Terão sido os Oscars que Tom Hooper ganhou com The King’s Speech (O Discurso do Rei, 2010) que lhe abriram as portas ao épico cantado que agora se estreia nas salas do mundo. A questão está em perceber se Hooper foi a melhor escolha. Não são os senhores dourados que fazem um realizador, são os filmes, e Tom Hooper, tendo o coração no sítio certo, não aguenta tamanha empresa.
Hooper formou-se na televisão e assinou a realização de um conjunto significativo de séries britânicas e John Adams para o HBO. Quanto aos filmes só lhe conhecemos The Damned United (Maldito United, 2007), o oscarizado The King’s Speech e este que agora se estreia, Les Misérables (Os Miseráveis, 2012). Vendo-os em perspectiva notamos uma progressão em termos de dimensão da produção: desde o filme sobre o treinador britânico Brian Clough até ao Jean Valjean de Victor Hugo, muita coisa mudou. Sinto que a cada filme, Hooper foi-se embasbacando com a dimensão do espectáculo que lhe passa diante dos olhos. Se The Damned se fazia quase todo nos mesmos cenários e com uma câmara quase sempre estática, dando espaço aos actores para se mostrarem, neste mais recente esforço a câmara muito raramente pára um instante e os actores parecem intimidados pelas correrias da máquina.
Alguém terá dito que a câmara persegue os actores como um daqueles cãezinhos irritantes que nos saltam aos joelhos e não nos largam por nada – nem mais. Da câmara-canina mal não viria ao mundo, o problema surge porque este é o filme que adapta o homónimo musical (já visto por mais de 60 milhões de pessoas em todo o mundo, em mais de 40 idiomas) ao cinema, com cenários e guarda roupas a condizer. Ou seja, por entre os folhos desta enorme empresa anda uma câmara meio destrambelhada que não sabe muito bem para onde há de apontar. Esse era já o grande problema de The King’s Speech: parece haver uma desadequação, não construtiva, entre o que se filma e a forma como se filma. Note-se, no entanto, que do choque entre o género e o meio não vem por si qualquer problema [veja-se Public Enemies (Inimigos Público, 2009)], a questão é que esse choque produz-se sem qualquer objectivo narrativo ou estético – o uso de enquadramentos invulgares no(s) filme(s) de Hooper não produz qualquer efeito de distendimento do enquadramento ou profundidade de campo, muito pelo contrário. Em Les Misérables ficamos com a sensação de que o próprio filme está maquilhado de forma exagerada; na tentativa de se tornar sedutor, mais parece uma velhinha demasiado pintada que senta ao nosso colo.
Mas tomara que fosse esta a única inabilidade de Hopper. O problema maior vem da forma moralista como se tratam as personagens. Hathaway é a pobrezinha (a arruinada da vida), Crowe é o mauzão inquebrável, Jackman é o convertido e santificado mártir, depois há o revolucionário, o apaixonado a inocentinha e os trafulhas (Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, que conseguem concretizar o burlesco que todos os outros temem encarar). Cada actor representa um boneco e cada boneco tem a sua cor: Jackman é invariavelmente enquadrado com um crucifixo – há duas cenas de particular mau gosto simbólico: uma em que se vê obrigado a carregar a bandeira de França como se de uma cruz se tratasse; a segunda quando encontra pela primeira vez o pretendente da filha e, com um olho gigante pintado na parede ao fundo, canta, como se o olho divino o estivesse sempre protegendo (e como o espectador ainda não terá percebido, lá no final vêm-nos dizer que ele era um santo). Por outro lado, Crowe é filmado quase sempre num local de desequilíbrio (no beiral de uma ponte ou de um monumento alto), como que a dar a entender que ele vai cair – olhem que ele vai cair. E podíamos continuar.
Mas durando o filme mais de duas horas e meia, há momentos muito dignos: o já muito referido plano único da performance de Hathaway (lá está, quando a câmara se acalma um pouco), em que a actriz canta (todos os actores cantam em directo no filme) sozinha para a câmara, num estado de entrega total à personagem (“She devours the song, the scene, the movie, and turns her astonishing, cavernous mouth into a vision of the void“). Sinto que Les Misérables sofre de um enorme erro de casting, não dos actores, mas do próprio realizador, que não tem estofo para coser todas as personagens e épocas que o source material exigia.