Há qualquer coisa de mágico em Punch-Drunk Love (Embriagado de Amor, 2002). Não sei se o consigo entender, mas há algo que tem que bater certo para não se esquecer tanto um tão honesto Adam Sandler e os seus passeios inocentes por uma Los Angeles que tudo faz para o espezinhar (incluindo irmãs: sete) como uma Emily Watson que não me lembro de ver tão bela como aqui. Se calhar é aquele harmónio que por lá aparece sem explicação e, primeiro muito sorrateiro, depois menos, vai enchendo a banda-sonora e alimentando os sonhos e as esperanças da personagem de Sandler, Barry Egan; ou aquele pudim todo que parece falar com ele e no fim percebemos para que é que serviu; ou aquelas conversas longas ou os vários acidentes e gestos instintivos que a câmara de Anderson ou tem a grande astúcia de simular ou o supremo respeito de não excluir. Um boy meets girl ou um girl meets boy escrito de propósito para Sandler e Watson e, para esses dois, de uma enorme generosidade. É difícil não nos deixarmos levar pelos encantos deste filme.
Durante esta última revisão de Punch-Drunk Love, lembrei-me doutro filme: o Lili (Lili, 1953) de Charles Walters, com essa adorável Leslie Caron que as maiores desgraças não abalam e nem sequer lhe desfazem o sorriso, olhos ainda siderados e imersos nas coisas bonitas deste mundo. Tantos enganos e tantas traições dos que os rodeiam e ainda esse olhar sonhador e ainda esses passeios solitários em busca de alguém ou de alguma coisa. Olham para um teatro de marionetas ou para um harmónio, os olhos brilham como só os dos mais inocentes brilham e nós só conseguimos acreditar que são como o brilho de céus estrelados, porque também há luz na mais negra das noites. O feitiço está lançado. Da concertina que acompanha os Hi-Lili-Hi-Los de Caron ao harmónio que faz o mesmo aos He Needs Mes da voz de Shelley Duvall que Thomas Anderson foi buscar ao Popeye (Popeye, 1980) do muito amado Altman. E também a Altman, mas a Gosford Park (Gosford Park, 2001), foi buscar Emily Watson. A Gosford Park, filme em que se canta The Land of Might-Have-Been. E se nesse filme e nessa canção se pergunta se “shall we ever find that lovely land of might-have-been?“, no de Anderson se responde e se imagina esse terra distante, “different from this world below, far more mercifully planned than the cruel place we know. Innocence and peace are there – all is good that is desired.” Pode-se imaginar Anderson a acabar de ver o filme de Altman em 2001 e planear misericordiosamente o mundo de Punch-Drunk Love, o seu conto-de-fadas do ano seguinte. Ou então, e como disse algures, “try to make a 90 minute movie, to try and save everybody a little bit of time in their day”. Mas antes que me perca, é Emily Watson, Lena no filme, que quer conhecer Barry por ter visto uma fotografia dele com as sete irmãs, fotografia que a nós nunca é mostrada. E é ele que só quer estar com ela se mais ninguém tiver que ver com o assunto. Não quer que as irmãs lhe façam arranjinhos. Ela percebe, e depois de esperar que a irmã de Barry desapareça, respira fundo, com a chave do carro ainda na mão, volta lá dentro, ao lote longínquo e isolado onde ele vende os seus desentupidores e bebe o seu café, e convida-o para jantar. Já antes tinha inventado uma avaria no carro para ir ter com ele, de manhã, pouco depois do harmónio aparecer. Confessa-lho depois, como depois ele lhe confessa a ela que “I don’t freak out very often… No matter what my sisters say, okay?”
Foi Anderson quem disse que se queria desligar dos mosaicos – que, ao contrário do que pensa muito boa gente, não foram nem ele nem Altman que inventaram -, por poder ser fácil desleixar-se, por poder passar simplesmente à história seguinte se algo corresse mal. Punch-Drunk Love parece ser o ensaio e a antevisão dos filmes que se seguiram, There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007) e The Master (The Master – O Mentor, 2012), não pelo tema (nunca pelo tema), mas por um compromisso semelhante a poucos personagens. E se é verdade que é um ensaio, se é uma primeira tentativa e se vê muito movimento e barulho que parece não fazer sentido ou dar em coisa nenhuma (mas nem tenho a certeza que assim seja), é também verdade, confesso-o, que é, das cinco de seis longas que Anderson realizou, a que mais gosto. Está ainda por ver Sydney (Passado Sangrento, 1996) e espera-se ansiosamente por Inherent Vice. Mas há momentos maravilhosos espalhados por toda a obra, desde tudo o que envolve o polícia de John C. Reilly em Magnolia (Magnolia, 1999) às intensas e confessionais conversas entre Philip Seymour Hoffman e Joaquin Phoenix em The Master, passando pelo início sem diálogos de There Will be Blood.
“I don’t freak out very often”. Maluco é quem não se passa de vez em quando e se surpreende que os outros o façam. O Barry Egan é um tipo normal que comete apenas o erro de não querer acreditar que as pessoas mentem, enganam e magoam. E no cúmulo desses enganos, dessas mentiras e dessas mágoas, a maravilha acontece. Mal combinada está uma passagem no Hawaii, os pudins não puderam servir para trocar por milhas de passageiro regular, só entre seis a oito semanas; os irmãos da operadora de chamadas eróticas já lhe foram ao cepo e roubaram-no cobardemente; as irmãs já sabem da conversa com o cunhado e perguntam-lhe se está tudo bem com ele, dizem-lhe para não ser estranho, para “por favor” não ser estranho. E ele sem poder mais, dá um murro na parede e apoia-se no harmónio deslizando os dedos pelas teclas, com “love” escrito nos nós dos dedos. Começa a música e a valsa que não mais nos sairá dos ouvidos e dará sentido a esses lens flares espalhados pelo filme, às subidas desajeitadas e belíssimas por um beijo que não se deu mas se queria dar, a esse fato azul que nunca sabemos se é o mesmo ou porque é usado, à força usada agora com um sentido por um novo sentido se ter encontrado (“I have a love in my life”), a essa viagem inventada do pé para a mão e à luz milagrosa que se acende na cabine telefónica quando Lena atende o telefone e dois se tornam um. O que acontece depois de tantos dias ou meses ou anos a ouvir os “nãos” desta vida e vir finalmente um “sim”. E como escreveu Viriato Cruz e cantou Fausto Bordalo Dias nesse penoso mas frutuoso Namoro, “… tocaram uma rumba, dancei com ela e num passo maluco voamos na sala, qual uma estrela riscando o céu… E a malta gritou ‘Aí Benjamim!… Olhei-a nos olhos, sorriu para mim, pedi-lhe um beijo… la-ra-la-ia-la…”
E lembra-se Lena a subir as escadas aos saltos e abraçar Barry em voo semelhante. Só com canções se conta este filme.
“And here we go”.