“La peine de mort n’existant pas dans les écoles, on renvoya Dargelos et on transporta le proviseur à l’infirmerie.”
Não existe, de facto, a pena de morte nas escolas, por isso, o seu director, ferido por um aluno que se recusava a submeter à sua autoridade, apenas tinha a enfermaria da escola para cicatrizar a sua dor de adulto ofendido. O episódio é vivido em Les enfants terribles (1950), adaptação do livro de Jean Cocteau pelo próprio autor que iria contaminar uma realização assinada por Jean-Pierre Melville. No cinema, esse mesmo domínio dos sonhos, todos os pensamentos mórbidos encontram também o seu lugar, pelo que Cocteau poderia ter escrito (e Melville filmado) uma condenação à morte, de facto, pelo terrível crime dessa criança – o de recusar a monstra autoridade do mundo adulto que lhe pedia para se comportar como alguém para além da sua idade.
Mas Cocteau viu no cinema mais do que (quase) todos os realizadores que se seguiram a ele – o domínio não apenas dos sonhos, mas da inocência do olhar e da descoberta de um novo mundo, tal como uma criança que, a quem lhe é contada uma fábula, acredita em todas as suas palavras e em todo o seu movimento por pertencerem à ordem dos sentidos (os poderes mágicos com que nascemos e afastamos – ou relativizamos – à medida que entramos no mundo adulto). E por isso, tal como Truffaut viria a anunciar mais tarde, no cinema, as crianças nunca morrem (e sobretudo, criminoso será o adulto que decidir matar uma criança no decurso da sua história).
Ainda Cocteau: “A infância acredita naquilo que lhe é contado e não coloca isso em dúvida. Acredita que uma rosa que colhemos pode trazer algo de dramático para uma família. Acredita que as mãos humanas de um monstro que mata deitam fumo e que esse monstro envergonha-se disso quando uma jovem rapariga vem viver para sua casa. Acredita em mil outras coisas bem ingénuas. É um pouco esta ingenuidade que vos peço e, para trazer-nos sorte a todos, permitam-me dizer-vos quatro palavras mágicas, um verdadeiro abre-te Sésamo da infância: era uma vez…”
São as palavras que o cineasta e poeta dirige aos seus espectadores antes de começar La belle et la bête (A Bela e o Monstro, 1946), por saber que nós, adultos, caminhamos cada vez mais longe desse mundo dos sonhos onde tudo é real e verdadeiro, onde para cada canto em que os olhos brilham, a magia das palavras e o movimento dos corpos nos falam de um mundo que só existe de sentidos bem abertos.
Assim me lembro de me ter sentido no primeiro filme que vi do poeta, uma casa habitada pelas suas palavras e desenhos, preparada para o sonho e os prazeres simples: fechar os olhos e dormir, abrir os olhos e acordar, respirar as cores da sua natureza e deixar entrar, pelas suas janelas, o encanto mágico do dia-a-dia onde as nossas esperanças se deitam. A Villa Santo-Sospir (1952) era a casa dos meus sonhos e pela qual suspirava na paisagem crua (assim julgava eu) da minha conhecida realidade. Cocteau abriu-me os olhos e fez-me ver que essa casa existia e vivia em todos (os filmes de Cocteau são sempre na primeira pessoa do plural – obras pensadas para todos os sonhos de todo o mundo).
Por isso regresso sempre a Cocteau, um pouco como quem anda pela rua e aguarda um suspiro entre o vento que lhe diga, de novo, esse abre-te Sésamo da infância. “O privilégio do cinematógrafo está em permitir a um grande número de pessoas de poder sonhar o mesmo sonho em conjunto e ainda de poder mostrar, com o rigor do realismo, os fantasmas da irrealidade. Enfim, é um admirável veículo de poesia. O meu filme não é mais do que uma sessão de striptease que consiste em revelar, pouco a pouco, o meu corpo e mostrar a minha alma toda nua. Pois existe um público considerável que está faminto daquilo que é mais verdadeiro do que o verdadeiro e que será, um dia, o signo da nossa época.” Porque o privilégio do cinema, nas palavras de Cocteau, também é, afinal, o privilégio de estar vivo.