão do mundo: em vez de separar a ficção do documentário, talvez fosse boa ideia separar os filmes do mar e do vento dos filmes da terra e do fogo. Pois, note-se, na primeira categoria entrariam filmes como Rabo de Peixe (2003), sobre a homónima comunidade piscatória, Surfavela (1996), sobre o projecto de integração social das crianças da favela pelo surf ou Uma Pedra no Bolso (1988), filme de praia e mar e sol e amores de Verão. Do outro lado, teríamos filmes como Onde Bate o Sol, sobre a tacanhês do meio rural e de um amor proibido entre um jovem lisboeta e um trabalhador rural, Das Tripas Coração (1992), filme-“fogo” da tetralogia que a RTP dedicou aos elementos, sobre uma fogosa relação incestuosa entre bombeiros ou ainda E Agora? Lembra-me, que vive constantemente agarrado à seca dos terrenos e à praga dos incêndios. Joaquim não sabe bem como encarar, “não sou o melhor apreciador da minha obra, não tenho distância suficiente”.
Outra dúvida que me surgiu ao ver os filmes de Joaquim Pinto, só depois de ver E Agora?, é perceber se o seu mais recente filme provoca (ou não) uma releitura da obra. Porque de repente parece que cada filme está cheio da mesma intimidade desarmante de E Agora? Lembra-me. Por exemplo, olhar para os filmes do período brasileiro [Surfavela, Com Cuspe e Com Jeito se Bota no Cu do Sujeito (1998)] ou para o período açoriano [Rabo de Peixe, Sol Menor e Segurança Marítima (2005)] não deixa de ser, mais do que um olhar sobre a obra, um olhar sobre a vida: vemos um filme e sabemos onde estiveram Nuno e Joaquim, onde moraram, que pessoas conheceram, que vida levaram. Joaquim confessa que esses foram pensamentos que naturalmente nunca os atormentaram quando iam fazendo os filmes, simplesmente iam-nos fazendo. Por outro lado, isso é bastante compreensível, já que “todos os nossos projecto, de uma forma ou de outra, foram sempre projectos pessoais”.
Ainda sobre a questão da intimidade como tema subjacente ao conjunto dos seus filmes, apercebo-me que o pai de Joaquim é também actor em Onde Bate o Sol. Confirma-se: o pai de Joaquim entrou em vários filmes seus, e nesse em particular entra de facto, mas dobrado pela voz do Luís Miguel Cintra. No entanto, Joaquim não crê que o seu pai interprete o seu pai ou um assemelhado. “Muitas das minhas personagens são inspiradas em pessoas com quem me dou e pessoas da minha família”. Antes de Uma Pedra no Bolso ser pouco mais que apenas uma ideia, Joaquim pensou na personagem de Luís Miguel Cintra como o A Single Man do Christopher Isherwood (que teve recentemente uma adaptação pelo Tom Ford). Até chegou a pensar adquirir os direitos do livro, mas já haviam sido comprados e era impossível. Mas Joaquim também encontra nesse personagem algo do seu tio Fernando (aliás, o personagem chama-se Fernando) e do seu próprio pai. Os nomes dos seus personagens são muitas vezes emprestados, por exemplo o rapaz de Onde Bate o Sol chama-se Nuno, o que não é de todo acidental.
Mas se tivéssemos de encontrar uma marca autoral na obra de Joaquim e Nuno ela talvez fosse o trabalho físico, a enxada de Onde Bate o Sol e de E Agora?, a linha de Pesca em Rabo de Peixe, a colher de pau em Com Cuspe e por aí fora. Ou mais importante, e que se revela em E Agora? Lembra-me, é a compreensão do cinema como também ele um trabalho físico, um exercício de esforço e labor artesanal. Joaquim torce o nariz: “essa é uma ideia um pouco romântica do trabalho dito tradicional”. Hoje em dia já está tudo industrializado, já pouco há dessa produção artesanal, “aqui à volta só há pêra rocha”. Mas nem de propósito, conta Joaquim, o Nuno leu-lhe uma passagem de um livro (Tristes Tropiques de Claude Lévi-Strauss) sobre a última colónia de índios a conhecerem a civilização ocidental e ele recordou-se que já havia lido esse livro há muitos anos, “lembro-me que quando o acabei de ler me fartei de chorar”, porque ali contava-se o fim dessa noção de pureza original e isso é muito triste. No seu pequeno terreno tenta preservar um pouco esse aspecto artesanal, evitar ter árvores em fileiras como soldados em formatura militar. Quanto a Rabo de Peixe, é curioso mas Joaquim e Nuno estão a remontar o filme neste momento. À época houve cenas que tiveram que ficar de fora por pedido dos financiadores do filme, mas agora, quando o desejo de ver o filme é um mais antológico e menos informativo já pouco sentido faz que o filme se mostre incompleto ou diferente do desejado. Quanto ao cinema como arte manual Joaquim aceita, pelo menos no cinema que ele e Nuno vêm fazendo: é uma coisa diária e rotineira. “Mas não fazemos intenções de voltar a fazer nada como E Agora?, não vamos voltar a fazer nada tão íntimo ou no género do diário filmado”.
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