Não há muitos filmes assim na história: uma obra que nasce de uma urgência, uma urgência que se transforma numa viagem a um continente que mais do que desconhecido é ignorado pelo “mundo branco”, uma viagem que se transforma num objecto estético que é arrancado do real com a mesma força e determinação com que sobre ele se cometem as injustiças e os crimes mais infames; enfim, um objecto (est)ético que, sem concessões ou almofadas morais, ataca um problema humano chamado apartheid.
O leitor terá que se esfoçar muitíssimo para encontrar um filme com a dimensão (est)ética de Come Back, Africa (1959), o primeiro filme a pôr em imagens – logo, a enquadrar e a dar a ler – a realidade social e política daquela África do Sul, não um país, mas uma “versão de país” asfixiada pela pobreza, o crime e, antes de tudo (daí a natureza ética antes de estética), a injustiça (desumanizante) mais inqualificável. Chame-se Bowery, Nova Iorque, Sophiatown, Joanesburgo, África do Sul, África, Auschwitz, bomba atómica… chame-se tudo porque nada consegue esconder o seguinte: Lionel Rogosin é o grande cineasta nascido do e para os grandes Traumas do século XX.
Em 1959, Rogosin formulou uma sentença sob a forma de um filme: “Regressa, África”, foi o que quis dizer depois de ter tomado conhecimento das experiências levadas a cabo pelo regime colonial branco instaurado na África do Sul. Bem antes de ter viajado para Joanesburgo com o objectivo de pôr a sua câmara ao serviço de uma urgência, repito, “humana e humanitária”, Rogosin já estava determinado em fazer essa viagem, mas faltava-lhe, primeiro, a experiência técnica necessária para produzir um filme e, segundo, ou mais importante ainda, carecia de um método. Temos de perceber que nos anos 50 qualquer incursão pelo cinema documental constituía uma enorme aventura de produção, já que o cinema norte-americano continuava formatado pelas fantasias “desrealizantes” de Hollywood – e qualquer cineasta que tivesse uma proposta contrária aos seus ditames estava condenado ao fracasso. Rogosin, movido que estava por essa urgência, foi em frente, mas pode-se dizer hoje que quase se atirou de cabeça, já que o terreno que tinha pela frente era tão selvagem que até então ninguém começara sequer a desbravá-lo.
On the Bowery (1956) foi o filme-teste para Come Back, Africa e, como acontece tantas vezes na história do cinema, o que era para ser apenas um teste tornou-se em algo bem maior. Rogosin conta a rodagem desse seu primeiro filme quase como Flaherty terá narrado as suas aventuras transcontinentais por paisagens esquecidas pela civilização – “mas que civilização?”, essa também é a pergunta que Rogosin nos vai desferir… Como não sabia como filmar, mas sabia (mais ou menos) o que filmar, o realizador norte-americano decidiu seguir, precisamente, o método do autor de Nanook of the North (Nanuk, o Esquimó, 1922), começando por partir “sem câmara” para o local, observando e absorvendo as figuras, os seus gestos e todas as conversas desenroladas, sobretudo, nas bancadas de bares, entre copos de vinho e whisky e o fumo omnipresente dos cigarros – mesmo que ninguém esteja a fumar, parece que ele está lá sempre, a subir no ar. Rogosin tornou-se “mais um” no problemático bairro de Nova Iorque e, durante esse processo – de imersão, de quase “desindividualização” -, o realizador foi recolhendo ou, usando um termo de Kracauer, achando “histórias de vida” suficientes para, mais tarde, voltando à pele de cineasta, poder escrever um guião, escolher os actores e começar a filmar.
O trabalho em torno de On the Bowery, uma espécie de “Come Back, America”, marcou em absoluto a paisagem do cinema americano e abriu portas para toda uma nova geração de cineastas que se queria “independente” do circo hollywoodesco. Cassavetes reconhece em Rogosin um dos nomes seminais do seu cinema, algo que não é de modo algum de estranhar face à justeza do seu olhar estético que é complementada por uma elevadíssima consciência humanista de “estar vivo com outros no mundo”. Claro que Rogosin tem mais a ver com um certo “olhar documental”, devedor do Free Cinema e de Jean Rouch (para não falar do já citado Flaherty), em que a ficção nasce do real, do que com as narrativas espontâneas de Cassavetes, nas quais parece ser o real que se afirma a partir da ficção ou da interpretação “improvisada” dos seus actores semi-profissionais. Efectivamente, como já acontecera em On the Bowery, Rogosin trabalhou apenas com não-actores em Come Back, Africa, o que não quer dizer que apenas bastasse isso para fundar a especificidade do seu “olhar documental” sobre o mundo.
Rogosin revelava uma enorme maturidade quando se mostrava menos preocupado com a “direcção do seu olhar” do que com a forma como este era devolvido pelo meio e, porque a sua inspiração também era neo-realista [pense-se em Germania anno zero (Alemanha Ano Zero, 1948) quando estiver a ver este filme], pela pessoa que se (dis)punha à frente da câmara. Aliás, numa passagem interessante citada num artigo escrito por Jonas Mekas – que o tem como um dos pais do cinema independente norte-americano -, Rogosin surge em defesa do que já apelida de “método”: “Para capturar a realidade de modo espontâneo e para lhe dar vida, não basta, como é claro, fazer o casting junto de pessoas vindas do meio. A elas tem de ser permitido que sejam elas mesmas, que se expressem à sua maneira, mas de acordo com as abstracções e temas que o realizador tem de conseguir ver nelas”. Ou seja, o cinema de Rogosin é menos moldado pelo que o “seu olhar vê” do que pelo que “a sua visão lhe devolve”: o olhar dos outros, no fundo. A terra, a paisagem, as pessoas, os seus rituais, histórias, alegrias e tristezas, ou (tudo em) apenas um olhar, da repérage (o lugar) e do casting (de pessoas e não de actores “feitos”) nasce uma realidade fílmica ou filmável que Rogosin sobrepõe à receita de Hollywood em torno de uma realidade que se tem como “instrumental”.
Para falarmos de Come Back, Africa, temos de falar também no poder das suas imagens (belíssimas) que não nos oferecem apenas um “contexto” para a história do protagonista – uma entre milhares ou entre milhões em Joanesburgo, como se pode ler no início -; elas prolongam numa massa infinita de pessoas – logo, de histórias – os problemas que afligem o pobre Zachariah, que, como no clássico The Crowd (A Multidão, 1928) de King Vidor, a quem o neo-realismo deveu tanto, é apenas mais um entre a multidão de jovens pais negros que procuram garantir um futuro à mulher e aos filhos numa sociedade onde o patrão branco impõe condições de vida cruéis. Imagens de manadas de gente que atravessam a cidade – à procura de um futuro que não chega nunca mais – ou dos mineiros que sinalizam, com a luz dos capacetes acesa contra a noite que baixa sobre eles, ensaiam a metáfora de uma aliança fatídica em direcção ao abismo. Já as imagens de crianças, mulheres e alguns homens negros a dançar e a cantar nesse autêntico gueto miserável que é Sophiatown também são insuficientes a pontuar de esperança e humanidade a história pessoal de Zachariah, porque toda esta festa, como a certa altura uma das personagens diz na magnífica tertúlia política e cultural que toma lugar no fim do filme, funciona apenas como escape a uma realidade que constantemente agride os mais fracos.
Toca-se música nas ruas, mulheres lindíssimas cantam canções ainda mais belas, mas tudo isso não passa do ópio que o povo negro encontra para elidir a tal escuridão intensa que, todos os dias, baixa sobre as suas cabeças. Até a arte, diz de novo aquela personagem clarividente, mesmo que seja “a melhor das religiões”, não oferece mais nada que não a ilusão de um tecto para uma vida que, por ser imposta, não lhes pertence: “a arte não quer saber da pobreza”, a mensagem é mais ou menos esta. Ironicamente, Rogosin pôs a arte ao serviço desta pobreza, tal como de todas as injustiças que a alimentam; filmou clandestinamente uma das obras mais corajosas sobre a segregação racial, quando nem no seu país esta era encarada; fez do real o território de partida e de chegada de cada um dos seus magníficos planos, sabendo que o sofrimento não se adorna e que, quando partilhado por mais que um homem, é sempre símbolo de algo maior e mais significativo. A última sequência de Come Back, Africa é um tremendo murro no estômago, difícil de aguentar para quem sempre procurou o tal refúgio aconchegante na sala escura.
Não há cedências perante a barbárie, nem tão-pouco se pode compreender totalmente os seus modos de agir. A agitação final do corpo de Zachariah, face ao massacre… não perpetrado por um branco mas por um negro se calhar não muito diferente de si (quem é afinal “diferente”?, também se avança inteligentemente na tertúlia), é eloquente a expressar esse Trauma, produzido pelo Horror sempre-paralisante da acção do homem moderno, que esteve, mas que verdadeiramente – e Agamben concordará – ainda não terá saído (e, vamos complicar, nem sequer é moral que queira sair já) de Auschwitz. Rogosin percebeu que não podemos cruzar os braços depois do que aconteceu e por isso ergueu um cinema em permanente “estado de urgência” que questiona o espectador e que, ao contrário de Hollywood, faz o favor de o desconfortar. Come back, Rogosin.
(Entretanto descontinuada, a caixa da editora francesa Carlotta que reúne os dois filmes de Rogosin aqui tratados, a começar por esta raridade chamada Come Back, Africa, está em processo de ser substituída por uma colecção de DVDs/Blu-rays com a obra completa do realizador norte-americano, que tem sido lançada no seu próprio país. O primeiro volume, que inclui a obra-prima On the Bowery, já está disponível para compra aqui e tem a minha inteira recomendação.)