Aquando da passagem de Kelly Reichardt por Portugal, por ocasião da retrospectiva que lhe foi dedicada no Festival Curtas Vila do Conde 2014, tivemos a oportunidade de falar com a realizadora norte-americana. Reichardt, uma das vozes mais importantes do cinema americano independente, pela sua distinta estética minimalista e filmes repletos de paisagens de solidão, esteve também em Portugal, para apresentar Night Moves (2013), em ante-estreia no festival. Numa curta conversa, foi possível percorrer a sua filmografia, as histórias dos seus filmes, e o seu método de trabalho, com destaque para a mais recente obra da realizadora.
Na apresentação de Night Moves, referiu que o filme era sobre um novo tipo de activismo ecológico que tem aparecido na América, especialmente no Oregon. Esse é um tema que lhe interessa particularmente?
Para nós, Night Moves foi sempre um filme de personagens, que por acaso era sobre activistas, pessoas politicamente envolvidas. O meu parceiro de escrita, Jon Raymond, cresceu no Oregon, e, tal como o meu produtor Neil Kopp, ambos são do Oregon, e acho que o noroeste americano é o local onde surgiu este tipo de activismo ecológico na América, porque é um assunto que lá está muito presente na vida das pessoas, é muito visível, e as barragens são um tema importante. Há também uma floresta enorme, que tem desaparecido gradualmente à vista de todos, é impossível não reparar. Quando estou em Nova Iorque, as pessoas perguntam-me porque é que no Oregon estão todos sempre zangados com as barragens, simplesmente porque lá não é um assunto que esteja presente para as pessoas.
As personagens nos seus filmes são pessoas marginalizadas, pessoas que escolheram remover-se da sociedade, mas que no fim percebem que afinal têm muito menos liberdade, e que a sua margem de erro é muito menor. Preocupa-a esta luta?
Bem, eu penso que nos anos desde que comecei a trabalhar com as histórias do Jon Raymond, que o país moveu-se muito para a direita, o que é, na realidade, um derrota para o liberalismo, e até a palavra liberal tornou-se uma palavra que todos tentam evitar nos Estados Unidos. Mas no fundo, o mundo inteiro moveu-se para a direita, e portanto parece que há menos espaço para um estilo de vida diferente da norma, e, no entanto, as pessoas estão sempre à procura do seu pequeno lugar, mesmo que o extremismo da direita esteja em crescente, e seja bem aceite.
Acredita que o cinema pode ser uma maneira de chamar a atenção para esses marginalizados, para as histórias dessas personagens que normalmente não são tidas em conta?
Na minha opinião, é exactamente isso o que o termo “cinema independente” implica. Quer dizer, parece que o termo tornou-se numa outra coisa, uma maneira de definir donde é que apareceu o dinheiro para financiar os filmes. Mas mesmo assim, muitos dos filmes ainda são do tipo olhem, eu não aceitei dinheiro de um estúdio para fazer o filme, mas mesmo assim estou a fazer um filme sobre os vencedores. E para mim, tenho a ideia de que o cinema independente era sobre dar relevo a alguém cujo ponto de vista normalmente não é considerado, ou dar voz a alguém que não costuma ser ouvido… a mim interessam-me muito as pequenas lutas do dia-a-dia.
É muito comum nos seus filmes a ideia de reduzir as lutas destas personagens aos seus pequenos problemas diários, como arranjar dinheiro para a gasolina…
Sim, é isso! Eu gosto da luta, do tédio da vida quotidiana, o que são as pequenas dificuldades para alguém conseguir encher o tanque de gasolina do carro, isso é um problema real, não é necessariamente um pequeno problema. Tornou-se tão comum no cinema os problemas serem tão grandes que não existem realmente, não são reais, as explosões são tantas que já não fazem diferença. Quando estávamos a tentar fazer Night Moves, a tentar convencer alguém a deixar-nos fazer o filme, costumávamos dizer que se estivéssemos a fazer um filme sobre rebentar com vinte barragens isso não seria um problema, mas a ideia que vamos centrar um filme à volta de apenas uma barragem, isso já era mais difícil.
Numa entrevista que deu há algum tempo, por volta da estreia de Wendy and Lucy (2008), uma das perguntas que aparece muitas vezes era sobre as dificuldades para uma autora feminina em conseguir financiamento para um filme, e na altura foi até difícil encontrar exemplos de mulheres a realizarem filmes na América regularmente. Acha que houve alguma mudança, desde então, e que esse processo de financiamento se tenha tornado mais acessível?
Bem, o processo continua a ser difícil para qualquer pessoa que tente fazer um filme sobre estes temas de que temos falado, dos pequenos golpes da vida. Mas ainda diria que – e tenho sentimentos contraditórios em relação a isto, porque não presumo necessariamente que qualquer pessoa possa ganhar a vida a fazer arte ou filmes – sentes-te realmente com sorte de cada vez que fazes um filme, e a pretensão de que isso poderia ser igual a um ganha-pão é difícil. Por outro lado, podia facilmente dizer uma lista de nomes de vinte e cinco homens na América que podem transformar a sua visão pessoal num filme quando quiserem, e viverem muito confortavelmente disso, e não consigo, neste momento, apontar uma única mulher que possa fazer o mesmo.
Este é um assunto que a incomoda, por defini-la, sobretudo, como uma cineasta feminina, e, também, por ser uma pergunta frequente?
Quer dizer, é uma luta perdida, porque é um tema complicado, e, no fundo, acho que as pessoas têm problemas maiores no mundo do que isto, e eu tenho a sorte de ter um emprego como professora, e gosto de ensinar, e gosto da escola onde trabalho. Acho também que, neste momento, se tens qualquer tipo de emprego, não te podes queixar realmente, especialmente se de vez em quando ainda consegues fazer um filme! Portanto, não é que eu não me queixe, porque posso sempre queixar-me, mas ainda sinto que podes ser marginalizado como artista, mas acredito, também, que isso irá mudar porque, por exemplo, na escola onde dou aulas, metade da turma é feminina, portanto é algo que vai mudar, mas não vai mudar durante a minha geração, talvez na próxima geração. Mas mais importante que isto é, por exemplo, o facto de as mulheres ainda não ganharem o mesmo que os homens, não só no cinema.
Os seus dois últimos filmes foram variações do filme de género. O que é que surge primeiro no processo criativo, a história, que depois adapta a um determinado género, ou começa com um género em mente e tenta depois encontrar uma história que encaixe?
A história é o começo, mas varia. Old Joy (2006) era um pequeno conto, e depois com Wendy and Lucy foi um argumento que eu e o Jon Raymond desenvolvemos juntos, que era mais sobre a história e as suas personagens, as texturas e os ambientes, e encontrar as vozes das personagens, muito disso vem da escrita do Jon. Depois, quando estou a tentar imaginar como fazer o filme, de certa forma todas estas coisas acabam por encaixar dentro das categorias, por exemplo, o western era um western. E em Night Moves, como eu e o Jon escrevemos o argumento juntos, pelo menos no início estava a tentar impor ao Jon que o golpe do filme acontecesse mais cedo. Mas a escrita dele não é de género, contém tantos níveis diferentes de ambiguidade, e para mim, a melhor maneira de articular esses diferentes níveis é encontrar uma estrutura definida com que possa trabalhar, que é o que os diferentes géneros te oferecem, para depois adaptar a história à estrutura do género.
Numa outra entrevista, referiu que, às vezes, acontece-lhe ficar a pensar sobre pequenos momentos que vê em filmes, que continuam a aparecer-lhe nos pensamentos muito depois. Um dos exemplos de que fala é de um filme de Jia Zhang-Khe, onde há uma cena com um homem à espera de um autocarro no meio do nada, que nunca mais chega. Acontece-lhe também voltar a pensar sobre as personagens dos seus filmes anteriores?
Não… deixo-os… sabes quando não queres, quer dizer, até há algumas pessoas que querem, agora vivemos neste mundo de nostalgia, mas não quero pensar em demasia sobre um determinado período de tempo no passado. Os filmes já demoram tanto tempo a fazer, e são experiências muito envolventes, onde todo o tipo de coisas pessoais acontecem. E depois, especialmente por eu passar tanto tempo a montar o filme, há tanto tempo para pensar sobre o que estás a ver… e há pessoas que ficam doentes, e pessoas que morrem, que acho que é igual à forma como te recordas do liceu, compartimentas o tempo: os anos do Old Joy, os anos do Wendy and Lucy… não gosto de debruçar-me sobre o passado. Aqui [nos festivais de cinema], vou e vejo o início dos filmes, para ter a certeza que está tudo bem com o som e com o foco, mas depois saio da sala, e não quero realmente pensar sobre isso. Prefiro, também, não olhar para a forma como montei os filmes.
Quando vai para a sala de montagem, já tem tudo planeado em relação à forma final do filme, ou é surpreendida pelo material que filmou?
Não, não tenho tudo planeado. Sou muito organizada, mas por causa da forma como fazemos os filmes, por exemplo com Meek’s Cutoff (O Atalho, 2010), podia ficar sentada sozinha no deserto o dia todo, mas não vou ver a carroça e o boi através da lente até ao dia em que estamos a filmar, porque não temos essa possibilidade. Portanto, passo muito tempo à procura de locais para filmar, e tento passar o máximo de tempo possível nos locais onde vamos filmar. Também trabalho com um desenhador de storyboards, um pintor de Oregon, que vai comigo até esses locais, e falo com o meu director de fotografia, e tenho os meus cadernos de notas. Mas depois quando estás a filmar, é o caos, e nunca olho para o que estamos a filmar nesse momento, simplesmente porque não tenho tempo, e estou com a cabeça noutro lado, porque estou em modo de guerra. Depois, quando vais para a sala de montagem, tentas aos poucos pôr o filme que querias fazer de lado, e entrar no filme que estás realmente a fazer. Com Night Moves, como era muito mais dependente do enredo, havia muito menos maneiras de editar o filme. Nós nunca usamos muito filme, não faço dez takes, isso simplesmente não acontece, mas com Night Moves tinha que seguir um caminho, o filme, de certa forma, dirigiu-me para o que tinha de acontecer, muito mais do que nos outros filmes, onde havia sempre outras opções que podia seguir – o caminho original ou mudar um pouco as coisas – mas com Night Moves, cada vez que me desviava do caminho, o filme desfazia-se. Portanto, ter uma narrativa pode ser divertido, diz-te por onde tens que ir.
Ficou com vontade de explorar estas histórias, com uma narrativa mais definida, no futuro?
O próximo projecto, em que estou a trabalhar agora, é uma história que envolve muitas personagens e tem ainda uma forma muito estranha, que ainda não sei bem dizer o que vai ser…
Na apresentação da estreia de Night Moves, referiu que acabou por vir até Portugal, em parte, para descobrir algum do cinema português. Até que ponto conhece o cinema português, e há algum autor, em especial, que siga?
Sou um bocado ingénua em relação aos filmes portugueses, desculpem. Mas estou a tratar disso, vou receber da organização do Festival uma colecção de filmes portugueses para ver, com tempo, mas por agora é uma área em branco.
Se me permite a sugestão, se tiver oportunidade de ver alguns dos filmes do Pedro Costa, vai encontrar este minimalismo e atenção nas dificuldades do dia-a-dia de que temos falado…
[olha para o nome escrito num papel] Sim, espera… eu reconheço este nome! Na verdade, vi os filmes dele no Lincoln Center, em Nova Iorque, quando passaram uma retrospectiva dele. Vi esses filmes quando estava a estudar e a fazer pesquisa para o Night Moves, mas depois perdi o nome do realizador, e ando há meses a tentar descobrir o nome dele, porque lembro-me bem dos filmes, mas sem sorte, até agora… Finalmente!